Resumo: A interrupção da prestação de serviços públicos por inadimplência do particular ou do Estado sempre foi alvo de muitas polêmicas e divergências na doutrina e na jurisprudência. Diante do contexto atual de crise fiscal e econômica, o tema merece uma nova reflexão. Com o objetivo de solucionar diversas questões práticas, o estudo abordará diversas posições doutrinárias e jurisprudenciais, considerando as peculiaridades e as especificidades de casos concretos. Importante se mencionar que a obra tratará de forma especial a inadimplência por parte dos entes federados, tendo em vista a existência de outros princípios e dispositivos legais e constitucionais em jogo.
Palavras-chave: Inadimplência. Interrupção de serviços públicos. Continuidade dos serviços públicos. Inadimplência do particular. Direitos Fundamentais. Ponderação. Estado como devedor contumaz. Interesse público. Possibilidades. Limites. Soluções.
I- INTRODUÇÃO
Tendo em vista o cenário atual de crise sistêmica e de aumento da inadimplência, a polêmica relativa à possibilidade de interrupção de serviços públicos volta à baila.
A proposta desse estudo não passa pela construção de uma resposta pronta para as questões abordadas. Diante das peculiaridades dos casos concretos, o estudo tem por objetivo avaliar as soluções dadas pela doutrina e jurisprudência e ponderar os direitos, princípios e diplomas normativos em jogo de forma a buscar a solução mais adequada para um desses casos.
Reconhecidas as premissas do neoconstitucionalismo, da constitucionalização do direito administrativo e da centralidade dos direitos fundamentais no atual ordenamento jurídico, o estudo, em suas soluções propostas, primará pelas soluções que melhor atendam aos direitos fundamentais.
No entanto, por vezes, abordagens pragmáticas serão consideradas com vistas a evitar efeitos sistêmicos indesejáveis e deletérios à boa prestação de serviços públicos.
II- DA INTERRUPÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS POR INDIMPLÊNCIA DO PARTICULAR
Contemporaneamente, o princípio da continuidade é um dos mais prestigiados e comentados princípios em sede de serviços públicos. No entanto, as discussões relativas à viabilidade da interrupção de serviços públicos em razão do inadimplemento seguem atuais, dividindo a doutrina e a jurisprudência.
Durante os primeiros anos de vigência da Constituição de 1988 e do Código de Defesa do Consumidor, a doutrina e a jurisprudência se posicionavam pela impossibilidade da interrupção dos serviços públicos essenciais por inadimplemento baseadas na obrigação de fornecimento contínuo dos serviços essenciais, estipulada no art. 22 do CDC, assim como, na vedação à cobrança de débitos mediante constrangimento prevista no art. 42 do CDC.
Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.
Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.
Além disso, afirmava-se que o corte dos serviços públicos violaria o princípio da dignidade da pessoa humana e que tal suspensão seria uma forma abusiva de exercício da autotutela.
Posteriormente, com o advento da lei 8987/95, a questão ganhou novo relevo. Tal lei, em seu artigo 6º, § 3º, II, relativizou o princípio da continuidade do serviço público, passando a legitimar a interrupção fornecimento de serviços públicos em caso de inadimplemento.
Art. 6o Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
(...)
§ 3o Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:
(...)
II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.
A partir de então, baseada na inovação legislativa, outra corrente ganhou muita força. Passou-se a afirmar que a lei 8987, ao regulamentar dispositivo constitucional que cuida dos direitos dos usuários frente aos concessionários públicos, deveria ser considerada lei especial em relação ao CDC.
Além disso, os defensores dessa tese mais moderna alegavam que a impossibilidade de interrupção por inadimplência impactaria no equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão. Com isso, o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro dependeria de subsídios internos ou externos. No caso dos subsídios internos, o ônus recairia sobre os demais usuários adimplentes, vulnerando o princípio da modicidade tarifária. Já o subsídio externo importaria numa compensação por parte do já combalido Erário. Portanto, de uma forma ou de outra, toda a coletividade seria impacta pelos efeitos da inadimplência alheia.
Outro ponto levantado é a questão dos meios de cobrança. Apesar dos problemas trazidos com o corte, este seria o meio mais razoável para a obtenção do valor devido. É notório que os longos e custosos processos judiciais não compensam o baixo valor de cada ação individualmente considerada.
