RESUMO: Para eliminar a lacuna que permite escapar da convicção pela doutrina da "cegueira deliberada", os Tribunais Superiores expandiram a definição de conhecimento de um fato para incluir a consciência de uma "alta probabilidade" de sua existência. A chamada "Teoria das Instruções da Avestruz" informa um que o conhecimento real e a evitação deliberada do conhecimento são os mesmos. A questão que esta abordagem levanta é se uma condenação baseada na "instrução de avestruz" é compatível com a exigência constitucional de que a acusação dever provar cada elemento do crime, incluindo o conhecimento, além de uma dúvida razoável. Embora reconhecendo a lacuna legal, o artigo conclui que a definição expandida de conhecimento do Modelo Código Penal é uma solução inaceitável. Em vez de conhecimento, é determinado que a cegueira deliberada constitui imprudência. A história da doutrina da ignorância deliberada é explorada, assim como sua aplicação na lei Brasileira. As definições filosóficas e jurídicas do conhecimento são discutidas. Conclui-se que uma revisão estatutária que acrescenta imprudência ou disposições específicas de ignorância deliberada como uma base alternativa para condenação limitaria a brecha e resolveria as questões constitucionais decorrentes das atuais práticas dos Tribunais Superiores.
Palavras-Chave: Cegueira Deliberada; Lavagem de Capitais; Doutrina.
ABSTRACT: To eliminate the gap that allows one to escape conviction by the doctrine of "deliberate blindness," the High Courts expanded the definition of knowledge of a fact to include awareness of a "high probability" of its existence. The so-called "Theory of Ostrich Instructions" informs one that real knowledge and deliberate avoidance of knowledge are the same. The question raised by this approach is whether a conviction based on "ostrich instruction" is consistent with the constitutional requirement that the prosecution must prove each element of the offense, including knowledge, in addition to reasonable doubt. While acknowledging the legal gap, the article concludes that the expanded definition of knowledge of the Criminal Code Model is an unacceptable solution. Instead of knowledge, it is determined that deliberate blindness is imprudent. The history of the doctrine of deliberate ignorance is explored, as is its application in Brazilian law. The philosophical and juridical definitions of knowledge are discussed. It follows that a statutory revision that adds imprudence or specific provisions of deliberate ignorance as an alternative basis for conviction would limit the loophole and resolve the constitutional issues arising from the current practices of the High Courts.
Key words: Deliberate Blindness; Money Laundering; Doctrine.
Sumário: 1. Introdução; 2. Instruções da Avestruz; 2.1 Histórico; 2.2 Interpretação dos Tribunais; 2.3 A Lavagem de Dinheiro com ênfase no Tráfico de Drogas; 2.4 Da Lavagem de Capitais e Antecedentes Criminais; 3. Aplicabilidade da Teoria da Cegueira Deliberada na Lei de Lavagem de Dinheiro e Capitais; Conclusão.
1 INTRODUÇÃO
A doutrina do direito penal da cegueira deliberada, ou "cegueira intencional", é uma área que levanta questões legais e filosóficas sobre o nível de convicção subjetiva e evidência objetiva que constitui conhecimento. O Professor Glanville Williams descreveu a cegueira intencional nos seguintes termos:
Um tribunal pode corretamente encontrar cegueira intencional apenas onde pode quase ser dito que o réu realmente sabia. Ele suspeitava do fato; Ele percebeu sua probabilidade; Mas ele se absteve de obter a confirmação final porque queria no caso de ser capaz de negar o conhecimento. Isso, e só isso, é cegueira intencional (ROBBINS, 1990 p. 191)
Um exemplo comum é o viajante que aceita uma grande soma de dinheiro de um estranho para transportar uma mala, mas escolhe não examinar o conteúdo por medo de descobrir contrabando. Essa tática parece preservar a defesa da ignorância quando o conhecimento é um elemento de uma ofensa. Ao abster-se de inquérito ou investigação, a maioria dos réus pode negar o conhecimento real dos fatos pertinentes e presumivelmente fugir convicção.
