Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a possibilidade do Poder Judiciário fiscalizar a administração pública quanto à realização do transporte das pessoas privadas de liberdade.
Palavras-chave: Processo Penal. Transporte de Presos. Ofensa à Dignidade da Pessoa Humana. Nulidade. Controle de Legalidade de Políticas Públicas.
Afinal, longe de se tratar apenas de mérito administrativo, a manutenção de viaturas e a realização do transporte em si devem observar padrões estabelecidos por órgãos nacionais e estaduais de trânsito, bem como legislação específica.
Estes parâmetros legais têm o único propósito de assegurar o bem estar e a segurança dos indivíduos privados de liberdade, que são cotidianamente obrigados a utilizar viaturas ultrapassadas e superlotadas.
Portanto, é dever do poder público garantir transporte digno e adequado aos indivíduos presos, sob pena de ofensa à dignidade da pessoa humana e às normas exigidas pelo Código Brasileiro de Trânsito e por Resoluções de órgãos como o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).
I – Da Legalidade Administrativa:
Inicialmente, faz-se mister relembrar a existência do Princípio da Legalidade, ao qual a administração pública deve obediência - art. 37 da CRFB/88.
Conforme o magistério de Celso Antonio Bandeira de Mello [1]: "Este princípio [da legalidade] capital para a configuração do regime jurídico para a configuração do regime jurídico administrativo. Justifica-se, pois, que seja tratado - como o será - com alguma extensão e detença. Com efeito, enquanto o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é da essência de qualquer Estado, de qualquer sociedade juridicamente organizada com fins políticos, o da legalidade é especifico do Estado de Direito, é justamente aquele que o qualifica e que lhe dá identidade própria. Por isso mesmo que é o princípio basilar do regime jurídico-administrativo, já que o Direito Administrativo (pelo menos aquilo que como tal se concebe) nasce com o Estado do Direito: é uma consequência dele. É o fruto da submissão do Estado ã lei. É, em suma, a consagração da idéia de que a Administração Pública só pode ser exercida na conformidade da lei (...)" (grifamos)
O transporte de pessoas privadas de liberdade se baseia em cristalina disposição legal, seja em ditames constitucionais, da legislação internacional, na Lei 9.503/1997 (CTB) ou em Resoluções do DENATRAN ou do CNPCP.
Primeiramente, há que se destacar que a Constituição da República Federativa do Brasil, como concreção do Princípio Constitucional maior da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º, inciso III), veda categoricamente a imposição de tratamento desumano ou degradante (Art. 5º, III) e, consequentemente, assegura ao custodiado a higidez física e moral (Art. 5º, XLIX).
A oferta de um serviço de deslocamento de pessoas privadas de liberdade compatível com a dignidade da pessoa humana se encontra assegurada pelas Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos, adotada no 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente, celebrada em Genebra no ano de 1955 e aprovada pelo ECOSOC nas Resoluções 663C de 1957 e 2076 de 1977, o qual prevê em sua Regra de nº 45:
1) Quando os reclusos sejam transferidos de ou para outro estabelecimento, devem ser vistos o menos possível pelo público, e devem ser tomadas medidas apropriadas para os proteger de insultos, curiosidade e de qualquer tipo de publicidade.
2) Deve ser proibido o transporte de reclusos em veículos com deficiente ventilação ou iluminação, ou que de qualquer outro modo os possa sujeitar a sacrifícios físicos desnecessários.
3) O transporte de reclusos deve ser efetuado a expensas da administração, em condições de igualdade para todos eles.
Igualmente, o princípio 01 do Conjunto de Princípios para Proteção de todas as pessoas submetidas a qualquer forma de detenção ou prisão da ONU – 1988, estabelece: “A pessoa sujeita a qualquer forma de detenção ou prisão deve ser tratada com humanidade e com respeito da dignidade inerente ao ser humano”.
Percebe-se que tanto a CRFB/88, quanto normativas internacionais têm a proteção da dignidade do indivíduo privado de liberdade como prioridade.
