RESUMO: O trabalho apresentado tem por objetivo promover uma reflexão crítica sobre as possíveis causas jurídicas da crise do sistema prisional brasileiro e os mecanismos judiciais não-convencionais compensadores, quais sejam: a (i)legitimidade da judicialização de políticas públicas prisionais, o necessário filtro da proporcionalidade e o reflexo social desses mecanismos face o princípio da Separação dos Poderes e do Estado Democrático de Direito.
PALAVRAS-CHAVE: sistema prisional - crise - judicialização de políticas públicas - proporcionalidade - Separação dos Poderes e Estado Democrático de Direito.
Considerações iniciais
A compreensão e o efetivo respeito ao papel primordial dos poderes constituídos é pressuposto necessário à manutenção da efetiva Separação dos Poderes e do Estado Democrático de Direito. Assim, é legítimo o receio de uma potencial distorção das respectivas funções típicas, especialmente da função jurisdicional, no contexto de um constitucionalismo moderno aberto a práticas judiciais não-convencionais, ante a complexa tarefa de implementação do indispensável filtro da proporcionalidade.
Nesse cenário, discute-se até que ponto o ativismo judicial - STF como legislador positivo e implementador de políticas públicas - se legitima sem que se ofenda os postulados da separação de poderes e do estado democrático se direito.
Propõe-se uma reflexão sobre os verdadeiros papéis a serem desempenhados pelos poderes constituídos frente a uma crise sistêmica no sistema penitenciário pátrio. A partir dessa reflexão, atentar para a excepcionalidade das práticas atípicas no exercício do poderes constituídos (poder judiciário atuando como legislador positivo ou implementando políticas públicas penitenciárias).
Por fim, apresentaremos uma breve compilação de decisões dos tribunais superiores que refletem essas práticas.
I - Atividade legiferante criminal, a ofensa ao principio da intervenção mínima - direito penal de emergência, promocional e sua hipertrofia - e consequências.
Atividade legiferante criminal - o desrespeito ao princípio da intervenção mínima
Sabe-se que ordinariamente cabe ao poder legislativo federal a criação de tipos penais, matéria sob reverta legal - lei em sentido estrito.
Nesse diapasão, a atividade legislativa deve, na seleção de condutas, observar a faceta do princípio da legalidade consistente na intervenção mínima, limitador do poder punitivo estatal, segundo o qual a intervenção do direito penal só se legitima quando necessário para proteger bens jurídicos relevantes, sem o qual outros meios de proteção se mostram ineficazes, diga-se, somente quando, em abstrato, nenhum outro ramo do direito seria capaz de corrigir a conduta desviada. (1) (2)
Direito penal de emergência e hipertrofia do direito penal
Nesse contexto, noutro giro do princípio acima descrito, exsurge o chamado direito penal de emergência, que representa flagrante ofensa ao direito penal de última rateio - hipertrofia do direito penal. O direito penal de emergência é definido como a criação de tipos penais com objetivo de saciar o clamor público impetuoso, em geral transitório, de punir condutas indesejadas - mas que, em tese, poderiam ser corrigidas com medidas diversas da criação de tipos penais, como consequência dessa motivação predominante, referidos tipos penais prevêem penas exageradas.
Já a hipertrofia do direito penal ocorre quando, segundo Cleber Masson (3) em situações imponderadas, o legislador agrava penas ou cria outras regras prejudiciais ao acusado (novato legis in pejus).
A exemplo dessas distorções legislativas, temos a própria lei de crimes hediondos, que tem seu rol de crimes periodicamente incrementado sem qualquer base ou estudo criminológico de longo prazo ou, noutros casos, vedações pontuais a benefícios penais injustificados ou desproporcionais.