Considerando que a cegueira deliberada é uma tentativa culpada de enganar a justiça, os tribunais federais têm procurado eliminar a defesa expandindo a definição de conhecimento. Tradicionalmente, o conhecimento requer uma consciência real da existência de um fato particular. Os Tribunais Superiores rejeitaram seu padrão de conhecimento positivo em favor da abordagem do Código Penal Modelo: o conhecimento de um fato é estabelecido "se uma pessoa está ciente de uma alta probabilidade de sua existência, a menos que realmente acredite que ela não existe". Assim, a acusação só precisa mostrar que o réu reconheceu a probabilidade de um fato particular. Esta abordagem atinge muitos réus que, de outra forma, evitariam a condenação simplesmente ignorando suas suspeitas.
A questão jurídica central levantada por esta abordagem é se uma condenação baseada em uma ignorância deliberada, ou "avestruz", é compatível com a exigência constitucional de que a acusação dever obrigatoriamente provar cada elemento do crime, incluindo o conhecimento, além de uma dúvida razoável. A questão filosófica correspondente é saber se o conhecimento de um fato pode existir na certeza subjetiva ou confirmação objetiva.
Essas questões implicam tanto a relação entre o indivíduo e o Estado e a relação entre o Judiciário e o Legislativo. Se nenhuma das duas perguntas puder ser respondida afirmativamente, então uma condenação que for obtida violaria os direitos constitucionais do réu, porque o Estado não terá cumprido seu fardo de provar conhecimento. Além disso, se o judiciário substituir um estado mental menor pelo conhecimento prescrito legalmente, então ele invade a prerrogativa legislativa de definir a conduta criminosa.
Este artigo explora a doutrina da cegueira deliberada e reconhece que, através da lacuna fornecida pela defesa, o réu pode escapar da convicção mantendo a sua ignorância, apesar das indicações de que está envolvido numa atividade criminosa. Contudo, o artigo conclui que a abordagem de alta probabilidade de sua existência, é suficiente para justificar prova nos delitos em que a “Teoria da Cegueira Deliberada” seja demonstrada de forma substancial e inequívoca.
2 INSTRUÇÕES DA AVESTRUZ
2.1 HISTÓRICO
A Teoria da Cegueira Deliberada é uma doutrina criada pela Suprema Corte dos Estados Unidos e também é conhecida no meio jurídico com muitos nomes, tais como “Willful Blindness Doctrine” (Doutrina da cegueira intencional), “Ostrich Instructions” (instruções da avestruz), “Conscious Avoidance Doctrine” (doutrina do ato de ignorância consciente), “Teoria das Instruções da Avestruz”, entre outros (CABRAL, 2012).
A instrução da avestruz é uma instrução da qual possui a exigência de conhecimento para estabelecer uma mente culpada ( mens rea ), é satisfeita por cegueira deliberada - evasão deliberada de conhecimento. Ela surgiu a partir do caso de United States v. Jewell. Um caso criminal em que o tribunal considerou que a cegueira deliberada satisfez os requisitos de conhecimento de um fato.
O que houve é que Jewell foi abordado em um bar ao longo da fronteira norte entre o México e os Estados Unidos e depois de ter sido solicitado a comprar maconha, foi perguntado se ele dirigiria um carro pela fronteira por US$ 100. O carro foi parado na alfândega e a maconha foi encontrada no carro em um compartimento que Jewell tinha notado, mas não inspecionado.
A lei exigia o conhecimento de que a maconha estava no carro. O tribunal instruiu o júri que o "governo pode completar o seu ônus da prova, provando se o requerido não foi realmente ciente, sendo nessa parte considerado ignorante, era única e exclusivamente resultado de ter feito um propósito consciente sem ter certeza da natureza daquilo que estava no veículo."
O tribunal de apelação escreveu, "cegueira deliberada e conhecimentos positivos são igualmente culpados” uma vez que a pessoa sabe dos fatos de que é menos do que absolutamente certo. Para agir com conhecimento de causa, portanto, não é necessariamente a agir somente com o conhecimento positivo, mas também agir com consciência da alta probabilidade do fato em questão "conhecimento é estabelecido se uma pessoa está ciente de uma alta probabilidade de sua existência, a menos que ele realmente acredita que não existe".
