Resumo: A presente pesquisa tem por fim verificar no contexto da política criminal moderna os vetores que discernem o Direito Penal do Inimigo, sobremaneira no que tange o conceito de inimigo e o conceito de bem jurídico tutelável. Tais conceitos serão analisados sob a óptica da doutrina jakobsiana e das demais doutrinas que permitiram a construção dos referidos conceitos.
Palavras Chaves: Penal. Conceito. Inimigo. Jakobs. Bem jurídico.
APRESENTAÇÃO
A modernidade, consoante as novas categorias de poder-saber sobre o “homem”, assume, sobretudo no papel punitivo, características ora voltadas a normatização de estruturas de exceção (Direito Penal do Inimigo), ora, em contrapartida, a racionalidade dentro do mesmo discurso político punitivo, portanto com espaço próprio, sob a epígrafe do garantismo.
O primeiro consubstanciado no funcionalismo sistêmico, tipifica o inimigo, muito embora com conceitos vagos, o que deixa margem ao alvedrio da forças políticas, como aquele que constantemente delinqüe contra a ordem instituída, e portanto corresponde as expectativas normativas do papel social que lhe foi dado, e mediante isto, é legitimado a sua exclusão. E este é o âmago, identificar na teoria jakosiana seus elementos característicos, tal qual seu conteúdo filosófico e político, o que a teoria entende por bem jurídico penal, e as conseqüências processuais da materialidade da teoria.
Assim, busca-se mediante a análise empírico-jurídica de nossas cortes, a verificação dos modelos elencados, quais sejam, o Direito Penal do Inimigo.
DIREITO PENAL DO INIMIGO
O escopo deste trabalho é a análise de modelos de atuação do Direito Penal dotados de referência nos discursos políticos da atualidade, auscultando dentre estes modelos, quais os fatores preponderantes e relevantes à proposição de uma racionalidade constitucional, tanto penal como processual penal, como forma de rechaçar políticas penais de exceção e, por sua vez, de espoliação humana. Tal desiderato será alcançado mediante estudo da teoria jakobsiana junto ao garantismo (FERRAJOLI, 1995) e ao neoconstitucionalismo. Será evidenciado, dentro do Direito Penal do Inimigo, o conceito de inimigo, o bem jurídico e a repercussão da materialidade do modelo no aspecto processual.
1.1.DO CONCEITO DE “INIMIGO”
Ver-se-á que os aspectos filosóficos do inimigo, tanto na teoria do Direito quanto na teoria do Estado, ganharam ao longo da história novos contornos, invadindo cada vez mais as posições centrais, passando de um fenômeno que surge em virtude de um Estado ideal a um ponto de destaque na práxis política, ademais, ao despir-se de seu caráter descritivo, o conceito “inimigo” tende a assumir um papel justificante.
Em seus escritos sobre o Estado ideal, Aristóteles (2006) vislumbra o ser que não possui condições para vincular-se a uma determinada ordem, não sendo nem um “animal” nem um “Deus”, legitimando que contra este se use a pena capital.
Já os contratualístas, em sede das condições de paz, mantida graças às porções de liberdade individual depositadas no órgão central, o soberano, o Estado; assumem posição categórica diante daqueles que desestabilizam o ordenamento , que pressupõe os direitos dos súditos e do soberano; destarte Locke vaticina:
Quem usurpa violentamente, quer seja senhor ou súdito, os direitos do príncipe ou do povo, que conduzam a um golpe de estado à constituição e à totalidade da estrutura de um governo justo, é culpado pelo piro dos delitos que, na minha opinião, um homem pode cometer. Deve responder por todos os males de derramamento de sangue, roubos e devastação que provoca em um país a destruição do governo. E quem se comporta desta maneira é considerado, com razão, como o inimigo comum, como parasitada humanidade e deve ser tratado, em correspondência, como tal. (LOCKE apud AMBOS, 2006, p.5).
