RESUMO: Este artigo trata de expor o conceito e os postulados básicos (“axiomas”) do Garantismo Penal, termo cunhado por Luigi Ferrajoli, que buscou sistematizar alguns princípios de direito processual penal italiano (que grande semelhança têm com o brasileiro) sob, nas palavras do autor, uma “teoria epistemiológica” dos postulados penais e processuais penais insurgentes e insculpidos primeiro na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, durante a Revolução Francesa. Tal estudo nos é relevante pois incorporou-se à praxis jurídica brasileira a invocação do termo garantismo como palavra de ordem representativa do máximo iluminismo em matéria penal.
Palavras-chave: garantismo penal; Luigi Ferrajoli, axiomas, Direito e Razão.
INTRODUÇÃO
O pensamento jurídico acerca do direito penal é há muito discutido e se encontra em constante evolução. Nota-se uma mudança vertiginosa na processualística penal e o modo tratar o acusado, deixando de ser visto como um objeto e passando a ser visto com um sujeito de direitos na relação processual. A sociedade ocidental democrática encontra-se no ápice da prática iluminista, efetivando definitivamente vários dos cânones consolidados na Revolução Francesa.
As diretrizes que a partir daí passam a guiar o direito penal têm por ápice no Brasil a aplicação do denominado “garantismo penal”, cunhado por Luigi Ferrajoli e exposto em sua obra Direito e Razão. Vê-se constantemente no mundo jurídico a alusão ao garantismo, considerado como o pilar da aplicação do direito penal e o melhor modo concebê-lo. Tribunais a ele se referem em seus acórdãos, juízes o aplicam em suas sentenças, advogados peticionam em nome dele, e, não raro, estes e demais membros de diversas carreiras jurídicas se auto-intitulam garantistas.
Assim, será exposto neste artigo o que é o garantismo, a partir, principalmente, da leitura do livro correlato de Ferrajoli, sendo apresentadas suas premissas básicas e sua ligação com o Direito Penal.
O termo “garantismo” está intrinsecamente ligado a seu principal difusor, Luigi Ferrajoli. Na obra intitulada “Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal”, distingue o citado autor três significados dados ao termo: o garantismo como modelo normativo de direito, como a efetivação (garantia) dos direitos fundamentais e, por último, visto num aspecto meta-jurídico.
No primeiro, deve prevalecer a legalidade estrita em favor do cidadão, buscando a liberdade como regra e a repressão/opressão estatal como exceção; o segundo, referindo-se à dicotomia vigência/validade e à efetivação dos mencionados direitos; e o terceiro implica a incedência na criação das leis e na ciência legislativa, tendo o pensamento garantista, neste último aspecto, sido desenvolvido e aperfeiçoado principalmente na vigência do Iluminismo, no século XVIII, com o apogeu das idéias liberais que, primeiramente, demandavam um não-fazer estatal, com vistas a garantir a liberdade do indivíduo, o uso e gozo de seus bens e a livre manifestação do pensamento.[1] A teoria do garantismo, portanto, vai além da dogmática jurídica, para analisar também os valores e os componentes que constantemente criam, modificam e renovam o direito.
Ferrajoli identifica duas conotações para o termo “Estado de direito”: uma concepção formal, lata, e outra estrita, substancial ou material. A primeira faz alusão ao Estado per lege, regulado por leis, enquanto a segunda significa um modelo estatal que, além de se regular por estas, encontra-se também sob seu domínio (sub lege), pois às mesmas é submetido, tendo em vista a implementação do modelo constitucionalista, que ganhou força com a ascensão do pensamento liberal, onde o pacto social impõe a limitação da ação estatal no que diz respeito ao cidadão em vários aspectos, visando preservar-lhe os direitos civis, principalmente os de liberdade e propriedade.