2.2 INTERPRETAÇÃO DOS TRIBUNAIS
Os tribunais usam termos diferentes para se referir à Cegueira ou Ignorância deliberada - como ignorância intencional, cegueira intencional e evitação consciente. E eles têm um termo separado e informal para uma instrução de júri que lida com esse conceito - eles o chamam de instrução da avestruz, conforme visto no tópico anterior.
Um juiz pode dar a “instrução da avestruz” quando a evidência no julgamento poderia sugerir que a falta do conhecimento do acusado de um fato necessário para uma condenação resultou de cegueira deliberada. A instrução pode entrar em jogo, por exemplo, em uma conspiração caso, em que a acusação deve provar que o réu entrou em um acordo para cometer um crime. Um juiz pode dar a “instrução da avestruz” se houver evidência de que o réu conscientemente evitado conhecer os objetivos da conspiração.
Os Tribunais não devem interpretar negligência, erro ou descuido como cegueira intencional. Em vez disso, devem examinar se o requerido tinha conhecimento de uma elevada probabilidade do facto em questão e deliberadamente evitado confirmá-lo. Nesse sentido, a instrução da avestruz só é apropriada quando as circunstâncias indicam que a única maneira que o réu não poderia ter sabido sobre o fato é evitando o conhecimento dele.
Conforme Cabral (2012 p. 11),
Essa doutrina foi criada para as situações em que um agente finge não enxergar a ilicitude da procedência de bens, direitos e valores com o intuito de auferir vantagens. Dessa forma, o agente comporta-se como uma avestruz, que enterra sua cabeça na terra para não tomar conhecimento da natureza ou extensão do seu ilícito praticado.
Na realidade a inspiração para o nome “instrução da avestruz” provém do fato de o agente comporta-se como uma avestruz, que enterra sua cabeça na terra para não tomar conhecimento da natureza ou extensão do seu ilícito praticado. Motivo pelo qual, segundo Cabral (2012) é necessário que o agente tenha conhecimento da elevada possibilidade de que os bens, direitos ou valores sejam provenientes de crimes e que o agente tenha agido de modo indiferente a esse conhecimento.
Isso significa que a Teoria da Cegueira Deliberada tem como intuito levar a punição do agente que se coloca, intencionalmente, em estado de desconhecimento ou ignorância, para não conhecer detalhadamente as circunstâncias fáticas de uma situação suspeita.
2.3 A LAVAGEM DE DINHEIRO COM ÊNFASE NO TRÁFICO DE DROGAS
Assim, ao lado de uma tendência internacional de despenalizar (e ao invés, tratar) o usuário e o drogadicto, o que efetivamente foi alcançado na medida da evolução legal, há uma necessidade efetiva de diminuir e combater vivamente o tráfico. É ele um dos maiores gatilhos para impulsionar a “lavagem de dinheiro”, que é tornar capitais provenientes de lucros do crime em capitais aparentemente obtidos por meios legais.
Williams[1] explica que o termo “lavagem” se origina na Máfia Italiana dos anos 30, que era proprietária de várias lavanderias nos EUA, para dar aparência de honestidade ao capital obtido com atividade ilegal.
O sistema de “lavagem” ao longo dos anos se refinou, tornou-se mais complexo, mas basicamente é o mesmo: a disposição dos valores obtidos em contas (pulverização) em pequena quantidade de cada vez, de forma a não chamar atenção ao movimento bancário. São sempre transações pequenas, distribuídas em grande quantidade de contas e pequenos investimentos. Essas contas convergem aos poucos para outras, maiores, e daí integram fundos de empresas fictícias, investimentos em ações, em imóveis, em obras, em fundos de mercado, e finalmente em contas no estrangeiro. A pulverização é tamanha e o uso de “laranjas”, de nomes falsos, de documentos forjados é em tal quantidade que manter o fio da meada numa investigação é extremamente difícil.