Assim como na lição de Rousseau:
Longe de dispor da própria vida nesse tratado, nós cuidamos somente de assegurar, e não creio que algum dos contratantes, premedite nesse tempo ir à forca: quanto mais todo malfeitor insulta o direito social, torna-se, por seus crimes, rebelde e traidor da Pátria, de que cessa de ser membro por violar suas leis e à qual até faz guerra; a conservação do Estado não é compatível então com a sua, deve um dos dois morrer, e é mais como inimigo que se condena a morte que como cidadão” (ROUSSEAU, 2006, p.42).
Diferentemente, no entanto contratualista, Hobbes ao tipificar o inimigo, o reorganiza sob a óptica política, complementando seu conceito ao caracterizá-lo não como o simples transgressor, mas como aquele que ao transgredir desrespeita as bases das instituições fundamentadas no contrato social, cometendo um tipo especial de crime, qual seja, o lesa regis (crimes que atacam de forma frontal a organização e soberania do Estado), assim leciona pontualmente Gunther Jakobs (2009, p.6): “Para Rousseau e Fichte, todo criminoso, em si, é inimigo; para Hobbes ao menos, o alto traidor”. Considerando o mesmo fator para qualificação do Inimigo, Beccaria conclui:
A morte de um cidadão só pode ser considerada necessária por dois motivos: primeiro, quando, ainda que privado de sua liberdade, ele conserva poder e relações tais que podem afetar a segurança nacional; o segundo quando sua existência pode produzir uma revolução perigosa para a forma de governo estabelecida. (BECCARIA, 2005, p.95).
Porém, cumpre investigar o âmago hobbesiano pertinente ao trabalho. Veja-se primeiramente o momento histórico dos escritos de Thomas Hobbes, qual seja a guerra civil inglesa iniciada no ano de 1642, finda com a condenação capital de Carlos I no ano de1649. Sendo “Leviathan or the Matter, Form and Power of a Commonwealth Ecclesiastical and Civil” publicado pelo autor inglês no ano de 1651. Em que pese, atual a uma guerra civil, sob o clima de instabilidade inglesa, que tendia a unificação nacional sob égide do absolutismo, ou seja, completamente diferente do contexto democrático-liberal de nosso século. Não bastasse, Hobbes conduz o leitor à percepção do Estado Natural consistente no primado da igualdade entre os homens, assim todos seriam donos de tudo, bastando à tutela da maior força para conservar a propriedade, num clima de constante insegurança, portanto cada homem seria inimigo de cada homem; contudo sob o primado da razão na persecução da paz, o homem tenderia à institucionalização da soberania, na figura do príncipe. Assim, malgrado a interpretação jakobisiana, o Estado é criado graças ao medo e mantido graças à paz, e não criado pela paz e mantido pelo medo. A esse respeito Hobbes aponta:
Torna-se manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-los a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama de guerra. Uma guerra de todos os homens contra todos os homens. (HOBBES, 2001, p 98).