Enquanto o Estado de direito em sentido formal pode se mostrar autoritário e até mesmo totalitário, eis que a não admissão de direitos fundamentais (e, assim sendo, a ausência de efetivação dos mesmos direitos) em nada influi no caráter positivo e vigente do direito adotado no mencionado modelo, a concepção substancial de estado de direito, ou estado liberal (num primeiro momento) de direito confere direitos ao cidadão frente ao poder do estado, bem como a concretização desses direitos, que é a essência do garantismo, em especial o penal. Para Ferrajoli:
O termo “Estado de direito” [...] neste sentido é sinônimo de “garantismo”. Designa, por esse motivo, não simplesmente um “Estado legal” ou “regulado pelas leis”, mas um modelo de Estado nascido com as modernas Constituições [...].[2]
Uma das principais características do garantismo é a distinção entre a vigência das leis e sua validade – considerada esta última como a obrigatoriedade do juiz de aplicá-la[3]. Na perspectiva garantista, quando leis, apesar de vigentes, forem inválidas (no sentido acima trazido), o juiz não está vinculado juridicamente à sua aplicação[4], uma vez que ao conteúdo dos direitos fundamentais constitucionalmente albergados implicaria falta de efetivação, sendo que, no caso concreto, aplicada uma lei vigente, tal proceder ocorreria em detrimento dos mencionados direitos, o que acarretaria na não garantia destes. Em comento a tal situação, Alexandre da Maia elucida:
O aspecto formal do direito – diz Ferrajoli – está no procedimento prévio existente, que funciona como pressuposto de legitimidade do surgimento de uma nova norma estatal [...]. Até então, a idéia de validade colocada pelo Prof. Ferrajoli traz muita similitude com a teoria pura do direito. [...] Mas Ferrajoli acrescenta [...] um dado que constitui exatamente o elemento substancial do universo jurídico. Neste sentido, a validade traz em si também elementos de conteúdo, materiais, como fundamento da norma. Esses elementos seriam os direitos fundamentais.[5]
A ressalva que aqui se faz, contudo, é no sentido de mostrar que a dogmática positivista, ao postular a obrigatoriedade do juiz de aplicar as leis vigentes, mesmo que inválidas, não está incorreta, como quer o ilustre jurista: se o juiz deixa de aplicar a lei porque se não o fizesse não estaria efetivando (garantindo) os direitos fundamentais, o faz com observância à própria lei, pois se considera a lei ordinária inválida, certamente o faz nos ditames e visando a observância da superioridade da Constituição, que deve ser vista não como fenômeno ex lege, e sim ultra lege, pois não possui a Lei Maior aspecto unicamente político ou sociológico, mas também jurídico.[6]
Em outras palavras, o juiz deixa de aplicar a lei não porque não esteja juridicamente compelido a tanto, mas porque, ao fazê-lo, está obedecendo aos ditames constitucionais, sendo certo que a Constituição é hierarquicamente superior à legislação ordinária, havendo aí nada mais que uma antinomia aparente. Apesar de a doutrina garantista ter por característica marcante seu posicionamento (decorrente do postulado de efetivação dos direitos fundamentais) crítico da visão do direito como valorado em si próprio somente porque vigente, não se pode olvidar que o positivismo kelseniano não se pretende a apontar a justeza ou a moral contida em suas normas, não porque essas não as contenha, mas simplesmente porque tais aspectos são irrelevantes a uma análise pura da ciência jurídica[7].
O garantismo não se resume unicamente à efetivação dos direitos fundamentais liberais, ou de primeira dimensão[8]. O Estado de direito em sentido material, bem como sua efetivação, se dá não apenas através da imposição de limites ao Estado (dever público negativo ou de não-fazer), mas também da imposição de prestações ao Estado, principalmente com a implementação, nas Constituições do século XX, dos denominados direitos sociais, entendidos estes como os fundamentais à subsistência, saúde, trabalho, alimentação, educação, dentre outras, de toda sorte que, para a efetivação dos direitos fundamentais constitucionalmente positivados, nestes incluídos os direitos sociais, o Estado passa a desempenhar atividades, restando mitigado o caráter auto-regulatório da economia, como sobre esta agisse uma “mão invisível”, nas palavras de Adam Smith.
