Resumo: O presente artigo busca analisar a problemática da alteração de entendimento jurisprudencial penal consolidado e sua aplicação do tempo.
Palavras-chave: Direito Penal. Retroatividade. Jurisprudência.
Sumário: Resumo; 1. Introdução; 2. A Retroatividade da lei penal mais benéfica; 2.1. Aspectos introdutórios; 2.2. Extra-atividade da lei penal; 2.3. Hipóteses de retroatividade da lei penal; 2.3.1. Abolitio criminis; 2.3.2. Novatio legis in mellius; 2.4. Hipóteses de irretroatividade da lei penal; 2.4.1. Novatio legis incriminadora; 2.4.2. Novatio leis in pejus; 3. A ultratividade de entendimento jurisprudencial penal consolidado mais benéfico; 4. Conclusão; Referências.
1. INTRODUÇÃO
Trata-se o presente artigo de um estudo acerca da proibição de retroatividade de um novo entendimento jurisprudencial que se mostre mais gravoso ao agente que, sob a vigência da mesma lei, praticou uma conduta criminosa, sendo que no desenrolar do processo aquela interpretação consolidada mais benéfica dos Tribunais acaba se modificando e se mostrando mais prejudicial ao acusado. É oportuno ressaltar que este assunto que iremos tratar não é similar aos casos de modificação da jurisprudência em razão da entrada em vigor de uma nova lei. Não é isso. Em verdade, o que iremos abordar surge em relação a momentos submetidos a vigência de uma mesma lei, onde o que se altera é a interpretação dos tribunais superiores a respeito das mesmas, passando a se mostrar mais prejudicial ao acusado.
2. A RETROATIVIDADE DA LEI PENAL BENÉFICA
2.1. Aspectos introdutórios
É do conhecimento de todos que o resultado do trabalho levado a efeitos pelos nossos legisladores não se dá de maneira perpétua. Neste sentido, é normal que com o decorrer do tempo novas leis surjam, já que estas devem buscar manifestar os novos reclamos da sociedade.
A leis, vias de regra, são elaboradas para regular tanto os fatos atuais como os futuros. Justamente por isso é que a retroatividade não se presume. No entanto, de maneira excepcional e expressa, é possível que os comandos de uma nova lei sejam aplicados retroativamente, com a ressalva de que ao incidir não poderá prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, nos termos do artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal.
Como afirmado acima, não podemos esquecer que a elaboração de uma lei penal benéfica representa uma situação de exceção. Trata-se, inclusive, da única lei que poderá operar de forma retroativa sem que haja permissão expressa neste sentido. Para que isso ocorra, ou seja, para que possa retroagir, basta que seja de alguma maneira mais benéfica ao acusado, sendo que, nos termos da súmula nº 611 do Supremo Tribunal Federal, poderá atingir até mesmo uma sentença que tenha transitado em julgado.
Perceba que a possibilidade de retroatividade da lei penal mais benéfica ao acusado é tão importante que o dispositivo foi previsto tanto na Constituição Federal quanto no Código Penal (artigo 2º). Além disso, foi elevado à condição de cláusula pétrea, ao afirmar no artigo 5º, XL da Constituição, que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.
2.2. Extra-atividade da lei penal
Extra-atividade, portanto, é o fenômeno através do qual a lei penal irradia seus efeitos fora de seu período de vigência. Segundo Rogério Sanches (2016, p. 103), “a esta possibilidade conferida à lei de movimentar-se no tempo (para beneficiar o réu) dá-se o nome de extra-atividade”. O instituto é divido em duas modalidades:
a) Retroatividade: a nova lei retroage para alcançar os fatos anteriores à sua entrada em vigor, desde que haja qualquer tipo de benefício para o agente; e
b) Ultratividade: possibilidade de aplicação da lei penal mesmo após a sua revogação ou cessação de efeitos.
2.3. Hipóteses de retroatividade da lei penal
O princípio da retroatividade da lei penal deve ser compreendido como gênero do qual são espécies a abolitio criminis e a novatio legis in mellius.
2.3.1. Abolitio criminis
A abolitio criminis encontra previsão no artigo 2º do Código Penal.
Art. 2º - Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984). Parágrafo único - A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Nas palavras de Rogério Greco (2016, p. 162):
Quando o legislador, atento às mutações sociais, resolve não mais continuar a incriminar determinada conduta, retirando do ordenamento jurídico-penal a infração que a previa, pois passou a entender que o Direito Penal não mais se fazia necessário à proteção de determinado bem, ocorre o fenômeno jurídico conhecido por abolitio criminis.