No Brasil, e em muitos outros países, são comuns que sejam usados nomes e identidades de cidadãos inocentes nessas transações, mas, dentre estes muitos nomes, alguns voluntariamente colaboram e estão efetivamente envolvidos direta ou indiretamente com o narcotráfico. Nos Estados Unidos, a cifra em 2007 chega a 2 a 5% do PIB americano[2]. A cifra é de tal monta que chega, só em desvio de capitais, a mais de um trilhão de dólares/ano nos países em desenvolvimento. É o suficiente para corromper governos, armar verdadeiros exércitos, aliciar qualquer força armada institucional (polícia, forças militares, guardas de fronteiras, etc.).
Algumas das medidas tomadas pelo México no inicio do século XXI foram importantes e exemplares para deter a força do dinheiro do tráfico: limites cambiais de dólares por mês, ou de depósitos em moeda americana; limites para compra de automóveis, barcos, aviões; impedimento de compra de imóveis em espécie (sem declaração de origem). Com valores declarados, é mais fácil rastrear de onde vieram.
Ainda assim, é intensa a lavagem de dinheiro nos países em desenvolvimento, e é preciso um esforço conjunto para acabar com o grande traficante minando-lhe as forças. E isso somente se faz estrangulando os aportes financeiros.
Já desde a década de 70 que os EUA faziam pressão para legislações fortes de combate a lavagem de capitais, e aos poucos os demais países foram compreendendo que a diminuição do narcotráfico não é apenas a persecução e apreensão de drogas, pois estas raramente atingiam substancialmente o grande traficante. O mote seria o controle de riquezas e impedimento de reinvestimento nas armas, nos laboratórios, nas empresas fantasmas, na corrupção. O controle do dinheiro das drogas era, afinal, o controle do grande traficante.
2.4 DA LAVAGEM DE CAPITAIS E ANTECEDENTES CRIMINAIS
A Convenção das Nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas[3] (Convenção de Viena, ratificada pelo Brasil em 1991, pelo Decreto 154/1991) é quem inicia uma série de tratados internacionais a respeito de lavagem de capitais obtidos pelo tráfico. Esses tratados, regulamentados em cada país participante, induziu a penas fortes para crimes de corrupção, desvio e lavagem de dinheiro de drogas. A partir da Convenção de Viena, fica claro que há “vínculos existentes entre o tráfico ilícito de entorpecentes e outras atividades criminosas organizadas, que minam as economias lícitas e ameaçam a segurança e a soberania dos Estados. Afirma que os consideráveis rendimentos financeiros gerados pelo tráfico permitem às organizações criminosas transnacionais invadir, contaminar e corromper as estruturas da administração pública, as atividades comerciais e financeiras lícitas e a sociedade em todos os níveis” (DE CARLI, 2008).
A partir da década de 90 passam a surgir entidades internacionais de investigação e combate à lavagem de capitais oriundos do tráfico, com Recomendações e Regulamentações internacionais. Após a Convenção de Viena, diversos outros Tratados foram assinados, e surgiu também o CICAD (Comissão Interamericana para o Controle e Abuso de Drogas, 1992) da OEA, que pretende desenvolver estratégias continentais americanas de combate ao narcotráfico e práticas criminosas dele derivadas.
Na primeira e segunda cúpula das Américas (1994, Miami e 1998, Santiago) os países participantes ratificaram a importância da colaboração internacional para combater a lavagem de dinheiro como principal fator de enfraquecimento do narcotráfico e crimes correlacionados; posteriormente em Palermo a ONU forma a Convenção contra o Crime Organizado Internacional /2000), e os países participantes passam a se obrigar a criminalizar a participação em grupo criminoso organizado, que em nossa legislação dá origem à lei 96136/98, que passou a prever inicialmente o crime de lavagem de dinheiro como sendo:
Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime:
I - de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;
II - de terrorismo;
II – de terrorismo e seu financiamento; (Redação dada pela Lei nº 10.701, de 9.7.2003)
III - de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção;
IV - de extorsão mediante seqüestro;
V - contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos;
VI - contra o sistema financeiro nacional;
VII - praticado por organização criminosa.
