RESUMO: Trabalho descritivo, que tem como objetivo a divergência doutrinária a respeito da possibilidade de consideração de excludentes de ilicitude pelo Delegado de Polícia na ocorrência de prisão em flagrante. Seu objetivo foi comprovar a sua regularidade perante o ordenamento jurídico. O recurso metodológico escolhido para a apresentação temática foi o de pesquisa bibliográfica. Explanamos as diversas opiniões de doutrinadores a respeito do tema. Concluímos com reflexões sobre a atuação da Autoridade Policial na verificação da ocorrência de infrações penais.
Palavras-chave: Delegado de Polícia. Excludentes de ilicitude. Reconhecimento. Possibilidade.
INTRODUÇÃO
Corriqueiramente presenciamos discussões acerca da adequação do ato de Autoridade Policial que deixa de ratificar a prisão em flagrante quando o conduzido agiu amparado por excludente de ilicitude.
Eventualmente nos deparamos, seja em noticiários, seja na prática policial, com afirmação de que não cabe ao delegado verificar a presença de descriminantes ou justificantes penais, pois ele deve se restringir apenas a averiguar a adequação entre conduta do agente e o tipo penal (tipicidade formal).
Neste trabalho veremos os argumentos a favor e contra tal assunto, pois caloroso é tal debate.
Portanto, este trabalho visa levar o leitor a se questionar, considerando todos os pontos relevantes se, de fato, é esta a intenção do legislador e juntos chegarmos a uma conclusão serena e responsável sobre a presente contenda.
DESENVOLVIMENTO
Parte relevante da doutrina defende a impossibilidade de o Delegado de Polícia deixar de realizar a prisão em flagrante delito em razão da aplicação dos excludentes de ilicitude, afirmando que esta verificação é atribuição do Juiz no instante em que recepciona a comunicação do Auto de Prisão em Flagrante, considerando o que prevê o Código de Processo Penal em seu artigo 310, III: "Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: [...] III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança".
Inicialmente, devem-se considerar as atribuições da Autoridade Policial na condução de investigações sob sua responsabilidade. Determina o art. 4º do CPP que: "A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria" (grifo nosso).
Nessa toada, a Lei 12.830/2013, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida por Delegado de Polícia, assim trata do tema:
Art. 4º A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.
§ 1º Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais. (grifo nosso)
Vê-se que o legislador deixa clara a sua intenção de atribuir ao Delegado a responsabilidade da apuração de infrações penais (autoria, materialidade e circunstâncias), vontade esta que, associada à terminologia usada no comando legal, é o pressuposto do presente trabalho.
Entende-se infração penal toda ação ou omissão definida como ilícita através de preceito legal e pressupõe dolo ou culpa – esta, caso haja previsão legal- do agente (culpabilidade). Subdivide-se ainda em crime e contravenção, a depender do tratamento que der o legislador, com a cominação de prisão, detenção ou multa para aquele; de prisão simples ou multa para esta.
Em continuação, adota-se no Brasil, segundo doutrina majoritária e Tribunais Superiores, a teoria analítica tripartida do crime, na qual se exige para a sua configuração a existência de: fato típico, fato ilícito e culpabilidade do agente. Outrossim, destrinchando-o um pouco mais, o integram estes três elementos citados, respectivamente: conduta, tipicidade – estes, essenciais -, nexo causal e resultado – aqui, eventuais, pois presentes apenas nos crimes materiais -; conduta típica injustificada e antinormatividade; e imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.
As excludentes de ilicitude, que eliminam o fato antijurídico e, consequentemente, o crime, são a legítima defesa, o estado de necessidade, o exercício regular de direito e o estrito cumprimento do dever legal. Portanto, para ao diagnóstico da existência ou não de uma transgressão penal, é indispensável a verificação da presença ou não destas justificantes/descriminantes penais.
Sobre o assunto, leciona o ilustre Miguel Reale Jr.:
Para que se qualifique uma ação como crime, é necessário, segundo a doutrina predominante, que não só haja identidade entre a conduta paradigmática e a conduta concreta, mas é preciso também que essa conduta seja antijurídica e culpável. (REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do Delito. p. 38.)