A abolição do crime representa a supressão da figura criminosa. Trata-se da revogação de um tipo penal pela superveniência de lei descriminalizadora (SANCHES, 2016, p. 106). Por outras palavras, há uma descriminalização da conduta até então típica. O que era crime deixa de ser. O fato, portanto, passa a ser atípico.
De acordo com o artigo 107, III do Código Penal, a abolitio criminis é causa de extinção da punibilidade do agente. Esta, portanto, é a sua natureza jurídica. Como exemplo de fatos que deixaram de ser considerados criminosos em razão da abolitio criminis podemos citar, dentre outros, os antigos crimes de sedução (artigo 217), adultério (artigo 240) e também a contravenção penal de mendicância (art. 60 da Lei de contravenções penais) etc. É digo de nota que a tarefa de levar a efeito a revogação tipos penais é exclusiva do legislador.
Por se tratar de um instituto mais benéfico ao agente criminoso, a abolitio criminis poderá incidir em qualquer fase do processo, e até mesmo após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Surgindo a abolitio criminis após o trânsito em julgado, os efeitos extrapenais persistirão.
Cumpre ressaltar que a sentença condenatória continua valendo como título executivo passível de execução no juízo cível. No caso de já existir sentença condenatória transitada em julgado, nos termos da súmula 611 do STF, será do juízo das execuções a competência para a sua aplicação.
2.3.2. Novatio legis in mellius
Esta é a segunda forma de retroatividade da lei penal benéfica. Porém, ao contrário do que ocorre com a abolitio criminis, na novatio legis in mellius o fato não se torna atípico. Pelo contrário. Ele continua a ser criminoso, mas a nova lei acaba trazendo alguma espécie de benefício ao agente, que não existia anteriormente. De acordo com o art. 2º, §Ú do Código Penal, mesmo as sentenças condenatórias com trânsito em julgado são atingidas pela lei nova mais favorável.
Para falarmos em novatio legis in mellius, basta que a nova lei seja de alguma forma mais benéfica ao agente.
A novatio legis in mellius será sempre retroativa, sendo aplicada aos fatos ocorridos anteriormente à sua vigência, ainda que tenham sido decididos por sentença condenatória já transitada em julgado. Se, por exemplo, surgir uma lei nova reduzindo a pena mínima de determinada infração penal, deve aquela que foi aplicada ao agente ser reduzida a fim de atender aos novos limites, mesmo que a sentença que o condenou já tenha transitado em julgado. Só não terá aplicação a lei nova, no exemplo fornecido, se o agente já tiver cumprido a pena que lhe fora imposta. (GRECO, 2016, p. 160).
2.4. Hipóteses de irretroatividade da lei penal
Ao contrário do que vimos acima, aqui temos hipóteses de irretroatividade da lei penal, ou seja, hipóteses em que a lei penal não irá retroagir. São duas as situações em que isso ocorrerá.
2.4.1. Novatio legis incriminadora
A novatio legis incriminadora é a lei que não existia no momento da prática da conduta e que passa a considerar como delito a ação ou omissão realizada. Esta norma é irretroativa, nos termos do artigo 1º do Código Penal (SANCHES, 2016, p. 105). Por outras palavras, o direito penal passa a considerar criminoso um fato que antes não era incriminado.
2.4.2. Novatio legis in pejus
No caso da novatio legis in pejus, já existia uma lei que incriminava um determinado fato, mas acaba surgindo uma nova lei tornando-o mais grave. Nesse caso, em razão da aplicação do princípio da irretroatividade da lei penal mais severa, a nova lei não poderá retroagir, ou seja, não poderá alcançar os fatos anteriores. Em casos como este, deveremos aplicar a lei que que vigorava na data da conduta criminosa, isto é, a lei antiga é que deverá ser aplicada. Por outras palavras, se com a edição de uma nova lei houver qualquer piora na situação do agente, ela não poderá ser aplicada.
Portanto, nos casos de irretroatividade da lei penal, por prejudicarem a situação do acusado, tanto a novatio legis incriminadora quanto a novatio legis in pejus são consideradas irretroativas. Sendo assim, como já visto acima, deveremos aplicar o princípio da ultratividade da lei penal, isto é, será aplicada a lei vigente à época do fato, ainda que expressamente tenha sido revogada pela lei posterior.
3. A ULTRATIVIDADE DE ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL PENAL CONSOLIDADO MAIS BENÉFICO
Imagine que uma conduta criminosa venha a ser praticada sob a égide de um consolidado entendimento jurisprudencial específico que fosse completamente benéfico ao acusado. Perceba que no momento da pratica da conduta o entendimento jurisprudencial que prevalecia era mais benéfico ao acusado, porém, no momento do julgamento, com a alteração este veio a se tornar mais gravoso.