Deste modo, rechaçar o inimigo seria tão só não o garantir a paz proporcionada pelo Estado, volvendo-o ao Estado de Natureza. Pontua acertadamente Busato, “Como se nota, Hobbes não prega a aplicação de nenhuma classe de direito ao inimigo, já que ele está fora do alcance do direito e fora do Estado” (BUSATO, 2010, p. 119)
Não obstante, adotando uma distinção entre o Estado natural e o Estado civil, Kant, entende o inimigo como aquele que vive em negação do Estado civil, vivendo, portanto, em um Estado natural. Onde o inimigo seria, tão logo, aquele que ameaça de forma continua aqueles que vivem sob a égide da ordem civil. Assim Kant em sua obra “À paz perpétua” relata:
[...] o homem (ou o povo) no puro estado de natureza tira de mim esta segurança e me lesa já por esse mesmo estado, na medida em que está ao meu lado, ainda que não de fato (facto), pela ausência de leis de seu Estado, pelo que eu sou continuamente ameaçado por ele, e posso forçá-lo ou a entrar comigo em um Estado comum legal ou retirar-se de minha vizinhança. – O postulado, portanto, que serve de fundamento a todos os artigos seguintes é: todos os homens que podem influenciar-se reciprocamente têm de pertencer a alguma constituição civil. (KANT, 2008, p. 23)
1.2. O INIMIGO IMPLICAÇOES JAKOBSIANAS
Surge, então, a teoria jakobsiana, baseada na idéia do funcionalismo sistêmico do sociólogo alemão Niklas Luhmann (1983); onde a sociedade, enquanto sistema de comunicação funciona em virtude de ligações simbólicas, sendo o homem, portando, portador de um papel, que nada mais é senão uma expectativa de comportamento aceita pelo ordenamento. Sendo assim, aquele que negligenciar o alicerce cognitivo de sua personalidade, ou seja, aquele que “se desvia do direito por princípio”, pode, segundo a ordem a qual faz parte, perder a qualidade de cidadão, sendo reduzido à reles indivíduo, sendo este responsável por sua “auto-exclusão” por recusar-se aos deveres a todos impostos. Nesse diapasão conceituando o “inimigo”, aduz Gunther Jakobs:
Aquele que se desvia da norma por princípio não oferece qualquer garantia de que se comportará como pessoa: por isso, não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser combatido como inimigo. Essa guerra acontece com um direito legítimo dos cidadãos, mas precisamente com seu direito à segurança; mas, diferentemente da pena, ela não é direito no que se refere ao apenado; pelo contrário, o inimigo é excluído. (JAKOBS, 2009, p.22-23)
Vale destacar, desde logo, que o inimigo jakobsiano é aquele que por sua habitualidade e hostilidade tende a negar a ordem civil (preceito kantiano), trazendo danos à sua estabilidade organizacional do poder instituído (preceito hobbesiano). De tal sorte que nem todo criminoso corresponde à categoria de inimigo, porquanto não lesem os fundamentos organizacionais do Estado Democrático de Direito, os criminosos
inabituais reservam consigo o estado de cidadão a atrais os direitos e garantias fundamentais que lhes é inerente, sobremaneira o resguardo de sua própria vida, integridade física e incolumidade psicológica.
Destarte, a evolução teórica da “inimizade” do Estado junto ao homem, principia de uma abstração, de um lúdico e imaginário bestiário (nos dizeres de Aristóteles “nem um animal, nem um Deus”) inserida em um Estado ideal. No entanto, a entidade (o inimigo) transforma-se na Modernidade em um ser visível; pululando entre as manchetes dos jornais; o “inimigo” ganha linguagem; o “inimigo” ganha normatividade apta a discerni-lo dos demais malfeitores. Neste vetor Gunther Jakobs:
Contudo, quando o criminoso não oferece qualquer garantia cognitiva de sua personalidade, o combate ao crime e o combate a ele passam a ser um só. Nesse caso, então, ele, com efeito, não é pessoa e sim fonte potencial de crime, inimigo. Assim é quando o criminoso, em sua conduta (nos crimes sexuais) ou em sua vida ativa (criminalidade econômica, criminalidade organizada, narcocriminalidade) ou mediante integração a uma organização (terrorismo, criminalidade organizada e narcocriminalidade novamente), tenha se envolvido de forma supostamente duradoura com o crime. (grifo nosso) (JAKOBS, 2009, p.90).
E aí se insere o fator mais preocupante dessa nova postura no Direito Penal Moderno, qual seja, passar de uma análise crítico-descritivo do “inimigo” a um modelo conceitual-legitimante e, portanto, operante no contexto da política criminal.