Retomando os deveres legais atribuídos ao Delegado de Polícia, deve ele, que atua em um primeiro momento da persecução penal em contato hodierno com as provas da infração, deve averiguar autoria, materialidade e todas as circunstâncias do crime. Então, considerando que as excludentes de ilicitude integram o crime e cujos aspectos são circunstâncias deste, é evidente que elas devem ser averiguadas pelo Delegado e consideradas em suas deliberações, pois a esta autoridade cabe a análise, como um todo, da existência ou não do crime.
Nesta linha, asseveram os doutrinadores:
Certo é que não se encontra proibição para que o delegado de polícia faça uma avaliação do fato levando em consideração elementos que apontem para as excludentes de ilicitude. Na verdade, a lei adjetiva, por diversos dispositivos, refere-se à infração penal ou crime, nunca aos componentes do crime (tipicidade, ilicitude, culpabilidade e outros), não se mostrando indevida a incursão pela autoridade policial nessa seara, mesmo que de modo superficial. [...] O delegado de polícia, importa enfatizar, possui grande importância no sistema penal, sendo a primeira autoridade que o ordenamento jurídico determina que analise o fato criminoso. Não é ele um frio e inveterado aplicador das normas estabelecidas, sendo permitido interpretar e aplicar o seu entendimento e, conquanto possa estar sujeito a eventuais críticas, tomando posições sólidas e bem fundamentadas, deverá ter em mente que emprestou sua colaboração para que se viva em um Estado Democrático de Direito, que é o fim último de todo agente do Estado. (BIANCHINI, Alice; MARQUES, Ivan Luis; GOMES, Luiz Flavio; CUNHA, Rogério Sanches; MACIEL, Silvio. Prisão e medidas cautelares. p. 139.)
Não pode haver situação de flagrante de um crime que não existe (considerando-se os elementos de informação existentes no momento da decisão da autoridade policial). O delegado de polícia analisa o fato por inteiro. A divisão analítica do crime em fato típico, ilicitude e culpabilidade existe apenas para questões didáticas. Ao delegado de polícia cabe decidir se houve ou não crime. (AVENA, Norberto. Processo penal esquematizado. p. 889-890.)
Todavia, parte considerável da doutrina sustenta, numa posição conservadora, que a atuação da Autoridade Policial de se restringir a verificação da presença da tipicidade formal (que é a adequação da conduta à previsão legal como infração penal).
Vejamos a lição de Nucci: "[...] confirmado o fato, a autoridade policial deve lavrar, sempre, o auto de prisão em flagrante tão- logo tome conhecimento da detenção ocorrida, realizando apenas o juízo de tipicidade, sem adentrar as demais excludentes do crime.". (NUCCI. Código de Processo Penal Comentado. 2015. p. 716).
Segundo o raciocínio supracitado, caso o Delegado se depare com, por exemplo, um cenário de flagrante de um policial que, em evidente situação de legítima defesa, matou o algoz de terceiro, ou ainda de uma mulher para não ser estuprada ceifa seu agressor, deverá a autoridade prendê-los para que, só após, o juiz conceda-lhes a liberdade provisória.
Não parece que seja este o desejo do legislador, pois uma análise através de interpretação isolada, em sentido contrario, de um artigo do CPP pode levar a situações esdrúxulas como as acima apontadas. O ordenamento jurídico deve ser interpretado como um todo, conforme ensinam os mestres, além de que a atividade do Delegado de Polícia (função de caráter jurídico, conforme art. 3º da Lei 12.830/13) não deve ser resumir a uma associação automática dos tipos penais, pois a ele incumbe a missão de velar pela boa aplicação do direito em um quadro amplo.
Caso o delegado entenda que não há crime (de acordo com a teoria analítica tripartida), deverá ele determinar a insubsistência do flagrante e efetivará a soltura do conduzido, através de leitura do art. 304 §1 CPP, a contrario sensu: "Resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão, exceto no caso de livrar-se solto ou de prestar fiança, e prosseguirá nos atos do inquérito ou processo, se para isso for competente; se não o for, enviará os autos à autoridade que o seja.".