O Estado passa, pois, a ter um papel mais ativo na realização e efetiva tutela dos direitos sociais. Deixa de ser apenas Estado de direito liberal para passar a ser também Estado de direito social. Em síntese:
Enquanto o Estado de direito liberal deve somente não piorar as condições de vida dos cidadãos, o Estado de direito social deve ainda melhorá-las; deve não somente não ser para elas uma desvantagem, mas, outrossim, ser uma vantagem.[9]
A implementação dos direitos sociais, no entanto, não ocorre do mesmo modo que a dos direitos liberais. Enquanto que para a efetivação destes é necessária apenas a inação estatal, não tendo este que executar qualquer medida que assegure os mencionados direitos, o fortalecimento dos direitos sociais mostra-se mais tormentosa, basicamente por duas razões: para a sua concretização faz-se necessária a ação estatal, tanto por parte do poder legislativo, por não definir ou regular mais detalhadamente os mencionados direitos e meios de garanti-los em juízo ou por meio do poder executivo, quanto por este último, que muitas vezes queda ineficaz ao não definir ações e destinar recursos de forma adequada a tal intuito.
Os direitos sociais, tais como a educação, saúde e moradia, em grande parte das vezes não são exaustivamente descritos nem se encontram dispositivos infraconstitucionais que os regulem, surgindo correntes teóricas que, ao invés de firmar um posicionamento crítico, de ordem filosófica e política, acobertam-se, na busca da legitimação do evidente abandono da efetivação dos direitos sociais por parte do Estado (pois a este compete a garantia, principalmente por meio da implementação infraconstitucional do alcance de tais direitos), na hermenêutica jurídica, ao atribuir à Constituição um caráter dirigente e aos direitos sociais uma eficácia programática, sendo que nada mais fazem do que se utilizar da retórica para a manutenção do status quo, deixando o cidadão desacobertado e com a garantia apenas dos direitos liberais, já que para tanto a ação do Estado consiste apenas em fazer o mesmo que infelizmente se vê fazendo em relação aos de ordem social: nada. E a observância apenas dos direitos de primeira dimensão acaba contribuindo para a desigualdade social. Isso se reflete na aplicação do direito da seguinte forma: se a violação dos deveres públicos negativos por parte do legislador dá lugar a antinomias, facilmente reguláveis através da não aplicação da lei que contrarie o dispositivo constitucional, a violação dos deveres públicos positivos dá lugar a lacunas, que “pode ser apenas colmatador meio de uma atividade normativa nem sempre facilmente coercível ou sub-rogável”.[10]
A respeito da transição de estado liberal para estado social, comenta Paulo Bonavides:
Vimos um Estado liberal que fundou a concepção moderna da liberdade [...], que inspirou a idéia dos direitos fundamentais e da divisão dos poderes. Vimos, do mesmo passo, as doutrinas que reinterpretaram a liberdade, abrindo caminho para o Estado social. Chegamos, em suma, à conclusão de que este supera definitivamente o antigo Estado liberal, e, segundo a tese que sustentamos, tanto se compadece com o totalitarismo, como também com a democracia [...]. O estado social da democracia se distingue, em suma, do Estado social dos sistemas totalitários por oferecer, concomitantemente, na sua feição jurídico-constitucional, a garantia tutelar dos direitos da personalidade.[11]
Como aponta o autor, a mudança do Estado liberal, absenteísta, para o estado social, ativo, deverá tomar também a opção pelo modelo democrático de Estado, sendo a constituição o reflexo da democracia, sob o risco de se desenvolver um estado social mas totalitário, contrário à democracia constitucional fundamental para o pleno desenvolvimento dos direitos fundamentais liberais e sociais.