Seguindo, de tal maneira, a tendência apontada, e a tendência norteamericana da teoria lei e da ordem, amparada na doutrina do antigo prefeito nova iorquino Rudolph Giuliani, que após a catástrofe do dia 11 de setembro de 2001 deu azo a USA Patriot Act de 26 de outubro de 2001, tal decreto permite que o serviço de inteligência local intercepte ligações e e-mails de pessoas nacionais ou estrangeiras e organizações supostamente envolvidas com a prática terrorista, sem qualquer intervenção prévia ou posterior por parte do Poder Judiciário.
No direito pátrio, o modelo conceitual-legitimante do conceito de inimigo, de forma embrionária rendeu a lei 8072/90 que desde que foi promulgada só aumentou o número de crimes considerados hediondos (sem no entanto oferecer uma resposta satisfatória aos problemas ligados à violência) , veja-se a lei 11.705/2008 que tornou o código de trânsito num dos mais rigorosos do mundo, temos ainda a lei 11.343/2006 dando tratamento mais rigoroso ao tráfico ilícito de entorpecentes). Mais recentemente, por ocasião de eventos de importância mundial, foi editada a lei antiterrorismo, lei nº 13.260/16, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e processuais e reformulando o conceito de organização terrorista. Merece destaque o conceito de terrorismo estampado na lei e os atos qualificados de terrorismos, quais sejam:
Art. 2º O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.
§ 1o São atos de terrorismo:
I - usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa;
(...)
IV - sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento;
V - atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa:
É possível perceber, assim, que há justificação -e não a mera descrição- da inserção do Direito Penal do Inimigo no contexto do Direito Penal do Cidadão, de tal forma que, desde então, um pressupõe o outro, que o conceito de inimigo pressupõe o conceito de cidadão, como forma de oposição e violência à indivíduos que seriam, por
sua índole, excluídos da portabilidade de garantias fundamentais, tais quais o direito à vida, à integridade física, à liberdade, excluídos, portanto, da condição de pessoa frente ao Estado, em detrimento da segurança, daqueles, que segundo Jakobs, interagem com o ordenamento na forma de cidadãos.
A confusão – à bem do entendimento: a ausência de categorias distintivas entre o Direito Penal do Cidadão e o Direito Penal do Inimigo- geraria, segundo o entendimento jakobsiano, a impossibilidade de classificar dentre as projeções do Direito Penal moderno, qual seria a postura tomada mediante o cidadão delinqüente e o “inimigo”; se, se cria uma oposição a um comportamento antijurídico (pena ou medida de segurança), ou o ordenamento reage em combate àquela personalidade, a bem dizer da verdade, se se vale de táticas e defesas legítimos quiçá apenas no estado de beligerância. Não que o cidadão, em função do direito à segurança, não tenha que arcar com certas restrições legítimas as suas liberdades, contudo, o não sujeito de direito (o inimigo) tende a suportar maiores restrições do que sofreria um sujeito de direito, em razão do mesmo direito à segurança, não o direito a sua própria segurança evidentemente, mas à segurança das instituições de estabilidade social.
Destarte, ao sair da mera descrição à prescrição de um modelo, houve inversão valorativa, utilizou-se o fundamento mor do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana, para substanciar o tratamento diverso entre humanos de forma utilitária, buscando proteção de uns (proteção bélica, diga-se de passagem) em detrimento da personalidade de outros. Isso acompanhado a imprecisão do conceito de “inimigo” apresentado por Jakob- que em seu próprio vaticínio “é um tipo ideal” que não aparece em sua forma “pura” na sociedade-, torna-se artífice para opressão sobre determinados segmentos sociais marginalizados, tais quais os imigrantes, tais quais os presidiários, tais quais economicamente desfavorecidos, que buscam, mediante a negação do ordenamento posto pelos opressores, reivindicar o reconhecimento de sua existência.
