Resumo: O presente artigo tem por objeto analisar a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça no que tange a descriminalização do crime de desacato à luz não apenas do controle de convencionalidade realizado por aquele tribunal como também de princípios constitucionais basilares do estado democrático de direito.
Palavras-chave: Crime de desacato. Controle de convencionalidade. Descriminalização. Princípios constitucionais.
Sumário: Resumo. 1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 3. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Trata-se o presente artigo de um estudo acerca da aplicação do crime de desacato, sua possível descriminalização bem como seu embate com princípios constitucionais. Como restará demonstrado, a utilização de tal tipificação é deveras anacrônico com o direito brasileiro nos dias atuais. Tanto é verdade que os institutos normativos internacionais dos quais o Brasil é signatário reafirmam a necessidade de extirpar da legislação nacional toda e qualquer conduta que venha punir o cidadão por exercer livremente seu direito de liberdade de expressão. Neste sentido, a questão que se coloca é: o crime de desacato foi realmente descriminalizado ou já há muito tempo teve sua aplicação oposta à realidade do direito brasileiro? É esse o objeto de estudo deste artigo. Ao final, buscaremos explicitar o conflito desse tipo penal com princípios constitucionais.
2. DESENVOLVIMENTO
É de conhecimento de todos que o crime de desacato, capitulado no art. 331 do Código Penal pátrio, vem sendo objeto de apontamentos constantes da doutrina, notadamente com a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça de descriminalizar tal conduta.
A origem do crime de desacato é controversa: uns dizem que surgiu no Direito Antigo, outros dizem no Direito Romano. O fato é que no segundo ordenamento, época em que eram reprimidas todas e quaisquer palavras ofensivas dirigidas ao magistrado no exercício de suas funções, o crime não existia com esse nome e era classificado por iniuria atrox que sujeitava os praticantes de tais condutas à pena capital.[1]
O Desacato é considerado um crime previsto pelo Código Penal Brasileiro em seu art. 331[2] que, consiste em desacatar, ou seja, faltar com o respeito para com um funcionário público no exercício da função ou em razão dela[3]. Como exemplo, Fernando Capez [4]cita: “cuspir, atirar urina, fazer gestos ultrajantes, xingar, dar uma bofetada na face, etc”. O crime de desacato é, portanto, um crime praticado por particular contra a Administração em geral, no qual o sujeito ativo é o autor de ofensas a funcionário público no exercício de suas funções e o sujeito passivo é o Estado.
Nesse sentido, é importante ressaltar que no último dia 15 de Dezembro de 2016 a quinta turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu descriminalizar a conduta de desacato[5], sob a alegação que a tipificação é incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos.
Nos termos do voto do relator, o STJ poderia realizar o chamado controle de convencionalidade, tendo como parâmetro superior o juízo de compatibilidade não só a Constituição da República, mas também diversos diplomas internacionais no campo dos Direitos Humanos subscritos pela República Federativa do Brasil, os quais formam o chamado “bloco de constitucionalidade” dispostos nos artigos o art. 5º, §§ 2º e 3º da CRFB.
Como bem anota Flávia Piovesan (2013.p. 170):
“O Direito Internacional dos Direitos Humanos pode reforçar a imperatividade de direitos constitucionalmente garantidos – quando os instrumentos internacionais complementam dispositivos nacionais ou quando estes reproduzem preceitos enunciados na ordem internacional – ou ainda estender o elenco dos direitos constitucionalmente garantidos – quando os instrumentos internacionais adicionam direitos não previstos pela ordem jurídica interna.”
No mencionado recurso, o Ministro Relator sustentou a tese de que “A Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH já se manifestou no sentido de que as leis de desacato se prestam ao abuso, como meio para silenciar ideias e opiniões consideradas incômodas pelo establishment, bem assim proporcionam maior nível de proteção aos agentes do Estado do que aos particulares, em contravenção aos princípios democrático e igualitário”.
O fato é que o crime de desacato é deveras utilizado subjetivamente, de maneira a intimidar e punir toda e qualquer conduta que seja direcionada ao funcionário público que se sinta ofendido no exercício de suas funções.
É comum encontrar nas repartições públicas brasileiras cartazes com a transcrição da conduta, capitulação do crime e sua pena, direcionados a toda e qualquer pessoa que se dirija ao recinto público. É notório que tal costume nada mais é que uma forma de intimidar o cidadão para não se opor a opiniões dos servidores que ali exercem seu mister.
É importante ressaltar que o princípio da liberdade de expressão é expressamente contido na Constituição Federal, sendo regra ampla e não dirigida a destinatários específicos. Neste sentido, leciona Marcelo Alexandrino (2012, p. 128); “A proteção constitucional engloba não só o direito de se expressar, oralmente, ou por escrito, mas também o direito de ouvir, assistir e ler”.