Por fim, autores que se posicionam no sentido da possibilidade da suspensão do fornecimento lembram que, em matéria de serviços públicos facultativos, a obrigação de continuidade pressupõe o dever de lealdade e boa-fé entre os contratantes, ou seja, o adimplemento contratual mútuo. Nesse sentido, Rafael Oliveira e Alexandre Aragão.
Tais teses passaram a dividir a doutrina e a própria jurisprudência do STJ. A 1ª turma de tal Tribunal entendia pela impossibilidade da interrupção. Nesse sentido:
“1. É condenável o ato praticado pelo usuário que desvia energia elétrica, sujeitando-se até a responder penalmente.
2. Essa violação, contudo, não resulta em reconhecer como legítimo ato administrativo praticado pela empresa concessionária fornecedora de energia e consistente na interrupção do fornecimento da mesma.
3. A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção.
4. Os arts. 22 e 42, do Código de Defesa do Consumidor, aplicam-se às empresas concessionárias de serviço público.
5. O corte de energia, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade.
6. Não há de se prestigiar atuação da Justiça privada no Brasil, especialmente, quando exercida por credor econômica e financeiramente mais forte, em largas proporções, do que o devedor. Afronta, se assim fosse admitido, aos princípios constitucionais da inocência presumida e da ampla defesa.”
7. O direito do cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza.’’[i]
Já a 2ª turma entendia de forma diversa, vejamos:
- “Há expressa previsão normativa no sentido da possibilidade de suspensão do fornecimento de energia elétrica ao usuário que deixa de efetuar a contraprestação ajustada, mesmo quando se tratar de consumidor que preste serviço público (art. 6º, § 3º, da Lei n. 8.987/95 e art. 17 da Lei n. 9.427/96).”
Por conta de tal dissídio jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça reuniu as duas turmas com o objetivo de pacificar a controvérsia no julgamento do Resp 363.943- MG. O Ministro-Relator Humberto Gomes de Barros em lapidar voto-relatório destaca os argumentos trazidos pela corrente autorizativa do ‘‘corte’’. Além disso, traz importante argumento de cunho pragmático que merece transcrição:
‘‘(...) a proibição acarretaria aquilo a que se denomina “efeito dominó”. Com efeito, ao saber que o vizinho está recebendo energia de graça, o cidadão tenderá a trazer para si o tentador benefício. Em pouco tempo, ninguém mais honrará a conta de luz.
Ora, se ninguém paga pelo fornecimento, a empresa distribuidora de energia não terá renda. Em não tendo renda, a distribuidora não poderá adquirir os insumos necessários à execução dos serviços concedidos e, finalmente, entrará em insolvência.
Falida, a concessionária, interromperia o fornecimento a todo o município, deixando às escuras, até a iluminação pública.’’[ii]
Em sentido diverso, o respeitável voto vencido de Luiz Fux, que também merece parcial transcrição, ressalta os argumentos da corrente que rechaça a possibilidade suspensão de serviços públicos por inadimplência e as particularidades do caso concreto, vejamos:
‘‘Em primeiro lugar, entendo que, hoje, não se pode fazer uma aplicação da legislação infraconstitucional sem passar pelos princípios constitucionais, dentre os quais sobressai o da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República e um dos primeiros que vem prestigiado na Constituição Federal. Não estamos tratando de uma empresa que precisa da energia para insumo, tampouco de pessoas jurídicas portentosas, mas de uma pessoa miserável e desempregada, de sorte que a ótica tem que ser outra. Como disse o Sr. Ministro Francisco Peçanha Martins noutra ocasião, temos que enunciar o direito aplicável ao caso concreto, não o direito em tese. Penso que tínhamos, em primeiro lugar, que distinguir entre o inadimplemento de uma pessoa jurídica portentosa e o de uma pessoa física que está vivendo no limite da sobrevivência biológica. É mister fazer tal distinção, data maxima vênia.’’
Ao final, sagrou-se vencedora a tese que, nos termos do artigo 6º, § 3º, II da lei 8987/95, relativiza o princípio da continuidade do serviço público, autorizando a suspensão por inadimplemento.