Neste sentido, afirma Capez que:
A autoridade policial, sendo autoridade administrativa, possui discricionariedade para decidir acerca da lavratura ou não do auto de prisão em flagrante. Sempre considerando que, nessa fase, vigora o princípio in dubio pro societate, e que qualquer juízo exculpatório se reveste de arrematada excepcionalidade, o delegado de polícia pode recusar-se a ratificar a voz de prisão emitida anteriormente pelo condutor, deixando de proceder à formalização do flagrante e, com isso, liberando imediatamente o apresentado. Não se trata aqui, a nosso ver, de relaxamento de prisão, uma vez que ela não chegou sequer a ser efetivada, tampouco formalizada. Melhor definir tal hipótese como recusa em iniciar a prisão, ante a ausência de requisitos indiciários mínimos da existência de tipicidade ou antijuridicidade. Evidentemente, a autoridade policial não precisa prender em flagrante, vítima de estupro ou roubo que, claramente em situação de legítima defesa, matou seu agressor. O juízo sumário de cunho administrativo pode ser efetuado, ainda que isso só possa ocorrer em situações absolutamente óbvias e claras de ausência de infração penal. (CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. Pág.261.)
Percebe-se que o pensamento do autor supracitado se alinha com a visão mais moderna sobre a liça, pois enxerga o Delegado de Polícia como sujeito da persecução penal capaz e imbuído da missão de velar pela integral aplicação do direito ao caso palpável.
CONCLUSÃO
Ante o exposto, concluímos que o ordenamento jurídico brasileiro, de forma integrada, possibilita a análise de eventual causa que exclua a ilicitude do fato (e, consequente, também o crime) pelo Delegado de Polícia no momento da lavratura de Auto de Prisão em Flagrante.
Exige-se da citada autoridade uma atuação efetiva na verificação da presença de todos os elementos do crime, pressupostos de sua existência. Portanto, não se demonstra correto que determinado agente que amparado por legítima defesa, por exemplo, seja submetido ao cárcere até que seja seu caso apreciado pela Autoridade Judicial, considerando ainda que, apesar da importantíssima inovação através das audiências de custódia, grande parte dos rincões do nosso país ainda não conta com o referido instituto.
Então, através de simplório silogismo, partimos das seguintes premissas: se o agente atua amparado em excludente de ilicitude, não há crime; e ao delegado de polícia cabe averiguar a prática do crime, ratificando a prisão em flagrante caso positivo. Logo, não havendo crime, não deverá a Autoridade Policial ratificar a prisão que lhe foi apresentada.
Adotando a prática aqui defendida, evitam-se enormes distorções que verificamos em nosso sistema carcerário, onde, não muito raramente, pessoas se veem tolhidas de sua liberdade e aguardam meses ou até anos para que tenham seus casos analisados pelo judiciário quando, na verdade, deveriam desfrutar de sua liberdade.
REFERÊNCIAS
AVENA, Norberto. Processo penal esquematizado. São Paulo: Método, 2013.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2001
BIANCHINI, Alice; MARQUES, Ivan Luis; GOMES, Luiz Flavio; CUNHA, Rogério Sanches; MACIEL, Silvio. Prisão e medidas cautelares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 01 de dezembro de 2016.
_____. Código de Processo Penal, 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>. Acesso em: 01 de dezembro de 2016.
_____. Código Penal, 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 01 de dezembro de 2016.
_____. Lei Nº 12.830, de 20 de junho de 2013. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12830.htm>. Acesso em: Acesso em: 01 de dezembro de 2016.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 10ª edição. Editora Saraiva, 2003.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 716.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PONTES, Diogo Santiago Barbosa. As excludentes de ilicitude na lavratura de auto de prisão em flagrante Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jan 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48605/as-excludentes-de-ilicitude-na-lavratura-de-auto-de-prisao-em-flagrante. Acesso em: 22 nov 2024.
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