O Direito Penal é sem dúvida um dos mais tormentosos e controversos ramos do Direito. Hodiernamente, o Direito Penal é o responsável por tutelar os bens mais caros à sociedade, bem como a gravidade de suas sanções, que restringem o que há de mais valioso ao ser humano: a liberdade. Assim sendo, não deixam de surgir controvérsias a respeito das leis penais, tanto do ponto de vista jurídico – as hipóteses de aplicação da pena, a imputação da conduta criminosa, a efetivação de direitos constitucionalmente previstos como o direito ao silêncio, vedação da utilização de prova ilícita –, quanto do ponto de vista teórico-político – a escolha do que deve ou não ser considerado crime, a modalidade e quantidade de pena a ser aplicada, as políticas criminais de prevenção-repressão do crime, as garantias processuais implementadas etc. Torna-se necessário delimitar conceitos como os de delito, pena, responsabilidade penal, entre outros. Nas palavras de Marco Túlio Fernandes Alves:
O termo garantismo está intimamente relacionado ao princípio da legalidade, um dos alicerces do Direito Penal brasileiro. Além disso, busca aproximar o conceito de validade do conceito de efetividade. Visto assim, para que uma pena seja justa e razoável, ela deve ser tão próxima dos príncipios que norteiam o Direito Criminal, quanto o Direito deve ser da sociedade.[12]
Delituosa, a princípio, é toda conduta que o legislador sanciona com uma pena. Esta definição é conseqüência do brocado nullum crimen sine lege, largamente difundido e atualmente presente na primeira parte do art. 5º, XXXIX, da Constituição da República. Dizer que delito é tudo aquilo que a lei classifica como tal, no entanto, não revela a essência do conceito, apenas a característica já mencionada. Como afirma Francisco Muñoz Conde:
(...) Normalmente, são a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade as características comuns a todos os delitos. O ponto de partida é sempre a tipicidade, porque só o fato típico, quer dizer, o descrito no tipo legal, pode servir de base a posteriores valorações, Depois, segue a indagação acerca da antijuridicidade, quer dizer, a comprovação de que o fato típico cometido é ou não conforme ao direito (...). Uma vez comprovado que o fato é típico e antijurídico, deve-se ver se o autor desse fato é ou não culpável, quer dizer, se possui as condições mínimas indispensáveis para atribuir-se-lhe esse fato (...).[13]
Do ponto de vista substancial, por outro lado, o delito sempre implica numa conduta que provoque dano, não “um dano somente, mas [...] antes de tudo um dano”[14]. Entende-se o dano como a lesão a um determinado bem, sendo este último oriundo da relação de interesse dos segmentos mais influentes da sociedade, bem como dos interesses comuns à manutenção da própria coletividade. O objeto torna-se um bem através da relação de interesse da sociedade entre o aquele e sua proteção – os valores tutelados pelo direito, em especial o direito penal (vida, propriedade etc.) são tidos como bens através do interesse da sociedade na sua proteção.
A mera constatação de que um fato é criminoso não esgota a tarefa do Direito Penal. A identificação e caracterização do delito são imprescindíveis à aplicação da pena, e não haveria razão a legislação apontar determinadas condutas como criminosas se não há nenhum consectário da sua prática, pois o direito penal consiste no “conjunto das regras jurídicas estabelecidas pelo Estado, que associam ao crime, como fato, a pena, como legítima conseqüência”[15].
Na vigência das monarquias absolutistas na Europa, a pena era vista como forma de vingança pelos atos praticados – guardava o delito uma semelhança com o pecado, e a pena servia como sua expiação. Com o declínio do absolutismo, cunhou-se a idéia de pena como retribuição ao ato praticado, e nesse aspecto devia a pena ser aplicada na medida proporcional em que foi o delito, sendo que “só o direito de talião [...] permite determinar adequadamente a qualidade e quantidade de pena que o delinqüente merece [...]. Se o criminoso cometeu um homicídio, também ele deve morrer”.[16]
Percebe-se a diferença desta idéia com o modelo vigente nas Constituições ocidentais atuais, notadamente a brasileira, onde é vedado o uso de penas de morte[17] perpétuas, cruéis, de trabalhos forçados e de banimento (CF, art. 5º, XLVII). Há ainda os caracteres, cunhado após a teoria clássica, da função de prevenção geral e especial que a pena traz, onde, naquele, o estabelecimento e a ciência por parte dos membros da sociedade de que determinada conduta é ilícita e comporta uma pena desmotiva sua prática, diminuindo os índices de criminalidade, e este, onde a segregação (nas penas privativas de liberdade) do infrator previne a prática de mais crimes pelo mesmo, enquanto encontrar-se preso. Ambos não estão livres de críticas, pois o cunho demasiado de leis pode levar a um Estado de terror[18], e a prevenção especial leva à assunção – impensável, num Estado democrático de direito – de que alguém deva ficar segregado para evitar a prática de crimes que ainda não ocorreram e possam nem ocorrer. Atualmente, a teoria dos fins da pena procura estabelecer a legitimidade desta com base tanto na teoria retributiva como na preventiva, sendo por isso chamada de eclética.