ADMINISTRATIVO - ENERGIA ELÉTRICA - CORTE – FALTA DE PAGAMENTO
- É lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica, se, após aviso prévio, o consumidor de energia elétrica permanecer inadimplente no pagamento da respectiva conta (L. 8.987/95, Art. 6º, § 3º, II).[iii]
No mesmo sentido, o enunciado de súmula 83 do TJ-RJ:
"É lícita a interrupção do serviço pela concessionária, em caso de inadimplemento do usuário, após prévio aviso, na forma da lei."
Apesar de vencedora, a tese autorizativa merece certos temperamentos à luz da ponderação de valores constitucionais. Não é concebível que se busque aplicar tal tese de forma irrestrita. O julgador deve ser sensível às situações excepcionais. Certamente, em casos peculiares, como o de pacientes que se utilizam de atendimento ‘‘home-care’’, de hospitais e de pessoas em situação de extrema miserabilidade, a autorização do corte não seria a medida mais adequada num juízo de ponderação, pois a mesma acabaria por conflitar com os núcleos essenciais do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) e do direito à vida (art.5º, caput, da CF).
Em não se admitindo o corte nesses casos excepcionais, o equilíbrio econômico-financeiro estará prejudicado, devendo o poder concedente indenizar o concessionário. Essa parece ser a melhor solução, visto que a mesma permite a harmonização dos interesses dos concessionários e dos usuários, e ao mesmo tempo, retira o incentivo à inadimplência. Além disso, é importante salientar que o Erário não será tão onerado, visto que o mesmo só será afetado em casos excepcionais, onde a suspensão de fornecimento não seja adequada.
III- O PODER PÚBLICO COMO CONSUMIDOR INADIMPLENTE
Ultrapassada a questão relativa à viabilidade da suspensão do fornecimento de serviços públicos facultativos aos consumidores ‘‘comuns’’, é importante analisar a situação em que o usuário do serviço público delegado é a própria Administração Pública. Tal questão é extremamente relevante no cenário atual, tendo em vista a situação de penúria em que se encontram diversos estados e municípios espalhados pelo país. Além disso, é relevante considerar as diversas atividades essenciais desempenhadas pelos entes estatais.
Diante desse contexto, surgem as questões a serem abordadas no presente tópico: Seria possível suspender o fornecimento do serviço público quando o Poder Público usuário estiver inadimplente? Como ficaria a questão das atividades ligadas às necessidades inadiáveis da população?
Inicialmente, é importante destacar que o Superior Tribunal de Justiça- STJ, em diversos julgados, vem reconhecendo a viabilidade da suspensão do fornecimento de serviços públicos facultativos aos órgãos e entidades administrativas em inadimplência, salvo nas hipóteses de unidades responsáveis pela prestação de serviços essenciais e inadiáveis à população. Tal exceção se justifica, pois em última análise, a interrupção de serviços públicos concedidos poderia afetar a continuidade de outros serviços inadiáveis prestados pelo poder público à sociedade.
Diante da dificuldade na definição do conceito juridicamente indeterminado ‘‘atividades essenciais’’, o STJ costuma se socorrer da Lei 7.783/89, que versa sobre o direito de greve dos trabalhadores submetidos à CLT, aplicando analogicamente os artigos 10 e 11 da mesma.
Art. 10 São considerados serviços ou atividades essenciais:
I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;
II - assistência médica e hospitalar;
III - distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;
IV - funerários;
V - transporte coletivo;
VI - captação e tratamento de esgoto e lixo;
VII - telecomunicações;
VIII - guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares;
IX - processamento de dados ligados a serviços essenciais;
X - controle de tráfego aéreo;
XI compensação bancária.
Art. 11. Nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
Parágrafo único. São necessidades inadiáveis, da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.
Com isso, o STJ tem definido alguns exemplos de serviços essenciais ligados a atividades-fins do Estado que estariam resguardados da suspensão de fornecimento: unidades hospitalares, creches, escolas, delegacias, entre outras.
Por outro lado, tem-se afirmado a tese de que unidades não essenciais responsáveis por atividades-meio do Estado estariam sujeitas ao ‘‘corte’’. Podemos citar, por exemplo: ginásio de esportes, parques públicos, almoxarifado, depósitos, entre outros.