No mesmo sentido, a NOTA TÉCNICA n° 219/2012/CGIJF/DENATRAN, em resumo, indica a necessidade de veículos destinados ao transportes de pessoas privadas de liberdade observarem o Código de Trânsito Brasileiro e demais atos do CONTRAN, devendo o poder público realizar a vistoria anual de suas viaturas.
A ausência de vistoria periódica também viola o art. 3º da Resolução 02/2012 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).
Nesta mesma Resolução, há no art. 3º, pú, a diretiva no sentido de que os veículos de transporte de pessoas presas ou internadas devem contar com indicador de capacidade máxima de passageiros, afixado em local visível para todos, o que geralmente não é feito na prática, in verbis.
Art. 1º. É proibido o transporte de pessoas presas ou internadas em condições ou situações que lhes causem sofrimentos físicos ou morais, sob pena de responsabilidade administrativa, civil e criminal.
§1º. É proibida a utilização de veículos com compartimento de proporções reduzidas, deficiente ventilação, ausência de luminosidade ou inadequado condicionamento térmico, ou que de qualquer outro modo sujeitem as pessoas presas ou internadas a sofrimentos físicos ou morais.
§2º. Os procedimentos de colocação e retirada da pessoa presa ou internada dos veículos de transporte devem atender à sua individualidade, integridade física e dignidade pessoal.
§3º. São vedadas a utilização dos veículos de transporte como instalações de custódia e a manutenção de pessoas presas ou internadas em seu interior por período superior ao estritamente necessário para o deslocamento.
§4º. Em caso de deslocamento, por qualquer motivo, a pessoa presa ou internada deve ser resguardada da exposição ao público, assim como de insultos, curiosidade geral e qualquer forma de sensacionalismo.
§5º. É proibido o uso de meios de coerção que, de qualquer modo, dificultem o equilíbrio e a proteção das pessoas presas ou internadas durante o deslocamento.
Art. 2º. O transporte de pessoas presas ou internadas deve ser efetuado às expensas do Poder Público, em condições de igualdade para todas elas. Parágrafo único. O transporte deve atender às normas de separação das categorias de pessoas presas ou internadas, de acordo com sua condição pessoal.
Art. 3º. Os veículos de transporte de pessoas presas ou internadas devem ser periodicamente vistoriados pelo respectivo órgão de trânsito, bem como contar com todos os dispositivos de segurança previstos em regulamentação do órgão competente, notadamente cinto de segurança para todos os passageiros.
Parágrafo único. Os veículos de transporte de pessoas presas ou internadas devem contar com indicador de capacidade máxima de passageiros, afixado em local visível para todos. (g.n)
Tal previsão não é irrelevante; ao contrário, serve de parâmetro objetivo para coibir a costumeira prática de considerável excesso de pessoas privadas de liberdade sendo transportadas em um ambiente degradante. É a única forma de se viabilizar o controle. Segundo o magistério de Rodrigo Roig [2]:
“Outro direito não mencionado na LEP, mas importante no dia a dia da execução penal, é o transporte em condições dignas e seguras.
Infelizmente, é comum o transporte de pessoas presas ou internadas em condições ou situações causadoras de graves sofrimentos físicos ou morais. A não disponibilização de cinto de segurança para todos os passageiros dos veículos de transporte de presos é prática igualmente corriqueira, mesmo diante das normas contidas no art. 105, I do Código de Trânsito Brasileiro (que elenca o cinto de segurança como equipamento obrigatório dos veículos), e art. 1º, Item 22 da Resolução 14/98 do Conselho Nacional de Trânsito (que aponta o cinto de segurança para todos os ocupantes do veículo como equipamento obrigatório para circulação de veículos em vias públicas). Soma-se a isso a utilização de veículos sem vistorias pelo respectivo órgão de trânsito, e sem indicador de capacidade máxima de passageiros.
Buscando regulamentar a questão é coibir a indignidade do transporte e custódia de pessoas presas e internadas no Brasil, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária editou a Resolução 02/2012.
