RESUMO: O presente artigo trata da demora excessiva do processo dentro do contexto da crise e reforma do Judiciário. Pretendendo apresentar contribuição para, senão resolver, ao menos minimizar os efeitos da morosidade judicial, investiga a possibilidade da aplicação da responsabilidade estatal pela demora na prestação jurisdicional. Conclui que se mostra viável a responsabilização do Estado em determinadas hipóteses pela demora excessiva do processo como mais um mecanismo útil à efetividade da justiça.
PALAVRAS-CHAVES: Morosidade, Reforma, Responsabilidade, Duração Razoável, Processo.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Crise do Judiciário: morosidade; 2.1. Tempo do processo; 2.2. Reforma do Judiciário. 3. Duração razoável do processo; 3.1. Previsão da garantia em convenções internacionais e consagração no novo Código de Processo Civil; 3.2. Significado da expressão razoável duração do processo. 4. Responsabilidade estatal pela morosidade processual; 4.1. Evolução da responsabilidade estatal; 4.2. Discussão acerca da responsabilidade pela demora na prestação jurisdicional. 5. Conclusão – 6. Referências.
1. Introdução
A morosidade da Justiça, conforme é sabido por todos os cidadãos, é ainda um problema a ser resolvido pelo ordenamento pátrio.
Com efeito, observa-se uma crise no Judiciário de credibilidade pela longa demora da marcha do processo, de maneira que se faz necessário se debruçar sobre tal problemática visando-se buscar soluções que tornem a justiça célere.
Nesse sentido, verificou-se na última década no ano de 2004 a apresentação de um conjunto de medidas pelos operadores do direito para tornar a justiça efetiva como simplificação da sistemática recursal, novas formas de solucionar conflitos e medidas reparadoras dos danos causados pela demora no processo.
Dentro do contexto apontado, passa-se a investigar acerca da possibilidade de se responsabilizar o Estado pela demora excessiva do processo.
A responsabilidade mencionada acima é analisada sob a perspectiva do dano ocasionado por conduta culposa da prestação de um serviço público imperfeito, já que moroso.
Dar-se destaque ao caráter de direito fundamental conferido à razoável duração do processo, bem como à sua evolução histórica e delimitação.
O artigo, além da introdução, conclusão, referências bibliográficas, apresenta três itens.
No item 2, trar-se-á à baila a crise do Judiciário sob a ótica da morosidade. Destacar-se-á a dimensão do tempo do processo e posteriormente a Reforma do Judiciário de 2004 que visou atacar a demora do processo, destacando ao final, neste contexto, a utilização da responsabilidade estatal.
O item 3 analisará a garantia constitucional da razoável duração do processo, demonstrando sua evolução, desde o seu surgimento na Europa até a atual previsão constitucional e infraconstitucional, bem como, ao final, discorrerá sobre a delimitação de seu conceito.
Por fim, o item 4 destacará a responsabilidade do Estado, perpassando pela evolução/modalidades, analisando, por fim, toda a discussão acerca da responsabilidade do Estado pela demora na prestação jurisdicional, realçando a culpa do serviço imperfeito prestado ao jurisdicionado.
2. Crise do Judiciário: morosidade
2.1. Tempo do Processo
Verifica-se nos dias atuais, na sociedade contemporânea, que o tempo possui para o homem um valor muito significativo, dentre outros motivos, pela própria finitude de sua vida e, ainda, em razão da concepção muito difundida de que tempo pode representar dinheiro.
Por outro lado, é sabido por todos, que o Judiciário brasileiro vivencia ainda uma crise, em virtude de não conseguir oferecer aos jurisdicionados um processo em que seus conflitos sejam resolvidos em um tempo plausível.
Destacando as medidas que têm sido tomadas pelos representantes dos Poderes para enfrentar a mencionada crise, Ricardo Quass Duarte destacou que:
Em 15 de dezembro de 2004, representantes dos três Poderes da República reuniram-se em sessão solene, para firmar um “Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais rápido e republicano”. Nesse Pacto, ressaltou-se que “a morosidade dos processos judiciais e a baixa eficácia de suas decisões retardam o desenvolvimento nacional, desestimulam investimentos, propiciam a inadimplência, geram impunidade e solapam a crença dos cidadãos no regime democrático. (DUARTE, 2009, p. 16).