O Superior Tribunal de Justiça possui relevantes julgados recentes nesse sentido, vejamos:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. ART. 535 DO CPC. VIOLAÇÃO NÃO CONFIGURADA. ENERGIA ELÉTRICA. POSTO DE SAÚDE MUNICIPAL INADIMPLENTE. FORNECIMENTO. CORTE. ART. 6, § 3º, INCISO II, DA LEI Nº 8.987/95 E ART. 17 DA LEI Nº 9.427/96. 1. Todas as questões relevantes ao deslinde da controvérsia foram dirimidas de forma efetiva, sólida e integral, razão pela qual não resta configurada a falha de negativa de jurisdição. 2. É lícito ao concessionário de serviço público interromper, após aviso prévio, o fornecimento de energia elétrica de ente público que deixa de pagar as contas de consumo, desde que não aconteça de forma indiscriminada, preservando-se as unidades públicas essenciais. 3. A interrupção de fornecimento de energia elétrica de Município inadimplente somente é considerada ilegítima quando atinge as unidades públicas provedoras das necessidades inadiáveis da comunidade, entendidas essas – por analogia à Lei de Greve – como "aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população". 4. No caso concreto, indevido o corte de energia elétrica no posto de saúde municipal porquanto colocará em risco a saúde da coletividade. 5. Recurso especial não provido.[iv]
1. O Município de Campina Grande-PB impetrou mandado de segurança, com pedido de concessão de liminar, contra a "Companhia de Água e Esgotos da Paraíba - CAGEPA", objetivando que a concessionária de serviço público restabelecesse o fornecimento de água para quatorze órgãos do Município, ao argumento de que "o serviço de fornecimento de água ao Impetrante não poderia ter sido interrompido pela Autoridade Coatora com base no art. 40, V, da Lei Federal n. 11.445/2007, já que o Impetrante, no presente caso, não é um mero usuário do serviço prestado pela CAGEPA, mas, sim, o próprio titular do serviço " (fl. 159). Narrou o impetrante que teve o fornecimento de água suspenso em razão de suposto débito contraído no ano de 1999 com a concessionária impetrada. O Juízo de 1º grau deferiu o pedido de liminar, determinado o imediato restabelecimento dos serviços de água e esgoto aos órgãos municipais relacionados pelo ente federativo. Entendendo presente grave lesão à ordem e à economia públicas, a "CAGEPA" formulou pedido de suspensão de liminar perante a Presidência do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba, que o deferiu, para determinar a suspensão da medida liminar anteriormente concedida. Daí o presente pedido de suspensão, fundado nos arts. 4º da Lei n. 8.437/92, 25 da Lei n. 8.038/90 e 271 do RISTJ, no qual o Município de Campina Grande alega, em síntese, lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas. Para tanto, sustenta que “o corte no fornecimento de água efetuado pela CAGEPA atingiu o coração da administração pública municipal, pois foi direcionado aos seus principais órgãos, responsáveis pelo funcionamento da máquina administrativa e pela prestação dos principais serviços à população" (fl. 7). 2. A suspensão é medida excepcional e sua análise deve restringir-se à verificação da lesão aos bens jurídicos tutelados pela norma de regência, quais sejam, a ordem, a saúde, a segurança e a economia públicas. Observe-se, de início, que o Juízo de 1º grau, assentando a importância da prestação dos serviços públicos essenciais, concedeu a liminar por considerar que "não trata apenas do corte de água promovido pela concessionária em face de um consumidor isolado, mas sim em face do Município e suas repartições, prejudicando desta forma, a expectativa da população na utilização de serviços públicos relevantes, pondo em risco, ainda, a ordem pública e atingindo a coletividade municipal como um todo" (fl. 72). Tal entendimento coaduna-se com a jurisprudência desta Corte, que – não obstante oriente-se no sentido de que seja garantido o equilíbrio econômico-financeiro da relação jurídica entre o ente federado e a concessionária de serviço público – assegura o fornecimento do serviço às unidades prestadoras de serviços essenciais. Conforme bem asseverou, em caso semelhante, o em. Min. Castro Meira no julgamento do REsp n. 791.713/RN, de sua relatoria, “a interrupção de fornecimento de energia elétrica de Município inadimplente somente é considerada ilegítima quando atinge as unidades públicas provedoras das necessidades inadiáveis da comunidade, entendidas essas – por analogia à Lei de Greve – como 'aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população' ”. No mesmo sentido, confira-se o REsp n. 721.119/RS, rel. Min. Luiz Fux, entre outros. Por outro lado, bem observou o Juízo de 1º grau, que "o fornecedor do serviço público dispõe dos mecanismos legais para se ressarcir, mediante ação judicial própria, na forma do art. 39 da Lei Federal n. 8.987/95, não se tendo notícias nos autos de qualquer demanda judicial proposta pela concessionária " (fl. 73). Desta forma, não se mostra razoável a interrupção do referido serviço público, a impactar, de forma direta, os serviços essenciais prestados à municipalidade, o que autoriza, neste momento, o deferimento do pedido. 