VIII – praticado por particular contra a administração pública estrangeira (arts. 337-B, 337-C e 337-D do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal). (Inciso incluído pela Lei nº 10.467, de 11.6.2002)
Estes são os chamados “crimes antecedentes” da lavagem de dinheiro, crimes que necessariamente se ligam a lavagem de ativos pela necessidade de esconder a origem daqueles capitais. Assim, no Brasil e em âmbito internacional, crime organizado, tráfico de drogas, de armas, e lavagem de dinheiro estão intimamente ligados.
A lavagem de dinheiro é delito acessório, ou seja, pressupõe a existência de um crime anterior como antecedente lógico incontornável de sua ocorrência, nos moldes do que ocorre com a receptação. Juana Del Carpio Delgado escreve que no caso do crime de lavagem de dinheiro é necessário o cometimento de um crime antecedente como pressuposto essencial da tipificação.[4]
Há certa discussão, portanto, a partir da entrada das leis de lavagem de dinheiro e da lei de tóxicos, que deliberadamente usa a palavra “droga” para efetuar a vinculação com a lavagem de dinheiro, se o tráfico no caso é elemento normativo do tipo ou condição de punibilidade.
Souza (2007) esclarece que há uma tendência maior ao entendimento como elemento normativo do tipo, um fato prévio existente que configura o crime de lavagem de capitais. O crime de lavagem seria assim, acessório ao crime de trafico ou participação no tráfico,
Isso não interfere no fato de que ainda assim o crime de lavagem de dinheiro possa existir ainda que indeterminado o autor do crime de tráfico, conforme determina a própria Lei nº 9.613/98 em seu artigo 2º. Ele exige sim, que haja alguma certeza da existência do crime antecedente ao qual se vincula, ainda que não julgados, indeterminados todos os autores ou inimputáveis.
A tipificação se dá quando “o sujeito do delito prévio realiza condutas que constituem um novo delito autônomo, tipificado numa lei especial para penalizar precisamente condutas dirigidas a evitar o descobrimento por parte das autoridades do delito prévio cometido, não tem aplicação o autofavorecimento previsto no artigo 349 do Código Penal Brasileiro” (CALLEGARI, 2008 p. 91)
Na lei 11.343/06 há tipificação penal específica para quem financia ou custeia o tráfico (artigos 33/34) e já na anterior (10.409/02) havia evitado o termo “traficar” a cargo da lei de crimes hediondos:
Quanto ao artigo 14 do projeto, o primeiro do capítulo em comento, o tipo em questão já é contemplado pelo art. 12 da Lei nº 6.368/76, com a mesma cominação de pena. No projeto, todavia, dois verbos somaram-se aos verbos do tipo vigente: "financiar" e "traficar ilicitamente". Conquanto representassem, em tese, avanços legislativos, contêm o risco inadmissível, ainda que remoto, de provocar profunda instabilidade no ordenamento jurídico.
Veicula-se tese no meio jurídico pela qual a redação proposta pelo projeto no art. 14 promoveria uma "evasão de traficantes das prisões". Explique-se. O verbo "traficar" acrescentado pelo projeto, e que não aparece na lei vigente, poderia concentrar sobre si, em caráter exclusivo, a aplicação da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Crimes Hediondos), que impõe o cumprimento integral em regime fechado da pena para o crime de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. Em decorrência disso, apenados condenados por decisão judicial que contenha referência expressa a verbos como "produzir", "ter em depósito", por exemplo, não estariam submetidos à norma especial sobre o regime. Hediondo seria, por essa interpretação, apenas o verbo novo, o "traficar". Assim, por causa do princípio da irretroatividade da lei penal mais grave, todos indivíduos condenados e processados pelo tipo do art.12 da Lei nº 6.368/76, poderiam estar, automaticamente, descobertos pela Lei nº 8.072/90.[5]
O artigo 36 cria novo tipo penal quando determina:
Financiar ou custear a prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, "caput" e § 1°, e 34 desta Lei:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 20 (vinte) anos, e pagamento de 1.500 (mil e quinhentos) a 4.000 (quatro mil) dias-multa
Na verdade este novo tipo penal é o ato de financiar e ou custear, por sinal com as penas mais fortes da 11.343/06. E, portanto, não é crime antecedente, e sim tipo penal à parte, não constando, repise-se, como delito antecedente para crime de lavagem de dinheiro (SOUZA, 2007).