Neste tópico, a indagação é a seguinte: Poderá o acusado invocar a jurisprudência predominante no momento da realização da conduta, equiparando o entendimento jurisprudencial à lei? É possível utilizar as regras do conflito de leis no tempo para a jurisprudência? Há diversas correntes doutrinárias para responder essas perguntas.
O primeiro entendimento, tradicional, diga-se de passagem, é no sentido de que não há essa possibilidade, já que a ideia de ultratividade é exclusivamente aplicada à lei, segundo comando constitucional e em razão da separação de poderes, não há como comparar jurisprudência à lei.
Portanto, segundo essa primeira corrente de pensamento, entendimento jurisprudencial não tem ultratividade, pois como não houve alteração legislativa, mas tão somente na sua interpretação, a defesa do acusado não poderá exigir que aquele entendimento jurisprudencial de outrora seja aplicado por ser mais benéfico.
Um segundo entendimento mais moderno, também sustenta que não se pode equiparar a jurisprudência à lei, porém, neste caso, seria possível utilizar para aquele agente que cometeu o crime quando predominante uma jurisprudência favorável, a ideia de erro de proibição, afastando assim um tratamento mais gravoso.
Ocorre que, por vezes, a mudança na jurisprudência não tem relação com a percepção de proibição da conduta, ou seja, pode ter, por exemplo, relação com o aspecto secundário da norma penal. Desta forma, essa ideia acaba não abarcando todos os casos.
De forma intermediária, um terceiro entendimento, defendido, dentre outros, por Juarez Tavares, sustenta que a ultratividade pode ser invocada sempre que o entendimento jurisprudencial anterior, mais benéfico para o acusado, seja claramente criador de norma até então inexistente, e não meramente a interpretação de dispositivos legais. Por outras palavras, haveria a possibilidade de ultratividade do entendimento jurisprudencial mais benéfico desde que a jurisprudência construa algo novo, que vai além da lei.
Em verdade, existem hipóteses em que a jurisprudência não se limita a interpretar, construindo situações. Como exemplo, poderíamos citar o enunciado da súmula nº 554 do STF, aduzindo que “o pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal”. Note que a referida súmula criou uma causa de extinção de punibilidade que não estava prevista na lei, qual seja, o pagamento do cheque no crime de emissão dolosa de cheque sem fundo.
Nestas hipóteses, portanto, parte da doutrina sustenta que o entendimento jurisprudencial seria equiparado à lei para fins de aplicação das regras do conflito de leis no tempo, tendo, portanto, ultratividade. Sendo assim, como exceção, esta corrente de pensamento entende que, quando entendimento da jurisprudência for inovador, isto é, que venha a criar algo novo, este irá se equiparar à lei e será dotado de ultratividade.
4. CONCLUSÃO
Diante do que fora exposto, podemos concluir que a doutrina predominante ainda sustenta que modificação do entendimento jurisprudencial não se equipara a mudança de lei, para fim de aplicação das regras do conflito de leis no tempo. Neste sentido, se no momento do fato predomina determinada interpretação da lei, depois modificada para pior (para o acusado) no momento da prolação da sentença ou acórdão, não seria possível invocar a ultratividade do entendimento mais benéfico. Todavia, é digno de nota que esta questão vem sendo revisitada pela doutrina mais abalizada, haja vista uma maior importância do Judiciário (da jurisprudência) como fonte de Direito, a partir do constitucionalismo e da importância dos princípios jurídicos na Teoria do Direito, principalmente, com a eficácia objetiva dos direitos fundamentais. Em razão disso, a mesma sustenta que a ultratividade pode ser invocada sempre que o entendimento jurisprudencial anterior, mais benéfico para o acusado, seja claramente criador de norma até então inexistente, e não meramente a interpretação de dispositivos legais. Portanto, buscando privilegiar os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal, a ultratividade da lei penal benéfica deve ser estendida aos entendimentos jurisprudenciais consolidados à época da prática do crime e que se mostravam mais favoráveis ao acusado.
5. REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal Brasileiro. Planalto. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm, acesso em 28 de janeiro de 2017.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 4. Ed. Salvador: Jus Podivm, 2016.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 18. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2016.
Advogado graduado pela Universidade Cândido Mendes
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Claudio Alves da Silva. A ultratividade de entendimento jurisprudencial penal consolidado mais benéfico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 fev 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49102/a-ultratividade-de-entendimento-jurisprudencial-penal-consolidado-mais-benefico. Acesso em: 22 nov 2024.
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