O direito penal promocional
Ainda no contexto das ofensas ao principio da legalidade e ao direito penal de ultima ratio, doutrina pátria - Rogério Sanshes (4) e Rogerio Greco (5) aponta para o fenômeno criminológico-social denominado direito penal promocional. O direito penal promocional (político ou demagogo) consiste na criação de dispositivos penais incriminadores - novato legis in pejus - que fogem do objetivo ideal - política criminal e proteção a bens jurídicos relevantes -, ou seja, no direito penal promocional o objetivo principal é de implementar políticas públicas não-criminais como forma de transformação social (papel que deveria ser desempenhado por outros ramos do direito, como o direito civil e administrativo). Para exemplificar, imagine-se a criação de tipos penais com o objetivo de promover políticas públicas de reforma agrária. Sanshes cita como exemplo concreto a previsão, até 2009, da mendicância como contravenção penal.
Assim, tanto no direito penal de emergência, quanto no direito penal promocional, para mitigar o furor social, criam-se ou agravam-se tipos penais não com o objetivo de implementar políticas criminais de longo prazo, mas apenas para dar uma resposta rápida a determinados segmentos sociais que se sentem ameaçados por ações desviadas.
Vale destacar que tanto Rogerio Greco, quanto o professor Rogerio Sanshes, classificam os institutos acima descritos como exemplos de uma Função Simbólica do Direito Penal, haja vista que nestes casos o direito penal é utilizado não para proteger bens jurídicos relevantes, mas para fins outros, como provocar a falsa sensação de tranquilidade para se obter benesses eleitoreiras.
A consequência nefasta clara destas disfunções é a criação desenfreada de leis penais incriminadoras e que, além de ofensivas a direitos fundamentais individuais, inexoravelmente, a médio prazo, resultam na sobrecarga do sistema punitivo-ressocializador.
II - Estado de Coisas Inconstitucionais e Ativismo judicial no sistema carcerário
Estado de Coisas Inconstitucionais (ECI)
Expressão utilizada por ocasião do acórdão do Ministro-relator Marco Aurélio, na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental - DPF 347 MC/DF, julgado em 9/9/2015, que designa a existência de um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais, referida violação se dá pela inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura. Assim, nessas situações, apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público e a atuação de uma pluralidade de autoridades podem alterar a situação de violação direitos fundamentais. (6)
A existência de um Estado de Coisas Inconstitucionais gera o chamado “litígio estrutural”, onde um grande número de pessoas são atingidas pelas violações de direitos. Nesses casos, para enfrentar esse litígio, a Corte terá que fixar “remédios estruturais”, que são destinados à formulação e à execução de políticas públicas, a necessidade desse ativismo se justifica porque as decisões mais tradicionais não são capazes de solucionar tais estruturas defeituosas.
Assim, entende-se que somente por meio desse tipo de ativismo judicial as omissões – falta de vontade política - dos poderes Executivo e Legislativo podem ser sanadas.
No caso da ADPF 347, o Supremo reconheceu a existência de um ECI e determinou em decisão liminar: 1 – a imediata implementação das audiências de custódia; 2 – a liberação das verbas do Fundo Penitenciário.
Ativismo judicial: Judicialização de políticas públicas carcerárias e o filtro da proporcionalidade
Conforme o Ministro Gilmar Mendes (7) defende, em breve síntese, o ativismo judicial representa uma moderna fase evolutiva do constitucionalismo moderno (neoconstitucionalismo), onde o poder judiciário, com o objetivo de garantir direitos fundamentais ante a omissão do poder executivo, determina a implementação de políticas públicas ou, ainda, atua como verdadeiro legislador positivo. Referida prática deve ser, segundo doutrina majoritária, exercida de forma excepcional e em casos pontuais, respeitado o princípio da proporcionalidade.
Em sede de execução penal, nas políticas públicas criminais carcerárias e de ressocialização, ante omissões inconstitucionais e a falência do sistema carcerário, observa-se que é cada vez mais constante a atuação do poder judiciário no sentido de impor ao executivo a implementação de políticas públicas que, muitas vezes, representam um simples (além de prático e "econômico") e temerário desencarceramento, sem o devido planejamento criminológico.