Ainda neste contexto, observa-se com preocupação a problemática da morosidade da prestação jurisdicional, já que um processo que se desenvolve com demora excessiva gera dano às partes, trazendo a insatisfação dos cidadãos e dos próprios operadores do direito, que se sentem impotentes para resolver problema de tamanha complexidade, que muitas vezes desencadeia inclusive, greve de servidores no âmbito da Justiça. Nesse sentido, pondera a renomada jurista Ada Pellegrini Grinover (1996) apud Duarte (2009, p. 42): “A justiça é inacessível, cara, complicada, lenta, inadequada. A justiça é denegação de justiça. A justiça é injusta. Não existe justiça”.
Um processo que se estende por um lapso de tempo além do normal, do razoável provoca efeitos nefastos para pelo menos uma das partes. Nesse sentido, alerta Duarte (2009, p. 41) que o processo “deve conter meios para neutralizar os efeitos do tempo inimigo.”
Discorrendo sobre a problemática do tempo no processo, o mesmo jurista leciona que:
O tempo realmente figura como um dos poderosos inimigos no processo civil, na medida em que, quando a demanda leva muito tempo para terminar, direitos são perecidos, acordos desfavoráveis são realizados, transações comerciais deixam de ser concretizadas, as angústias e frustrações das partes aumentam, assim como aumenta o descrédito da população na Justiça. (DUARTE, 2009, p.15).
Nada obstante as ideias desenvolvidas até então, não se pode fugir do fato que o processo, sendo um complexo encadeamento de atos em busca da solução do litígio, o mesmo requer tempo para se desenvolver. Isto porque, necessário se faz que o processo se desenrole observando as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, que integram o devido processo legal.
Nesse sentido, às partes deve ser conferida ampla oportunidade de participação e de produção das provas necessárias à demonstração dos fatos por elas alegados.
Assim, imaginando-se um processo que tramite sob o rito ordinário, observa-se a necessidade de tempo para a defesa do réu; para o autor manifestar-se sobre os fatos alegados pelo réu, para ocorrência da audiência preliminar e de instrução e julgamento; para o juiz poder sanear o processo; para a produção das provas requeridas, tal qual uma prova pericial; para apresentação de alegações finais e para a prolação da sentença, da qual ficará ainda sujeita a recursos antes do seu trânsito em julgado. Todos esses tempos, somados são necessários ao processo e varia em função de inúmeros fatores.
Com efeito, uma demanda que discuta matéria unicamente de direito, não necessita de um tempo muito extenso. Entretanto, uma demanda que objetive uma reparação por danos ambientais exige um tempo de amadurecimento processual bem maior, pois haverá necessidade de produção de prova pericial multidisciplinar, a fim de revelar as causas dos danos, as espécies de vegetação afetadas, a quantificação do prejuízo e as medidas reparadoras que poderão ser adotadas.
Ademais, resta evidente que demandas individuais, com apenas um réu durará menos tempo em comparação com uma demanda que conte com dezenas de pessoas em ambos os polos. (DUARTE, 2009, p. 38).
O transcurso do tempo também pode ser benéfico para justiça. Tal concepção é bem destacada, novamente, por Ricardo Quass Duarte:
O tempo também atua como amigo, na exata medida em que contribui para formar o convencimento do órgão judicial acerca da decisão mais acertada para a lide, assim como quando acalma o ânimo das partes, favorecendo que alcancem uma composição que lhes seja mais favorável. (DUARTE, 2009, p. 46).
Esse problema do tempo gasto com a marcha processual, bem como a necessidade de se ter um processo célere foi bem pontuado pelo jurista Carlos Henrique Ramos a seguir:
É preciso ressaltar que, se, de um lado, a demora dos feitos há algo a ser combatido, por outro, representa uma conseqüência advinda de um regime processual que busca assegurar um patamar mínimo de inviolabilidade às garantias processuais. Há que se distinguir a demora natural, fisiológica, advinda do tempo normal para prática dos atos processuais (dilação razoável), daquela injustificada, patológica, seja por falhas na organização judiciária, seja por comportamentos abusivos e indesejados das partes, dos advogados ou dos agentes judiciários. (RAMOS, 2008, p. 52).
Arrematando tal questão, pontua Ricardo Quass Duarte que:
O fato de uma demanda demasiadamente lenta ser extremamente indesejável ao sistema não significa que uma demanda que termine rapidamente represente um ideal a ser alcançado. Já se afirmou com propriedade que “celeridade não pode se confundida com precipitação. Segurança não pode ser confundida com eternização”. Daí a necessidade de ser encontrado um equilíbrio entre os valores celeridade e segurança. O ideal é que o processo tenha duração razoável, tramitando por um tempo justo, o que é bem diferente de preconizar que ele tramite celeremente. (DUARTE, 2009, p. 20).