A perspectiva garantista, nesse contexto, mostra interessante semelhança com a teoria eclética, a qual, unindo os aspectos retributivos e preventivos, os mitiga, afastando, por exemplo, a possibilidade de utilização de penas como as de morte e cruéis, e lembrando que a pena unicamente como prevenção “tem-se transformado num dos principais ingredientes do moderno autoritarismo penal [...]”[19]. Nota-se o caráter ideológico da perspectiva garantista em relação à função das penas, que se coaduna com o modelo democrático hodiernamente estabelecido.
Como visto, a teoria garantista baseia-se na efetivação dos direitos fundamentais para alcançar o que outrora se denominou Estado substancial de direito. Analisemos, agora, a perspectiva garantista restrita ao âmbito penal, onde há a prevalência da garantia dos direitos de liberdade e propriedade.
Nesse aspecto, o garantismo penal traduz-se numa série de enunciados de cunho prescritivo[20], de modo a regular o comportamento estatal em matéria penal. São dez: nulla poena sine crimine, nullum crimen sine lege, nulla lex (poenalis) sine necessitate, nulla necessitas sine injuria, nulla injuria sine actione, nulla actio sine culpa, nulla culpa sine judicio, nullum judicium sine accusatione, nulla accusatione sine probatione e nulla probatio sine defensione. Alguns se encontram previstos constitucionalmente, enquanto outros podem ser encontrados nas disposições legais penais e processuais penais. Para Vlamir Costa Magalhães:
Tais axiomas têm a função específica de deslegitimar o exercício absoluto do poder punitivo estatal. Seguindo este diapasão, os três significados básicos do modelo penal garantista foram sintetizados por FERRAJOLI como sendo, simultaneamente, um parâmetro de racionalidade, de justiça e de legitimidade da intervenção punitiva.[21]
O primeiro e o segundo compõem o art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal, onde se lê: “Não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia cominação legal” – a disposição constitucional é ainda mais abrangente, pois inclui também o princípio da anterioridade penal, não tratado por Ferrajoli.
O terceiro postula que não haverá lei penal sem necessidade: o dispositivo merece críticas, pois, além de não estar previsto constitucionalmente nem infraconstitucionalmente tal enunciado – a única hipótese de aplicabilidade que concebemos é que haja tal princípio como orientador do legislador no cunho das leis, e, ainda assim, a desobediência a tal princípio não pode nem deve ensejar a invalidação ou não aplicabilidade do dispositivo legal cunhado (a não ser que viole norma constitucional, o que é de difícil vislumbre, ou que tal norma esteja por outra revogada, bem como nos demais casos de antinomia aparente), sob pena de usurpação da função legislativa pelo Poder Judiciário, o que pode gerar a crise do Estado democrático do direito defendido pelo próprio Ferrajoli.
O número quatro trata da necessidade, dizendo que não há necessidade sem injúria – os mesmos comentários tecidos ao item anterior aplicam-se a este, revelando-se, outrossim, como uma faceta do princípio da lesividade ou ofensividade, cujo oposto (princípio da insignificância) é largamente utilizado nos tribunais brasileiros atualmente.
