Resumo: A relevância de um elemento probatório que emana de um meticuloso trabalho científico e fornece os conhecimentos extrajurídicos para elucidação da verdade no processo judicial, civil e penal, é evidente. Por meio de pesquisa com análise da lei, doutrina e jurisprudência, teceram-se breves comentários acerca da valoração da prova pericial pelo magistrado, dentre as outras do conjunto probatório, à luz dos princípios da livre apreciação da prova e do livre convencimento motivado e acerca da confecção do laudo pericial, com destaque às inovações do Código de Processo Civil de 2015.
Palavras-chave: Linguagem. Laudo pericial. Prova pericial. Perito. Sujeitos do processo.
Abstract: The relevance of a probative element that emanate from meticulous scientific work and that provide the extra-juridical knowledge to elucidate the truth in court case, civil and criminal, is evident. Through research with analysis of law, doctrine and jurisprudence, brief comments were made about the forensic evidence valuation by magistrate, among other evidences of the probative set, in light of free evidence appreciation and free motivated convincing principles and about forensic report preparation, highlighting the Civil Process Code of 2015 innovations.
Keywords: Language. Forensic report. Forensic evidence. Forensic examiner. Process subjects.
Sumário: Introdução. 1. Livre apreciação da prova. 2. Livre convencimento motivado. 3. Elaboração do laudo. Conclusão.
Introdução
A tarefa de construção do elo entre a ciência de formação do perito e a ciência jurídica por meio do laudo traz consigo complexidade considerável. Concomitante ao dever de reportar com rigor e detalhes não somente as conclusões, como também os meios que conduziram a elas, os especialistas devem fazê-lo com linguagem simples, inteligível ao leigo. Nesse contexto, o leigo é o magistrado, membro do Ministério Público, jurado ou advogado, que se servem do laudo pericial para formar seu convencimento.
A perícia é admissível quando o esclarecimento de questões técnicas, de qualquer campo do saber, depender de conhecimento científico especial que extrapole os conhecimentos que se possam exigir do julgador (MARINONI; ARENHART, 2005, p. 370). Há entendimento no sentido de que a prova pericial tem certa prevalência sobre outros elementos probatórios (PINHEIRO, 2010, p. 227), tais como testemunhal, depoimento pessoal e até mesmo a confissão, ainda que no ordenamento jurídico brasileiro não haja hierarquia de provas, conforme dispõe o caput do artigo 155 do Código de Processo Penal (CPP), “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial (...)”, e o artigo 371 do Código de Processo Civil (CPC), “o juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido (...)”.
Essa prioridade, na prática, da prova pericial – em contraponto à teoria, pelo que os meios de prova são igualmente valiosos – justifica-se pelo fato de ser produzida a partir de fundamentação científica e, à vista disso, não depender de interpretações subjetivas (PINHEIRO, 2010, p. 227). É frequente que a prova pericial constitua principal elemento de sustentação de sentença condenatória ou absolutória. Citam-se exemplos de crimes que exigem determinado tipo de prova para que restem comprovados: tráfico de drogas (art. 33, Lei n. 11343/2006) e condução de veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool (art. 306, Código de Trânsito Brasileiro), em que não é bastante que cinquenta testemunhas afirmem o caráter entorpecente de uma substância ou que a concentração de álcool por litro de sangue era superior a seis decigramas, mas apenas conclusão de laudo pericial poderia atestá-lo.
Revela, ainda, o valor da espécie de prova em tela a disposição expressa no CPP, em seu artigo 525, sobre não recebimento de denúncia em casos de direitos autorais sem realização de perícia: “No caso de haver o crime deixado vestígio, a queixa ou a denúncia não será recebida se não for instruída com o exame pericial dos objetos que constituam o corpo de delito”. Ainda no cenário dos crimes contra a propriedade imaterial, cumpre realçar a questão acerca da perícia por amostragem. Não obstante o artigo 530-D do CPP preconize que a perícia seja realizada em todos os bens apreendidos, em recente consolidação de entendimento no sentido de aceitar prova produzida por amostragem, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) editou a Súmula 574, de 27 de junho de 2016:
“Para a configuração do delito de violação de direito autoral e a comprovação de sua materialidade, é suficiente a perícia realizada por amostragem do produto apreendido, nos aspectos externos do material, e é desnecessária a identificação dos titulares dos direitos autorais violados ou daqueles que os representem.”
Isso decorre da suficiência da constatação de falsidade de um único espécime para a configuração dos crimes de violação a direito autoral (HC 264.263 – SP 2013/0028344-2, STJ). Tal inovação não desobriga o perito de incluir essa informação em seu laudo; restringe-se à aceitação da prova produzida pelo método em comento, e não alcança a redação do relatório.
Tendo em conta a supra-aludida força da prova pericial, fica manifesta a impossibilidade de desprezo desse tipo de elemento probatório sem fundamentação por parte do magistrado, que se o fizer pode incorrer na restrição do direito de defesa da parte que requereu a produção da prova (MONTENEGRO FILHO, 2016, p. 449).