A referida Resolução representa, enfim, importante instrumento dissuasório da violação de direitos humanos, operada justamente em um contexto no qual a pessoa presa ou internada – naturalmente exposta – encontra-se ainda mais vulnerável à violência estatal”.
Portanto, pelo supracitado, impende salientar ser fundamental a garantia de condições mínimas de segurança e de integridade aos indivíduos privados de liberdade, nos estritos termos da lei.
II – Do Atual Conceito de Jurisdição à luz da CRFB/88:
O conceito moderno de jurisdição contrapõe-se à doutrina clássica de Chiovenda, em que a função do julgador se limitaria à aplicação da lei ao caso concreto, através da mera subsunção do fato à norma.
Com a promulgação da CRFB/88 e o advento do Estado Constitucional e democrático de Direito, o império da lei foi substituído pela supremacia da Constituição e o positivismo jurídico acrítico pelo neoconstitucionalismo, preocupado em irradiar para todo o ordenamento o respeito à força normativa e à eficácia imediata da Carta Magna, dos seus princípios e dos direitos fundamentais..
Este é o magistério de Ana Paula de Barcellos (Ponderação, Racionalidade Prática e Atividade Jurisdicional, 2005): “A justiça depende em geral de normas mais flexíveis, à maneira dos princípios, que permitam uma adaptação mais livre às infinitas possibilidades do caso concreto e que sejam capazes de conferir ao intérprete liberdade de adaptar o sentido geral do efeito pretendido. (...) Nesse contexto, portanto, os princípios são espécies normativas que se ligam de modo mais direto à idéia de justiça.” (grifamos)
Neste sentido, o art. 1º, caput, do Novo CPC/2015, dispõe que: “o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código”.
Com efeito, o juiz pode e deve tutelar concretamente direitos e posições jurídicas, ainda que ausente previsão de modalidade executiva idônea para tanto, suprindo a omissão, considerando as circunstâncias do caso concreto e a regra da necessidade, precisamente em nome do controle da insuficiência de tutela normativa ao direito fundamental à tutela efetiva, à luz da Constituição.
Frise-se que, no cumprimento dessas funções pela jurisdição, não passa o Magistrado a ser encarado como legislador. O juiz está sujeito às normas constitucionais e, conquanto possa conformar a lei e a legislação ou mesmo tutelar os direitos que colidem no caso concreto e excepcionalmente superar regras jurídicas, a sua atividade não implica criação do direito.
No caso concreto do transporte de presos, pode (deve) o Judiciário agir positivamente com intuito de garantir o cumprimento dos ditames constitucionais, sem que isso signifique a invasão da esfera administrativa ou, em última análise, afronta à separação de poderes.
Nesse sentido é a lição de Christian Courtis e Victor Abramovich [3]:
“Por ello, el Poder Judicial no tiene la tarea de diseñar políticas públicas, sino la de confrontar el diseño de políticas asumidas con los estándares jurídicos aplicables y – en caso de hallar divergencias – reenviar la cuestión a los poderes pertinentes para que ellos reaccionen ajustando su actividad en consecuencia. Cuando las normas constitucionales o legales fijen pautas para el diseño de políticas públicas y los poderes respectivos no hayan adoptado ninguna medida, corresponderá al Poder Judicial reprochar esa omisión y reenviarles la cuestión para que elaboren alguna medida. Esta dimensión de la actuación judicial puede ser conceptualizada como la participación en un <> entre los distintos poderes del Estado para la concreción del programa jurídico-político establecido por la constitución o por los pactos de derechos humanos.” (grifamos)
O princípio constitucional da separação de poderes visa impedir que todas as funções estatais sejam concentradas em uma única estrutura organizacional, descentralizando as funções estatais, em equilíbrio através de um sistema de freios e contrapesos, justamente para evitar o excesso de poder dos Governos e Parlamentos e a ausência de controle dos atos estatais em face dos cidadãos, o que, inexoravelmente, provocaria abusos e violações de direitos se não houvesse a proteção judicial.