Assim, enfrentar o complexo poder-saber (FOUCAULT, 1999) pautando-o no princípio da dignidade da pessoa humana. Buscando a compreensão das dimensões comunicativas entre Estado e homem, não as limitando ao alicerce cognitivo que o homem deve oferecer à sociedade (Estado como fim em si mesmo), mas, sobretudo
avaliar o alicerce que o Estado deve oferecer de sua personalidade jurídico-constitucional em razão do homem (Estado como meio).
1. 2. BEM JURÍDICO PENAL: CARACTERES NA TESE JAKOBSIANA
Eis o um dos pontos nevrálgicos do entendimento jakobsiano: o bem jurídico penal. Entende a doutrina majoritária encabeçada por Claus Roxin, que bens jurídicos penais são valores ético-sociais selecionados pelo ordenamento para tutelar, haja vista serem de basilar importância tanto para o indivíduo quanto para manutenção da ordem. Assim pontua o referido autor:
[...] podem-se definir os bens jurídicos como circunstancias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre que garanta a todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos. (ROXIN, 2009, p.18):
Contudo, segundo o ponto de vista jakobsiano, o que o Direito Penal, ao aplicar a sanção, se propõe a tutelar à validade da norma penal infringida, assim “A finalidade do Estado de Direito não é possibilitar a maior segurança possível de bens, mas a eficácia efetiva – mais precisamente, na moderna eficácia efetiva de um direito, a liberdade” (JAKOBS. 2009, p.56) , pois a validade real de um sistema orgânico não compreende apenas a sua perfeita observação, mas também em sua transgressão, em sede da imposição de uma pena de modo contrafático, contrapondo, portanto, o comportamento criminoso ao gerar um signo de seu crime obrigaria o sistema a gerar um signo completamente oposto, de tal sorte, que este se sobressairia aquele. Nessas linhas:
O que é realidade social não é algo que um indivíduo decida menos ainda um criminoso, mas a própria sociedade. Se ela designa o crime como crime e trata o criminoso como tal, ou seja, pune-o, isso prova a realidade da norma, sua validade social. Assim sendo, uma norma não é socialmente válida apenas quando é obedecida, mas também quando é sustentada contrafaticamente, pois, em ambos os casos, ela cumpre a função de oferecer a segurança das expectativas. (JAKOBS. 2009 p. 33)
Para melhor entendimento, reportar-se-á ao entendimento jakobsiano sobre o contrafático. Assim, em seus vaticínios, se um sistema para ser válido, coexiste mesmo diante da desobediência por parte de seus destinatários; o sistema deve, portanto, de modo contrafático oferecer uma base psicofísica de sua existência. Com maior clareza: Kelsen ao evidenciar o caráter dinâmico do Direito em sua teoria pura, condicionou a existência de uma ordem jurídica a sua perspectiva de oferecer coerção pautando-se nos pressupostos preexistentes que ligariam o normativo ao físico (dever-ser), concluindo que este fenômeno é fundamento da sanção. Destarte, quando uma norma estatal é ferida, corresponde dizer que aquele comportamento transgressor é incorreto; inobstante, quando uma simples norma de conduta é violada, corresponde dizer apenas se a própria norma é ou não correta.
Portanto, o ordenamento ao respeitar e ao considerar a personalidade do agente, considera que após a consumação do crime se possa opor a conduto através de uma pena, porém para aqueles aos quais se excluiu a personalidade a pena funciona senão como violência, possibilitando, inclusive, a quebra do principio da culpabilidade (Constituição Federal. art. 5º) viabilizando diligencias invasivas e agressivas aos direitos individuais (prisões preventivas, quebra do sigilo telefônico... etc.).
Assim sendo, enquanto para o cidadão criminoso, a pena funcionaria como oposição, para o inimigo a pena seria uma eliminação de um perigo em potencial, haja vista o mero vislumbre do risco, sem que haja de fato um crime.