Dúvidas não restam de que referidas omissões podem representar grave violação a preceitos fundamentais – presente na ADPF 347. Também não se discute a legitimidade genérica do STF para, excepcionalmente, exercer o ativismo judicial. O que merece reflexão é o excesso no exercício dessa função atípica do judiciário que, paulatinamente e sem que se perceba, beira a fronteira difusa do filtro da proporcionalidade.
III – A jurisprudência dos Tribunais Superiores – Medidas judiciais compensadoras
Audiência de custodia (STF, ADPF 347 MC/DF, julgado em 09/09/2015)
Na ADPF 347, o Supremo concedeu medida cautelar, determinando que o Estado brasileiro cumpra os termos do art. 7º, ítem 5, do Pacto de São José da Costa Rica. Em síntese, a decisão determina a obrigatoriedade de se proporcionar ao cidadão, uma vez preso em flagrante, seja conduzido à autoridade judicial em, no máximo 24 horas, para assim permitir que haja rápida analise sobre a legalidade e necessidade da prisão realizada. Referida medida visa garantir, em primeira análise, o direito à ampla defesa na vertente do direito de presença. (8)
Obviamente, em abstrato e desvinculada de outros direitos fundamentais conflitantes, a ratio decidendi explicitada merece elogios. Medidas de contracautela e garantias processuais penais de liberdade merecem, sim, implementação.
Não obstante, é preciso esclarecer e refletir sobre o atual cenário brasileiro, que não coincide com o contexto de mais de 20 anos atrás, quando da adesão ao art. 7º, item 5, do Pacto. Há uma inovação na razão de ser da audiência de custódia brasileira, qual seja: o desafogamento do sistema carcerário.
Além da reflexão crítica acima mencionada, cabe ainda uma segunda, que está mais relacionada à forma de implementação e acompanhamento da decisão na ADPF 347. No planejamento estratégico, se é que foi considerado quando da decisão mandamental, dever-se-ia mensurar os efeitos adversos do puro e simples desencarceramento promovido nas referidas audiências.
Por fim, uma última critica a ser considerada, esta de caráter pragmático, é o fato de, no dia a dia dos plantões judiciários das audiências de custódia, em muitos dos casos, há liberação de indivíduos perigosos por simples apego ao formalismo, ainda que presentes os requisitos da Prisão Preventiva estabelecidos no art. 311 e seguintes do CPP, o que pode resultar em sérios danos à coletividade se considerados em larga escala.
Superação da hediondez do tráfico privilegiado (STF. Plenário. HC 118533, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 23/06/2016);
O plenário do STF, em junho de 2016, não apenas mudou entendimento pacífico na própria corte, como também superou a Súmula 512 do STJ. Esta decisão é emblemática no entendimento do atual panorama da política de desencarceramento hodierna. Até a data da referida superação, praticamente não existia divergência jurisprudencial e doutrinária, era amplamente majoritário o entendimento no sentido da hediondez do tráfico privilegiado.
Segundo Gabriel Santos Elias (8), coordenador de Relações Institucionais da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, o tráfico de drogas é responsável por quase 30% da população carcerária do Brasil. No voto do Ministro Ricardo Lewandoski, afirmou-se que aproximadamente 45% das pessoas condenadas pelo crime de tráfico ou de associação ao tráfico tiveram em sua sentença o reconhecimento explícito do privilégio.
Esses dados, somados ao revés jurisprudencial, são indicativos de que a juridicidade da presente decisão está amplamente mitigada – senão eliminada – pelo viés social, político e financeiro do seu resultado prático.