Enquanto o núcleo do tipo da lavagem é “ocultar/dissimular” (para o crime de tráfico, do qual é acessório), aqui é “custear/financiar”, crime diverso, nova figura criminal. Num há aquisição ou aumento de patrimônio (crime de lavagem) noutro, não é preciso que haja, ou por outra, é desnecessária a comprovação.
Sobravam criticas ao rol taxativo da lei de lavagem de dinheiro, pois teria deixado de lado crimes como tráfico de pessoas, os crimes contra a ordem tributária, e delitos como o jogo do bicho. Com a alteração dada a Lei nº 9.613, de 3 de março de 1.998, pela Lei nº 12.683 de, 9 de julho de 2012, retirou-se o rol taxativo existente, passando expressamente a constar em seu texto legal prevendo que qualquer infração penal constitui crime antecedente à lavagem de dinheiro.
Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. [6]
Assim sendo, cabe agora tratar sobre a aplicabilidade da Teoria da Cegueira Deliberada, dentro do contexto da nova redação do Inciso I do § 2º do artigo 1º da Lei de Lavagem de Dinheiro e Lavagem de Capitais.
3 APLICABILIDADE DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA NA LEI DE LAVAGEM DE DINHEIRO E CAPITAIS
A Lei nº 9.613, de 03 de março de 1998, que dispõe sobre os crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, da prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos em seu bojo, e dá outras providencias, em seu art. 1º, § 5º, prevê a redução da pena de um a dois terços, além do início do cumprimento da pena privativa de liberdade em regime aberto, na hipótese de o coautor ou partícipe prestar informações capazes de esclarecer os crimes ou localizar os bens, objetos ou valores relacionados à lavagem de dinheiro.
Anote-se que o texto da lei fala que a delação deve levar ao esclarecimento “das infrações penais”. Desta feita, a utilização do plural como uma forma de permitir que as informações prestadas sejam acerca do crime de lavagem ou de algum dos crimes antecedentes previstos no art. 1º da lei (BRASIL, 1998)
Por isso, os requisitos para caracterizarem uma colaboração eficiente são alternativamente dois: possibilitar o esclarecimento da autoria e materialidade, no caso de delação acerca dos crimes antecedentes ou da própria lavagem; ou localização dos bens ou valores que estavam sendo levados ao processo de branqueamento, este último requisito apenas para a delação limitada ao crime de lavagem.
Em observância ao Artigo 1º § 2º nota-se que incorre, na mesma pena quem: (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012) que utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração pena (reciclagem); (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012).
Conforme Badaró (2012) a intenção do inciso I, § 2º do artigo 1º parece ter sido tipificar as condutas da terceira etapa do ciclo de lavagem de dinheiro, ou seja, a integração dos bens na economia lícita, após a ocultação ou dissimulação.
A novidade provinda dessa nova redação, é que a supressão da expressão “que sabe” teve o claro objetivo de agregar a punição pelo dolo eventual no caso de uso de bens de origem suja.
Isso significa que o legislador estendeu a tipicidade àquele que suspeita da proveniência infracional dos bens, e ainda assim os utiliza na atividade econômica ou financeira, assumindo o risco de praticar lavagem de dinheiro (BADARÓ, 2012).
Neste caso, encontra-se a necessidade de evidencia da Teoria da Cegueira Deliberada ou das Instruções da Avestruz, cuja afirma que: atua dolosamente aquele que preenche o tipo objetivo ignorando algumas peculiaridades do caso concreto, por ter se colocado voluntariamente numa posição de alienação diante de situações suspeitas, procurando não se aprofundar no conhecimento das circunstâncias objetivas (BADARÓ, 2012).
Como se observa a teoria da cegueira deliberada imputa o crime em razão da assunção de um risco.