O quinto trata da ação como fundamental à configuração do delito, também chamado de “princípio da materialidade”[22] – também se mostra defeituoso, pois, como já visto no item anterior, o delito não é perpetrado somente por meio de ações, mas também por omissões, sendo que na maior parte dos países ocidentais (principalmente os com forte herança anglo-germânica) segue essa linha de raciocínio, sem falar que o uso da palavra “materialidade” nesse caso gera confusões, pois que confunde-se com as noções de materialidade delitiva, de cunho processual penal, e a de crime material, de cunho penal. Não se pode falar, portanto, em nulla injuria sine actione (não pelo menos no Direito brasileiro) quando há previsões como o art. 135 do Código Penal (crime de omissão de socorro, classificado como omissivo próprio pela doutrina) e o art. 13, § 2º, do mesmo código, ao proclamar que “a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado”.
O sexto faz referência à necessidade de averiguação da culpabilidade do agente quando da prática de fato típico e ilícito (já que não há de se falar em crime quando, sendo a conduta culpável – onde por parte do sujeito havia a potencial consciência de ilicitude, exigibilidade de conduta diversa e imputabilidade – não seja típica ou ilícita), requisito basilar do para que se configure o crime, conforme indica o próprio direito penal.
O sétimo traz à guisa norma processual penal, também albergada na Constituição da República, no sentido de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII), representada pelo brocado nulla culpa sine judicio.
O oitavo refere-se ao princípio acusatório, no sentido de que não há julgamento sem acusação, do qual decorre o princípio da imparcialidade do juiz.
O nono refere-se à regra processual de que aquele que afirma deve apresentar provas da veracidade de sua afirmação (CPP, art 156) – o brocado nulla accusatio sine probatione, no entanto, é defeituoso, pois perfeitamente factível que haja acusação sem provas: é o caso, por exemplo de uma ação penal oferecida, que, sendo a acusação na sua mais clássica forma, pode vir a ser rejeitada por falta de justa causa, ou seja, por falta de provas da materialidade e da autoria delitivas (art. 395, III, do CPP). Melhor seria falar em nulla poena sine probatione ou mesmo nulla culpa (entendendo-se culpa como condenação, do mesmo modo que fizemos ao tratarmos do sétimo axioma) sine probatione.
O décimo, por último, trata do contraditório e da ampla defesa, norma de caráter processual que também encontra guarida na Constituição (art. 5, LV).
4. Conclusões
Como se vê, os brocados citados, denominados “axiomas” por Luigi Ferrajoli, não deixam de possuir defeitos na nomenclatura e incoerências, o que por certo não tira a importância da efetivação dos direitos constitucionais fundamentais de primeira dimensão, denominado o dever estatal de abstenção[23]. De todo modo, interessante lembrar que os citados axiomas do garantismo penal constituem proposições “inderiváveis entre si e, não obstante, encadeados de maneira que cada um dos termos implicados implique por sua vez o sucessivo [...]”.[24]
Analisando os diversos sistemas punitivos, Ferrajoli observa que, conforme a quantidade de garantias conferidas, podem ser aqueles mais ou menos garantistas, conforme a quantidade de direitos fundamentais de primeira geração, em matéria criminal, são efetivados. Note-se que os axiomas do garantismo penal dividem-se em garantias materiais (que vão do primeiro ao sexto brocados) e garantias processuais (compostas pelos quatro últimos). Apesar de inderiváveis entre si[25], não há como negar que, na prática, da inexistência em determinado ordenamento jurídico de determinada garantia decorra a inexistência de demais da mesma categoria (via de regra, onde não existe o princípio da retributividade das penas, inexistirão também os da materialidade, lesividade e culpabilidade[26]). Para Ferrajoli, quanto mais garantias confere o sistema, mais democrático e substancial é, e quanto menos garantias salvaguarda, mais autoritário e ilegítimo se mostra.
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[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp. 788-789.
[2] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 790.