Do direito à prisão domiciliar (STJ, 6ª turma, HC 323.074/BA, julgado em 25/08/2015)
Os artigos 318, do CPP e 117, da Lei de Execuções Penais, recentemente ampliados, são reiteradamente alvo de interpretações extensivas na jurisprudência dos tribunais superiores. Dois casos merecem destaque, quais sejam: 1 - a possibilidade de prisão domiciliar quando da inexistência de vaga em casa de albergado STJ: 6ª turma, AgRg no Resp 1.487.218); 2 – a possibilidade de prisão domiciliar para o condenado ao regime diverso do aberto (STJ, 6ª turma, HC 323.074/BA, julgado em 25/08/2015).
Indiscutivelmente, ainda que louvável do ponto de vista da dignidade da pessoa humana de cunho individual, não se pode desprezar a intenção velada de promover políticas públicas de desencarceramento.
Remissão pela leitura em dias não úteis e à distância (STJ: 6ª turma, AgRg no Resp 1.487.218)
Mais uma vez, afirmamos ser louvável a ratio decidendi exposta, qual seja, difundir cultura e educação como vetores de ressocialização no ambiente carcerário. Entretanto, não obstante não se refira no acórdão, obviamente, além do objetivo retromencionado, há também o de desafogar o sistema carcerário.
CONCLUSÃO
A crise do sistema prisional brasileiro é complexa e decorre, em grande parte, da falta de políticas públicas de segurança com planejamento estratégico e sistémico para toda a persecução penal, desde a investigação preliminar até após a execução (egresso). Os papéis de casa poder constituído nesse enfrentamento devem estar claramente delineados e, ainda que grave seja a crise no sistema, não se justifica – a não ser excepcionalmente e em casos pontuais – um ativismo jurisdicional desarrazoado.
O STF, tradicionalmente, tem retrospecto de interferir em políticas públicas de forma excepcional. Entretanto, mais recentemente, devido ao aumento na frequência de decisões dessa natureza, Vem à tona o receio da banalização, da cultura do judiciário como legislador positivo imponderado.
Por esses motivos, observamos que o melhor dos filtros ao ativismo judicial é o princípio da razabilidade, este, a nosso ver, clarifica a linha tênue que separa referidas decisões da ofensa aos princípios da separação dos poderes e do estado democrático de direito.
Por fim, entendemos que na maioria das recentes decisões direcionadas ao desafogamento do sistema prisional brasileiro, tais decisões efetivamente respeitaram o crivo da proporcionalidade, não obstante o aumento da frequência no curto espaço de tempo indique falta de planejamento estratégico. Outrossim, a nosso ver, merece correção, no que pertine à forma de implementação, a decisão da ADPF n. 346, que determinou a implementação das audiências de custódia, pelos motivos elencados no capítulo III.
REFERÊNCIAS:
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 17ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 54. (2)
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 347. Relator: Ministro Marco Aurélio. Pleno. Brasília. (6)
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal – Parte Geral. 3ª Ed. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 86 (1) (4)
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 18. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2016. (5)
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. (7)
MASSON, Cléber. Código Penal comentado. 2ª Ed. Método, 2014, p. 20. (3)
O Estado de Coisas Inconstitucional e o litígio estrutural. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-litigio-estrutural. (8)
Graduação - Associação Caruaruense de Ensino Superior - ASCES; pós graduação lato sensu - UNIDERP- ANHANGUERA. Oficial de Justiça do TJPE; Bacharel em Direito, Pós Graduado em Direito Público; Ex - advogado; Aprovado nos concursos de Delegado de Polícia do DF (dentro das vagas, espera nomeação), Delegado de Polícia do RN (nomeado, não tomou posse) e Delegado de Polícia de Polícia de PE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Jacsan Vasconcelos Almeida. A crise do sistema penal carcerário brasileiro e o ativismo judicial: Do casuísmo do direito penal simbólico - de emergência e promocional - ao Estado de Coisas Inconstitucionais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 fev 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49294/a-crise-do-sistema-penal-carcerario-brasileiro-e-o-ativismo-judicial-do-casuismo-do-direito-penal-simbolico-de-emergencia-e-promocional-ao-estado-de-coisas-inconstitucionais. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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