Considerando ainda que é um tipo de doutrina que permite que haja uma condenação criminal nos casos em que o Estado falha na produção de provas acerca do real conhecimento do réu sobre uma situação fática suspeita (ABRAMOWITZ & BOHRER, 2007).
Na realidade essa teoria, destaca um fato rude em termos de interpretação dos fatos, uma vez que compreende que apesar do acusado não ter conhecimento dos fatos, essa falta de conhecimento deve-se a prática de atos afirmativos de sua parte para evitar a descoberta de uma situação suspeita. Ou seja, ela permite que se presuma o conhecimento do acusado nos casos em que não há prova concreta do seu real envolvimento com a situação suspeita. O que leva a condenação do réu, apesar de não ter o real conhecimento da atividade criminosa.
Considerando que a prática nem sempre é o que se entende na teoria. Nascimento (2010) sustenta que:
“Para a teoria da cegueira deliberada o dolo aceito é o eventual. Como o agente procura evitar o conhecimento da origem ilícita dos valores que estão envolvidos na transação comercial, estaria ele incorrendo no dolo eventual, onde prevê o resultado lesivo de sua conduta, mas não se importa com este resultado. Não existe a possibilidade de se aplicar a teoria da cegueira deliberada nos delitos ditos culposos, pois a teoria tem como escopo o dolo eventual, onde o agente finge não enxergar a origem ilícita dos bens, direitos e valores com a intenção de levar vantagem. Tanto o é que, para ser supostamente aplicada a referida teoria aos delitos de lavagem de dinheiro “exige-se a prova de que o agente tenha conhecimento da elevada probabilidade de que os valores eram objeto de crime e que isso lhe seja indiferente”
Essa teoria tem sido aplicada no Brasil nos crimes de lavagem de dinheiro, mas já ocorre a sua aplicação em determinados crimes eleitorais, quando, p. ex., o candidato presenteia eleitores para a obtenção de voto.
Um exemplo de caso foi o furto no Banco Central em Fortaleza, em 06 de agosto de 2005, descrito por Monteiro (2015 p. 34):
[...] quando uma quadrilha furtou, através de um túnel exatos R$ 164.755.150,00 (cento e sessenta e quatro milhões, setecentos e cinqüenta e cinco mil, cento e cinqüenta de reais), sendo 3.295.103 notas de cinqüenta reais. Após o furto, membros da quadrilha deslocaram-se a uma concessionária, na qual compraram 11 automóveis com R$1.000.000 (um milhão de reais) em espécie.
O juiz de primeira instância aplicou a teoria em análise, haja vista que pelas circunstâncias (um milhão de reais em espécie) para a compra de 11 carros, os responsáveis pela concessionária “fingiram de bobo” (passaram-se por cego) para não saber a origem ilícita do dinheiro utilizado na compra dos veículos.
Em um primeiro momento, os envolvidos foram condenados com fulcro no art. 1º, § 2º, inc. I da Lei 9.613/98 (Lavagem de dinheiro, antiga redação anterior a Lei nº 12.603/2012):
Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime:
VII - praticado por organização criminosa.
Pena: reclusão de três a dez anos e multa.
§ 2º Incorre, ainda, na mesma pena quem:
I - utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo;
Porém, posteriormente, os responsáveis pela venda do veículo foram absolvidos, sob o fundamento de que a Lei de Lavagem de Capitais exige o dolo direito, e não o dolo eventual.
Essa aplicabilidade prática demonstra que a Teoria da Cegueira deliberada, impede que o agente infrator, fique impune. No caso supra mencionado, o vendedor, deveria ter procedido com cautela e tomar os cuidados e providencias necessárias para verificar a origem, a procedência ilícita do dinheiro recebido, do produto adquirido, etc., incorrendo em dolo eventual, se o crime admitir.
CONCLUSÃO
Verifica-se um grande avanço na forma de combate às drogas e mais especificamente ao narcotráfico no Brasil e no mundo. A evolução legal em poucas décadas é graças à colaboração internacional – vez que o tráfico, apesar de causar tantos danos a cada nação, é uma verdadeira praga mundial. O tráfico corrompe, empobrece, desvia verbas, mina a economia dos países e global, e a própria autonomia de cada nação.