Fica claro, diante do exposto, que é positivista o padrão utilizado para asseverar que o bem jurídico tutelado é a própria validade da norma penal, olvidado de seu caráter ético-social, pois não importaria qual valor da tutela sobre àquele bem, desde que exista uma norma positivada, e que por ser positivada mereça a qualquer custo emitir significado legível de sua validade. Mais preocupante ainda é o fato revés que tal pressuposto causa em relação àqueles aos quais que por não estarem presentes junto ao ordenamento, não possuem caráter comunicativo, pois de alguma forma foram excluídos de tal interação. O que resulta que para o “inimigo”, a pena surge como violência – Jakobs faz referência a determinados limites de tal violência, mas deixa claro que é uma violência. Assim nesse vetor Jakobs (2009, p. 22). “No Direito Penal do Cidadão, a função manifesta da pena é a oposição; no Direito Penal do Inimigo, a eliminação de um perigo. Na prática, é raro que um dos tipos ideais apareça em sua expressão pura. Ambos os tipos podem ser legítimos”.
Contudo, é válido adiantar que este projeto propugnará uma alteração neste prisma, afirmando que o bem jurídico tutelado é um bem da vida ético-social que encontra resguardo na própria Constituição, no próprio bojo do Estado Democrático de Direito, portanto, o bem jurídico tutelado é senão a validade da norma fundamental, e não a validade da norma penal em si.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Inimigo, aquele que habitualmente delinque (base filosófica kantiana) contra as bases da organização institucional do Estado (base filosófica hobbesiana), sai da reles descrição para tornar-se um conceito normativo dentro da teoria de Jakobs.
Tornando o tema de fundamental importância para discurso acadêmico, pois é preocupante a possibilidade de se ver amalgamado ao Direito Penal uma perspectiva de excepcionalidade do mesmo Direito Penal, sob o epíteto de Direito Penal do Inimigo.
Ou seja, um direito de exceção voltado àqueles que por sua personalidade são incapazes de manter-se sobre as normas de um determinado ordenamento, negando-o (Niklas Luhmann, 1983). Contudo devido vacuidade do conceito de inimigo empregado por Jakobs, abre-se margem à discriminação desenfreada por forças políticas sobre quem quer que queiram.
Sobretudo é preocupante a possibilidade de existir um Direito Penal do Cidadão como fundamento para um Direito Penal do Inimigo, até que não se possa discernir a exato limite entre os dois. Tornando-se o bem jurídico tutelado pelo Estado o validade da norma penal em si, bem como, o processo tornar-se-ia para o não sujeito de direito (inimigo) uma eliminação de perigo.
Inobstante, conforme este trabalho, apoiado na teoria do garantismo, a pena tem o fim teleológico de dar máxima eficácia aos valores normativos da Constituição Federal de 1988, que em seu corpo traz normas de conteúdo programático, dirigindo sua política a efetivação do direito e garantias fundamentais (constitucionalização do Direito Penal).
Bem como, para tal desiderato é imprescindível a verificação da cognoscitividade subjetiva para processo garantista (em homenagem ao princípio do devido processo penal) cada vez mais dinâmico; a cognoscitividade processual subjetiva tendente a aumentar o saber, e, por sua vez, diminuir o poder.
Destarte, em contraponto com o Direito Penal do Inimigo, insurge o garantismo atrelado ao Direito Penal Mínimo, dando maior observância aos imperativos constitucionais. Limitando ao máximo a atividade punitiva, pautando-a no princípio da fragmentariedade e subsuduariedade.
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Pós- graduado em Direito Civil e Processo Civil pela ESMAPE (Escola Superior da Magistratura de Pernambuco) e Graduado pela FDG - Faculdade de Direito de Garanhuns - Pernambuco, Funcionário Público (Analista do TJPE).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BATISTA, Kelvin Alves. Notas sobre o Direito Penal do Inimigo: o conceito de inimigo e bem jurídico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 fev 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49399/notas-sobre-o-direito-penal-do-inimigo-o-conceito-de-inimigo-e-bem-juridico. Acesso em: 22 nov 2024.
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