Reforça tal princípio a Convenção Interamericana de Direitos Humanos [6]cujo Brasil é signatário, mais precisamente seu art. 13 que prevê a liberdade de pensamento e expressão, traçando seus contornos fundamentais. No mesmo sentido, merece destaque a Declaração de Princípio sobre a Liberdade de Expressão[7] tendo tal documento como uma de suas finalidades a de contribuir para a definição da abrangência do garantia da liberdade de expressão assegurada no art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Dentre os princípios consagrados conferidos na referida declaração está o dispositivo nº 11 o qual proclama que “as leis que punem a expressão ofensiva contra funcionários públicos geralmente conhecidas como leis de desacato, atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação”.
Substanciando tal entendimento, cumpre informar que já existe desde 2012 a deliberação de juristas brasileiros responsáveis pela elaboração do anteprojeto de Novo Código Penal a sugestão da revogação do crime de desacato da legislação penal brasileira.[8]
3. CONCLUSÃO
Em primeiro momento, reconhecemos a inexistência de caráter vinculante na interpretação do tratado proferida pela instituição internacional e, por conseguinte, do controle difuso de convencionalidade exaurido pelo Superior Tribunal de Justiça. Consideramos, antes de qualquer juízo de valor, os princípios da fragmentariedade e da interferência mínima. Tais princípios nos informam que somente as condutas que violam bens jurídicos fundamentais devem ser objetos do Direito Penal.
Neste sentido, temos que as manifestações públicas proferidas pelo particular perante agente da Administração Pública, por mais indecorosas que sejam não são capazes de alçar a tutela penal. Pensar diferente é reconhecer o caráter autoritário da aplicação do crime de desacato, na medida em que cabe à própria autoridade ofendida definir o limite entre a crítica plausível e a que ofende o múnus público – numa notória subjetividade prejudicial ao estado democrático de direito. O dia-a-dia demonstra que a tendência é sempre achar que o particular está desrespeitando o agente público – o que retira a garantia constitucional da liberdade de expressão.
Sendo assim, conclui-se que o crime de desacato mesmo antes da decisão histórica e paradigmática do Superior Tribunal de Justiça esteve o tempo todo em conflito com princípios constitucionais basilares.
REFERÊNCIAS
Código Penal Comentado. Stela Prado e Fernando Capez, Ed. Verbo Jurídico, 2º edição,2.008.
PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª Ed. 2013 São Paulo: Saraiva.
PAULO, Vicente; Alexandrino, Marcelo. Direito Constitucional descomplicado. 8.ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012.
DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS SOBRE LIBERDADE DE EXPRESSÃO (Aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em seu 108º período ordinário de sesões, celebrado de 16 a 27 de outubro de 2000). Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/Basicos/Portugues/s.Convencao.Libertade.de.Expressao.htm> Acesso em 20 dez. 2016.
CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS (Assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969) Disponível em <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>
Acesso em 20 dez. 2016.
RELATÓRIO FINAL A COMISSÃO DE JURISTAS PARA A ELABORAÇÃO DE ANTEPROJETO DE CÓDIGO PENAL, criada pelo Requerimento nº 756, de 2011, do SENADOR PEDRO TAQUES, aditado pelo de nº 1.034, de 2011. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=110444&tp=1>
Acesso em 20 dez. 2016.
DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. – CÓDIGO PENAL BRASILEIRO. Disponível em <https://jus.com.br/artigos/997/desacato-art-331-do-codigo-penal> Acesso em 15 de dezembro de 2016.
Superior Tribunal de Justiça. RECURSO ESPECIAL Nº 1.640.084 – SP. Quinta Turma. Rel. Min. Marcelo Navarro Ribeiro Dantas. Em 15 de Dezembro de 2016. DJ 16/12/2016
[1] Disponível em <http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=11273>. Acesso em 15 de dezembro de 2016.
[2] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm Acesso em 15 de Dezembro de 2016.
[3] Disponível em <https://jus.com.br/artigos/997/desacato-art-331-do-codigo-penal> Acesso em 15 de dezembro de 2016.
[4] Código Penal Comentado. Stela Prado e Fernando Capez, Ed. Verbo Jurídico, 2º edição,2.008.
[5] RECURSO ESPECIAL Nº 1.640.084 – SP (2016/0032106-0) Disponível em: < http://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/Noticias/RECURSO%20ESPECIAL%20N%C2%BA%201640084.pdf>. Acesso em: 15 de dezembro de 2016.
[6] Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/Basicos/Portugues/s.Convencao.Libertade.de.Expressao.htm> Acesso em: 15 de dezembro de 2016.
[7] Disponível em <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm> acessado em Acesso em: 15 de dezembro de 2016.
[8] Disponível em <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=110444&tp=1> acessado em Acesso em: 15 de dezembro de 2016.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Cley Anderson de Queiroz. A descriminalização do desacato e os princípios da fragmentariedade e intervenção mínima Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 dez 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48412/a-descriminalizacao-do-desacato-e-os-principios-da-fragmentariedade-e-intervencao-minima. Acesso em: 22 nov 2024.
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