Consoante o princípio do Livre Convencimento Motivado, do qual dispõem os artigos 371 e 479 do CPC, 155 e 182 do CPP, o juiz aprecia a prova e não está adstrito ao laudo pericial, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte, e formar sua convicção com outros elementos ou fatos provados no processo, desde que apresente embasamento. Ilustra decisão com desvinculação do laudo pericial o julgado que segue.
“Superior Tribunal de Justiça
Processo: AgRg no AREsp 287453/RS
Órgão julgador: T2 – Segunda Turma
Data de publicação: 09.04.2013
Ementa: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. REVISÃO DO ATO DE APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. AFASTAMENTO DAS CONCLUSÕES DO LAUDO PERICIAL. INTERDIÇÃO JUDICIAL. INCAPACIDADE TOTAL E DEFINITIVA. ALIENAÇÃO MENTAL. REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 7/STJ. IMPOSSIBILIDADE.
1. Tendo o Tribunal a quo afastado as conclusões do laudo pericial e reconhecido a incapacidade total e definitiva do autor para os atos da vida civil, diante da sua interdição judicial, não há como se chegar a entendimento diverso sem o reexame do conjunto fático probatório, o que é vedado em sede de recurso especial, por força da Súmula 7/STJ.
2. Agravo regimental não provido. (Sem destaques no original.)”
Se ao magistrado for furtado o entendimento do conteúdo do relatório do perito, não há que se falar em convencimento. Tal situação manifesta-se, e.g., na dificuldade que os operadores do Direito enfrentam em entender os laudos de perícia de trânsito. “Quem não entendeu não pode estar convencido”, ressalta o des. José Ernesto Manzi (2013). Como consequência da inadequação ou insuficiência de um laudo, uma possibilidade é a intimação do perito para que possa complementar a informação, argumento ou explicação faltante, em conformidade com os artigos 181, caput, do CPP, “no caso de inobservância de formalidades, ou no caso de omissões, obscuridades ou contradições, a autoridade judiciária mandará suprir a formalidade, complementar ou esclarecer o laudo”, e 477, § 2º, I e II do CPC:
“§ 2º O perito do juízo tem o dever de, no prazo de 15 (quinze) dias, esclarecer ponto:
I - sobre o qual exista divergência ou dúvida de qualquer das partes, do juiz ou do órgão do Ministério Público;
II - divergente apresentado no parecer do assistente técnico da parte.”
Existe, ainda, a possibilidade de realização de nova perícia para que se corrijam faltas ou imprecisões em que a primeira incidiu, nos termos dos artigos 181, § único do CPP e 480, caput e § 1º do CPC. Cabe salientar que o princípio do Livre Convencimento Motivado estende-se e rege também a segunda perícia, que não invalida a primeira, podendo o magistrado valer-se de aspectos de um e de outro laudo para formar sua convicção (art. 480, § 3º, CPC; THEODORO JÚNIOR, 2016). A matéria mostra-se com requinte no trecho do julgado destacado:
“A destituição do perito oficial por desídia ocorreu, não por qualquer motivo relacionado ao trabalho que ele originariamente desenvolveu, mas por falta de empenho manifestada apenas por ocasião da prestação de esclarecimentos suplementares. Não há menção de má fé ou impedimento do primeiro perito, a invalidar seu trabalho original. Com isso, a perícia inicialmente elaborada não é inválida, mas incompleta, demandando a nomeação de novo perito para complementá-la. Não obstante o segundo perito entenda, por um critério técnico, que seria necessário repetir todo o exame da causa, produzindo novo laudo pericial completo, o juiz responsável, bem como o respectivo Tribunal, não ficam vinculados a essa medida. Assim, podem, nos expressos termos do art. 439, parágrafo único, do CPC (correspondente ao art. 480, § 3º do CPC de 2015), apreciar livremente os dois laudos periciais preparados e acolher, tanto o primeiro, como o segundo, conforme seu livre convencimento.” (STJ, REsp 805.252/ MG, Rel.ª Min.ª Nancy Andrighi, 3ª Turma, jul. 27.03.2007, DJ 16.04.2007, p. 190).
Há situações em que a rejeição do laudo, em parte ou em sua totalidade, pode ser evitada, quando a questão residir na confecção do relatório pericial.
O perito deve reportar aos demais sujeitos do processo, na esfera civil ou penal, quais sejam, o magistrado, promotor, jurado, advogado, assistente técnico e as partes e, frise-se, de forma que eles compreendam, como se procedeu sua análise, o embasamento científico e as conclusões a que chegou, com minúcias e respostas aos quesitos, conforme versa o artigo 160, caput do CPP. No âmbito civil, o novo CPC, em seu artigo 473, trouxe de modo pormenorizado, como inovação, elementos que devem constar do laudo.