3. Posto isso, defiro o pedido, a fim de suspender os efeitos da decisão proferida pelo Presidente do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba, nos autos do Pedido de Suspensão n. 001.2007.024313-2/001.[v]
IV- CONCLUSÃO
No decorrer do trabalho vimos a evolução doutrinária e jurisprudencial da polêmica relativa à possibilidade de suspensão do fornecimento de serviços públicos por inadimplemento do usuário. Posteriormente, discutimos as peculiaridades das duas principais correntes e pudemos observar que a jurisprudência pátria atual parece ter optado pela tese mais adequada ao conflito. Tal tese, em regra geral, autoriza o ‘‘corte’’ de serviços públicos por inadimplemento tanto no caso do usuário comum como no caso da Administração Pública usuária.
No que se refere aos usuários particulares vimos que a viabilidade do ‘‘corte’’ deve ser vista com certos temperamentos, visto que o mesmo não parece ser a medida mais adequada para casos como o de hospitais particulares, de usuários em estado extrema miserabilidade ou de usuários que dependam da continuidade da prestação dos serviços públicos para a manutenção da vida.
No que se refere à Administração Pública usuária é fundamental distinguir as atividades estatais essenciais e inadiáveis das atividades não-essenciais. No primeiro caso, o corte jamais deverá ser autorizado, visto que a interrupção do serviço acabaria impactando os serviços prestados por tais órgãos e entidades. No outro caso, a interrupção deve ser considerada idônea, pois permite que o concessionário tenha meios para se defender da famosa e lamentável inadimplência contumaz do administrador público.
Por fim, é importante se ressaltar a lição de José dos Santos Carvalho Filho que, apesar das restrições à interrupção fornecimento de serviços públicos aos órgãos e entidades prestadores de serviços essenciais, indica como cabível e indicada a responsabilização política, administrativa e criminal dos agentes políticos responsáveis pela inadimplência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Aragão, Alexandre Santos de- Direito dos serviços públicos- 3. Ed.- Rio de Janeiro: Forense, 2013
Carvalho Filho, José dos Santos Manual de direito- 23. ed. rev., ampl. e atualizada até 31.12.2009. – Rio de Janeiro : Lúmen Júris, 2010
Oliveira, Rafael Carvalho Rezende. Administração pública, concessões e terceiro setor- Rafael Carvalho Rezende Oliveira- 2. Ed. rev., atual. e ampl.- Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2011
ROCHA, Fábio Amorim da. A Legalidade da Suspensão do Fornecimento de Energia Elétrica aos consumidores inadimplentes, Ed. Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 2004
NOTAS
[i] RMS 8.915- Relator: José Delgado. Superior Tribunal de Justiça. Julgado em 12.08.1998 DJU 17.08.1998
[ii] RESP 400.909- Relator: Franciuilli Netto. Superior Tribunal de Justiça. Julgado em 24.06.2003 DJU 15.09.2003
[iii] RESP 363.943- Relator: Humberto Gomes de Barros. Superior Tribunal de Justiça. Julgado em 10.12.2003 DJU 01.03.2004
[iv] RESP 831.010- Relator: Castro Meira. Superior Tribunal de Justiça. Julgado em 26.08.2008 DJU 25.09.2008
[v] SS 1764/PB- Relator: Ministro Francisco Peçanha Martins. Superior Tribunal de Justiça. Julgado em 27.11.2008 DJU 16.03.2009
Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro- PUC-Rio, pós-graduado em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) e advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Artur Lara. Interrupção de serviços públicos pelo inadimplemento: possibilidades, limites e soluções Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jan 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48518/interrupcao-de-servicos-publicos-pelo-inadimplemento-possibilidades-limites-e-solucoes. Acesso em: 22 nov 2024.
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