O Supremo Tribunal Federal sedimentou seu posicionamento no recente julgamento do RE 592.581 [4], em 13/08/2015, onde se discutia exatamente se competia ao Poder Judiciário determinar ao executivo a realização de obras em estabelecimentos prisionais, sob pena de invasão na seara reservada a Administração Pública, e que foi julgado procedente por unanimidade. Vale transcrever trecho do voto do relator Ministro Ricardo Lewandowski [5] sobre o tema:
“Assim, contrariamente ao sustentado pelo acórdão recorrido, penso que não se está diante de normas programáticas. Tampouco é possível cogitar de hipóteses na qual o Judiciário estaria ingressando indevidamente em seara reservada à administração pública.
No caso dos autos está-se diante de clara sua violação de direitos fundamentais, praticada pelo próprio Estado contra pessoas sob guarda, cumprindo ao Judiciário, por dever constitucional, oferecendo-lhes a devida proteção.
Nesse contexto, não há que se falar em indevida implementação, por parte do Judiciário, de políticas públicas na seara carcerária circunstância que sempre enseja discussão complexa e casuística, à luz da separação de poderes.”(gn)
Conclui-se ser lícito ao Poder Judiciário, em face do princípio da supremacia da Constituição, adotar, em sede jurisdicional, medidas destinadas a tornar efetiva a implementação de políticas públicas, se e quando se registrar situação configuradora de inescusável omissão estatal, que se qualifica como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica.
Afinal, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência (ou insuficiência) de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.
Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exequíveis, abstendo-se, em consequência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional.
Desse “non facere” ou “non praestare” resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público. (ADI 1.458-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello).
Buscando por uma pá de cal em qualquer dúvida, importante trazer à baila esses trechos selecionados da Emenda do ARE 639337 AgR (STF):
“E M E N T A: LEGITIMIDADE JURÍDICA DA UTILIZAÇÃO DAS “ASTREINTES” CONTRA O PODER PÚBLICO (...) - LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO
EM CASO DE OMISSÃO ESTATAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO - INOCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES - PROTEÇÃO JUDICIAL DE DIREITOS SOCIAIS, ESCASSEZ DE RECURSOS E A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS” - RESERVA DO POSSÍVEL, MÍNIMO EXISTENCIAL, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL
- Os Municípios (leia-se, qualquer ente) (...) não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante (...)
- Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional.
- O Poder Público - quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de implementar políticas públicas definidas no próprio texto constitucional - transgride, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional. Precedentes: ADI 1.484/DF (...)
- A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação de políticas governamentais previstas e determinadas no texto constitucional (...) objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da República assegura à generalidade das pessoas.
- A CONTROVÉRSIA PERTINENTE À “RESERVA DO POSSÍVEL” E A INTANGIBILIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL: A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS”. - A destinação de recursos públicos, sempre tão dramaticamente escassos, faz instaurar situações de conflito, quer
com a execução de políticas públicas definidas no texto constitucional, quer, também, com a própria implementação de direitos sociais assegurados pela Constituição da República, daí resultando contextos de antagonismo que impõem, ao Estado, o encargo de superá-los mediante opções por determinados valores, em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo, o Poder Público, em face dessa relação dilemática, causada pela insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a verdadeiras “escolhas trágicas”, em decisão governamental cujo parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na própria Lei Fundamental (....)
- A noção de “mínimo existencial”, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança.” (grifamos)
Assim, em relação ao transporte de presos, há uma série de medidas que extrapolam o simples “mérito administrativo”, tratando-se de tutela do direito fundamental à dignidade da pessoa humana, segurança e vedação a tratamento desumano e degradante, podendo (devendo) o Poder Judiciário se imiscuir nessa seara quando diante de patente omissão estatal.