[4] Nesse sentido, o autor alemão Gustav Radbruch (1878-1849) postula que as leis em geral devem ser aplicadas, mas quando se apresentem de tal forma que de sua aplicação decorra gravíssima injustiça, ou de sua não aplicação decorra a justiça, a lei deverá ser afastada em nome da justiça. RADBRUCH, Gustav apud DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. 2ª ed. rev, at. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 150.
[5] MAIA, Alexandre da. Ontologia Jurídica: O Problema de sua Fixação Teórica (com relação ao garantismo jurídico). Porto Alegre: Livraria do advogado, 2000, p. 95.
[6] HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, passim.
[7] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. pp. 1-2.
[8] Os direitos fundamentais aparecem classificados na doutrina, na maioria das vezes, quanto à sua geração ou dimensão, sendo que o aparecimento de cada uma delas se dá num contexto histórico, sem que, no entanto, a dimensão seguinte subjugue a anterior. Por tal motivo parte da doutrina entende mais adequada a utilização da palavra “dimensão” no lugar da palavra “geração”. Enquanto a primeira dimensão cunhou a idéia de direitos de liberdade e de propriedade, com a abstenção de práticas pelo Estado que viesse a mitigar tais direitos, a segunda dimensão trata dos direitos sociais, onde ao Estado se impõe a realização de práticas que assegurem direitos como saúde, educação e moradia ao cidadão; a terceira dimensão trata dos direitos transindividuais, que abrigam a humanidade como um todo, tais como a paz, o meio ambiente, o desenvolvimento cultural etc. Fala-se também dos direitos de quarta e quinta dimensão, possuidores do caráter de implementação da democracia participativa e do desenvolvimento tecnológico, respectivamente (AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional. 4ª ed., rev e at. Rio de Janeiro, 2008. pp. 129-132.). Não obstante, se adotará o termo “geração” no presente trabalho, pois discordamos quanto à afirmação de que essa possa pressupor que a geração posterior subjugue a anterior – nem vemos porque tal idéia também não possa ser atribuída ao conceito de “dimensão”.
[9] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 795.
[10] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 801.
[11] BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980. pp. 231-233.
[12] ALVES, Marco Túlio Fernando. Do garantismo penal. Disponível em . Acesso em 18 Ago 2011.
[13] CONDE, Francisco Munõz. Teoria geral do delito. Tradução e notas de Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre, Fabris, 1988. pp. 3-4.
[14] CARNELUTTI, Francesco. O delito. São Paulo: Péritas, 2002, p. 60.
[15] LISZT apud SANTORO FILHO, Antonio Carlos. Bases críticas do direito criminal. São Paulo: LED, 2000, p. 16.
[16] KANT apud SANTORO FILHO, Antonio Carlos. Bases críticas do direito criminal. São Paulo: LED, 2000, p. 48.
[17] À exceção do estabelecido no art. 55 do Código Militar Penal (art. 55) que regula a pena de morte, nos casos de guerra declarada (conforme art. 5º, XLVII, “a”, da Constituição da República).
[18] KANT apud SANTORO FILHO, Antonio Carlos. Bases críticas do direito criminal. São Paulo: LED, 2000, p. 56.
[19] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 340.
[20] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 90.
[21] MAGALHÃES, Vlamir Costa. O garantismo penal integral. Enfim, uma proposta de revisão do fetiche individualista. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2876, 17 maio 2011. Disponível em: . Acesso em: 17 ago. 2011.
[22] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 91.
[23] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 794.
[24] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 92.
[25] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 92.
[26] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 95.
Advogado - OAB/PE nº 35.114. Formado em Direito pela Faculdade ASCES em junho de 2012; advogado criminal desde setembro de 2013; aprovado em julho de 2016 no concurso público para provimento de vagas no cargo de Delegado de Polícia do Estado de Pernambuco (32º lugar).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Walkis Pacheco Sobreira. Os postulados básicos do garantismo penal - exposição dos dez "axiomas" de Luigi Ferrajoli Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jan 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48899/os-postulados-basicos-do-garantismo-penal-exposicao-dos-dez-quot-axiomas-quot-de-luigi-ferrajoli. Acesso em: 22 nov 2024.
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