“Art. 473. O laudo pericial deverá conter:
I - a exposição do objeto da perícia;
II - a análise técnica ou científica realizada pelo perito;
III - a indicação do método utilizado, esclarecendo-o e demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da área do conhecimento da qual se originou;
IV - resposta conclusiva a todos os quesitos apresentados pelo juiz, pelas partes e pelo órgão do Ministério Público.
§ 1º No laudo, o perito deve apresentar sua fundamentação em linguagem simples e com coerência lógica, indicando como alcançou suas conclusões.
§ 2º É vedado ao perito ultrapassar os limites de sua designação, bem como emitir opiniões pessoais que excedam o exame técnico ou científico do objeto da perícia.
§ 3º Para o desempenho de sua função, o perito e os assistentes técnicos podem valer-se de todos os meios necessários, ouvindo testemunhas, obtendo informações, solicitando documentos que estejam em poder da parte, de terceiros ou em repartições públicas, bem como instruir o laudo com planilhas, mapas, plantas, desenhos, fotografias ou outros elementos necessários ao esclarecimento do objeto da perícia.”
O perito deve relatar suas percepções acerca do fato em litígio com fundamentação (art. 473, § 1º) e argumentos científicos, e não se limitar a conclusões afirmativas ou negativas, confirmatórias ou contestatórias de uma ou outra versão (ROSSI, 2016). Como exemplo, cita-se o relatório de perícia documentoscópica em que o especialista conclui pela falsidade de um documento sem especificar quais elementos de segurança faltavam e por que se caracterizava a fraude. O valor do laudo repousa nos argumentos que apresenta, e não na autoridade que o subscreve (THEODORO JÚNIOR, 2016). “Laudo desfundamentado é ato arbitrário de uma autoridade científica”, configura presunção de conhecimento e isenção irrefutáveis unicamente pela notoriedade do subscritor da alegação, e não pelo raciocínio que desenvolveu, e expôs, no caso concreto específico. Quem não expressa as razões e métodos com precisão, com um eventual intuito de escapar de contestações, pode concluir como lhe convier (MANZI, 2012; 2013).
No que concerne ao parágrafo segundo do artigo 473 do CPC, o perito deve se ater a apuração dos elementos que integram o objeto da perícia sob a égide de sua ciência, sem fazer juízos de valor. Nessa perspectiva e evocando outra vez a perícia de documentos, é recomendado que o expert limite suas expressões conclusivas a “autêntico”, “falso” ou “adulterado”, sem usar termos de valoração das falsificações como “grosseira”, “não grosseira” ou “verossímil”, visto que pode parecer grosseira para um especialista, mas não para um leigo. Essa valoração é subjetiva. Cabe aos peritos apenas atestar a falsidade ou não de um documento, no exemplo.
Tendo em vista a matéria deste texto – o diálogo entre os peritos oficiais e judiciais, com extensão aos assistentes técnicos, e os demais sujeitos do processo – não se poderiam deixar de mencionar as impressões dos primeiros ao se deparar com termos que qualificam seus trabalhos ou o produto deles, o laudo. Embora usuais no âmbito jurídico, adjetivos como “imprestável” para apreciar uma perícia ou seu respectivo laudo, ou “incompetente” para apreciar o profissional, o que pode ser constatado em pesquisa jurisprudencial, podem soar indelicados ou mesmo ofensivos. Com respeito, sensatez e cuidado é possível prevenir não todas (longe disso), mas algumas ocorrências desagradáveis e desnecessárias, de um e de outro lado.
BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: 03/decreto-lei/Del3689.htm>. Acesso em: 14 jan. 2017.
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BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; define crimes e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 17 jan. 2017.
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MANZI, José Ernesto. Laudos periciais em processos judiciais. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3189, 25 mar. 2012. Disponível em: . Acesso em: 12 jan. 2017.
MANZI, José Ernesto. O juiz e o perito: paralelos e intersecções. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 118, nov 2013. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2017.
MARINONI, L. G.; ARENHART, S. C. Manual do processo de conhecimento. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
MONTENEGRO FILHO, M. Curso de Direito Processual Civil. 12. ed. reform. e atual. São Paulo: Atlas, 2016.
PINHEIRO, P. P. Direito digital. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010.
ROSSI, Carlos Alberto Del Papa. A prova pericial na Lei nº 13.105/2015 – Novo Código de Processo Civil. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIX, n. 148, maio 2016. Disponível em: . Acesso em: 18 jan. 2017.
THEODORO JÚNIOR, H. Novo Código de Processo Civil anotado. 20. ed. rev., atual. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
Doutoranda em Química Analítica pela UFMG, com mestrado e graduação em Química pela mesma instituição. Experiência na área de Química Forense, com ênfase em análise de documentos e identificação de resíduos de disparo de armas de fogo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Luisa Pereira e. Complexidade no diálogo entre peritos e demais sujeitos do processo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 jan 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48906/complexidade-no-dialogo-entre-peritos-e-demais-sujeitos-do-processo. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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