III – Estado de Coisas Inconstitucional – ADPF 347:
Não é segredo que o sistema carcerário brasileiro está aquém dos parâmetros mínimos exigidos pela legislação pátria e internacional. Se um dos objetivos do encarceramento é uma paulatina ressocialização, está longe de lograr êxito.
As constantes violações à dignidade da pessoa humana durante a execução da pena culminou com a declaração, pelo plenário do STF, de que o Brasil experimenta um “Estado de Coisas Inconstitucional”, no julgamento da ADPF 347, no que se refere ao sistema penitenciário brasileiro, o que se estende, por óbvio, à prestação do serviço de transporte dos presos.
Com origem na Corte Constitucional da Colômbia, em 1997, com a chamada "Sentencia de Unificación (SU)”, o Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) ocorre quando se verifica a: “existência de um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais, causado pela inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público e a atuação de uma pluralidade de autoridades podem alterar a situação inconstitucional”. [6]
O ECI gera um “litígio estrutural”, ou seja, existe um número amplo de pessoas que são atingidas pelas violações de direitos. Diante disso, o Judiciário terá que fixar “remédios estruturais” voltados à formulação e execução de políticas públicas, o que não seria possível por meio de decisões mais tradicionais. Deve ser adotada uma postura de ativismo judicial estrutural diante da omissão dos Poderes Executivo e Legislativo, que não tomam medidas concretas para resolver o problema, normalmente por falta de vontade política.
O reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional, segundo o professor Daniel Sarmento (no bojo da petição inicial da ADPF 347): “confere ao Tribunal uma ampla latitude de poderes, tem-se entendido que a técnica só deve ser manejada em hipóteses excepcionais, em que, além da séria e generalizada afronta aos direitos humanos, haja também a constatação de que a intervenção da Corte é essencial para a solução do gravíssimo quadro enfrentado. São casos em que se identifica um “bloqueio institucional” para a garantia dos direitos, o que leva a Corte a assumir um papel atípico, sob a perspectiva do princípio da separação de poderes, que envolve uma intervenção mais ampla sobre o campo das políticas públicas."
O Plenário do STF declarou que diversos dispositivos constitucionais, documentos internacionais (o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção Americana de Direitos Humanos) e normas infraconstitucionais estão sendo desrespeitadas.
A intervenção judicial é necessária diante da incapacidade demonstrada pelas instituições legislativas e administrativas.
Com a recente decisão do STF no bojo da ADPF 347, não resta mais dúvidas que o Brasil experimenta um caos em seu sistema penitenciário como um todo, o que reflete no serviço de deslocamento de acautelados, prestado pela Administração Pública.
IV - CONCLUSÃO:
Assim, por todo o exposto, não deve prosperar eventual argumento no sentido de que a temática relativa ao transporte de presos seria meramente discricionária. A pessoa privada de liberdade tem o direito de ser transportada de acordo com os parâmetros legais, devendo ser respeitada sua segurança e sua dignidade. Eventual descumprimento justifica o controle da legalidade do ato público, por parte do Poder Judiciário.
REFERÊNCIAS:
[1] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo - 21. Ed – Malheiros, 2006.
[2] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal – Teoria Crítica. Editora Saraiva, 2014.
[3] ABRAMOVICH, Victor; COURTS, Christian, Los derechos sociales como derechos exigibles, Trotta, 2004, p. 251
[4]http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciarepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=2637302&numeroProcesso=592581&classeProcesso=RE&numeroTema=220
[5] http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/592581.pdf
[6] conceito baseado nas lições de Carlos Alexandre de Azevedo Campos (O Estado de Coisas Inconstitucional e o litígio estrutural. Disponível em: www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-litigio-estrutural)
Advogado e Técnico Superior da Defensoria Pública do RJ. Pós Graduado em direito público e privado pelo ISMP-RJ.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Alex Thiebaut Menezes Nunes da. O controle jurisdicional do transporte de pessoas privadas de liberdade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 jan 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48686/o-controle-jurisdicional-do-transporte-de-pessoas-privadas-de-liberdade. Acesso em: 25 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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