A forma mais adequada de combater o narcotráfico – hoje se verifica com clareza – é estrangular-lhe o aporte financeiro, com legislação forte sobre a lavagem de dinheiro, que nada mais é que fazer com que capital ilícito pareça, ao cabo de algum tempo, lícito, através de seguidas pulverizações e concentrações.
A Teoria da Cegueira Deliberada destaca-se como uma das condições de combate ao crime de lavagem de capitais. Uma vez que se os envolvidos indiretos com o crime, forem penalizados, a tendência é que menos pessoas se envolvam nesse tipo de delito.
REFERÊNCIAS
ABRAMOWITZ, Elkan Abramowitz & BOHRER, Barry A. Conscious Avoidance: A Substitute for Actual Knowledge? New York Law Journal. Disponível em: <http://www.maglaw.com/publications/data/00130/_res/id=sa_File1/07005070001Morvillo.pdf>.
BRASIL. Lei n º 9.612, de 3 de março de 1998: Dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9613.htm>. Acesso em: 18 nov. 2016
CABRAL, Bruno Fontenele. Teoria da cegueira deliberada. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 17,n. 3193, 29 mar. 2012. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/21395>. Acesso em: 21 dez. 2016.
CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro: aspectos penais da lei n. 9.613/98. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008
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MONTEIRO, Alves Tatiana. Aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada no Brasil. Disponível em
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Disponível em: http://repositorio.uniceub.br/bitstream/123456789/800/1/20570516.pdf.
SOUZA, Alexis Sales de Paula e. O crime de financiar o tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1505, 15 ago. 2007. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/10277>.
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NOTAS
[1] WILLIAMS, Anthony. O tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro nas Américas. Disponível em http://www.dialogo-americas.com/pt/articles/rmisa/features/special_reports/2011/03/31/feature-ex-2036
2 WILLIAMS, Anthony. O tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro nas Américas. Disponível em http://www.dialogo-americas.com/pt/articles/rmisa/features/special_reports/2011/03/31/feature-ex-2036
3 Convenção das Nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas Texto disponível em: http://www.unodc.org/southerncone/pt/drogas/index.html, no Brasil regulada pela lei da lavagem de dinheiro (lei 9613/98), alterada pela lei 10467/02.
4 SOUZA, Alexis Sales de Paula e. O crime de financiar o tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1505, 15 ago. 2007. Disponível em: http://jus.uol.com.br/revista/texto/10277.
5 Veto Presidencial na Mensagem 25 – D.O.U de 11/01/2002 disponível em http://www.anvisa.gov.br/legis/leis/10409_02_veto.htm
6 LEI 12.683/2012, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12683.htm
[1] WILLIAMS, Anthony. O tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro nas Américas. Disponível em http://www.dialogo-americas.com/pt/articles/rmisa/features/special_reports/2011/03/31/feature-ex-2036
[2] WILLIAMS, Anthony. O tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro nas Américas. Disponível em http://www.dialogo-americas.com/pt/articles/rmisa/features/special_reports/2011/03/31/feature-ex-2036
[3] Convenção das Nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas Texto disponível em <http://www.unodc.org/southerncone/pt/drogas/index.html>, no Brasil regulada pela lei da lavagem de dinheiro (lei 9613/98), alterada pela lei 10467/02.
[4] SOUZA, Alexis Sales de Paula e. O crime de financiar o tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1505, 15 ago. 2007. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/10277>.
[5] Veto Presidencial na Mensagem 25 – D.O.U de 11/01/2002 disponível em http://www.anvisa.gov.br/legis/leis/10409_02_veto.htm
[6] LEI 12.683/2012, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12683.htm
Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes - UCAM. Especialista em Direito Ambiental. Graduado em Direito pela Universidade Tiradentes - UNIT. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ORICO, Alessandro Menezes. Lavagem de capitais e a teoria da cegueira deliberada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 dez 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48496/lavagem-de-capitais-e-a-teoria-da-cegueira-deliberada. Acesso em: 22 nov 2024.
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