2.2. Reforma do Judiciário
Há no bojo do Judiciário um consenso acerca da necessidade de realização de uma reforma judiciária capaz de resolver o problema da excessiva demora do processo. Nesse sentido, pode-se afirmar que tal movimento iniciou sua concretude a partir da edição da Emenda Constitucional n.º 45/2004, chamada de Reforma do Judiciário. (MACHADO; MACHADO, 2006, p. 59).
Entretanto, é importante destacar que a Reforma do Judiciário é o ponto culminante de um movimento reformista que já vinha se desenvolvendo pelos últimos anos. Nesse sentido, ressalta Danielle Annoni que:
Todavia, as mudanças trazidas pelas reformas não são novas.(...) A Reforma do Judiciário, como ficou conhecida a Emenda Constitucional 45, de 2004, elevou a discussão das reformas processuais ao status constitucional, encerrando, no Brasil, mais de uma década de busca por mecanismos que garantam a celeridade processual, sem, contudo, macular a já tão fragilizada segurança jurídica.(ANNONI, 2009, p. 138).
Corroborando tal pensamento, traz-se à baila, por oportuno, a lição de José Luis Bolzan de Moraes:
A contrapartida que se apresenta nestes tempos de crise – dos sistemas judiciários de regulação de conflitos – entre outras, pode ser percebida pelo crescimento em importância dos instrumentos consensuais e extra-judiciários. (MORAES, 2005, p. 7)
Na verdade, o que se percebe é que o método tradicional de solução de controvérsias, o da jurisdição estatal, vem sendo revisitado. Neste método, é atribuída a um terceiro a incumbência de apresentar a solução dos conflitos. Uma primeira abertura se dá com a arbitragem, na qual um árbitro ou Tribunal arbitral escolhido pelas partes é quem decide a lide.
Por outro lado, há um desenvolvimento estimulado dos métodos consensuais de resolução de conflitos. Em tais métodos, a solução exsurge do compromisso das partes com a solução que elas mesmas elaboraram.
Explicitando a matéria, José Luis Bolzan de Moraes, assim discorre:
Ou seja: nesse caso, a solução do conflito provém não de uma intermediação externa pela autoridade do Estado-Juiz ou do árbitro que dita a sentença, mas de uma confrontação explícita de pretensões, interesses, dúvidas, perplexidades, etc..., que permita às partes, nesse processo de troca, ascender a uma solução consensuada, apenas mediada pela figura de um terceiro, cujo papel é o de facilitar os intercâmbios e não o de ditar a resposta (sentença), que vem previamente definida no texto legislado pelo Estado, de cuja aplicação está encarregado o Poder Judiciário, no caso da jurisdição, ou que é definida pelo árbitro a partir das opções originárias dos envolvidos, no caso da arbitragem. (MORAES, 2005, p. 12).
Como espécies desse método de solução de conflitos, pode-se citar a mediação e a conciliação, cujas características são bem descritas pelo mesmo autor supra mencionado:
Compõem o conjunto desse método a mediação e a conciliação. A conciliação se apresenta como tentativa de chegar voluntariamente a um acordo neutro, na qual pode atuar um terceiro que intervém entre as partes de forma oficiosa e desestruturada, para dirigir a discussão sem ter papel ativo. Já a mediação se apresenta como um procedimento em que não há adversários, onde um terceiro neutro ajuda as partes a negociar para chegar a um resultado mutuamente aceitável, a partir de esforço estruturado que visa facilitar a comunicação entre os envolvidos. (MORAES, 2005, p. 12).
Como exposto, percebe-se o movimento dos operadores do Direito no sentido da busca pela instrumentalidade e efetividade do processo, retirando a exclusividade da jurisdição como método de dizer o direito.
Nesse sentido, dispõe Danielle Annoni:
Ainda assim, pela disposição constitucional, seu espírito e intenção, é possível afirmar que novos meios de resolução de conflitos foram legitimados pelo princípio fundamental da celeridade processual, bastando, tão-somente, ao legislador dar-lhes vida e instrumentos eficazes à resolução dos conflitos sociais, dentre os quais a mediação e a arbitragem exercem papel de destaque. (ANNONI, 2009, p.147-148).
Fazendo uma análise do conteúdo da Reforma do Judiciário, pode-se afirmar que sua contribuição mais significativa foi sem dúvida a positivação do direito à duração razoável do processo ou direito de acesso à justiça em um prazo razoável, previsto no art. 5.º, inc. LXXVIII da CF/88, in verbis: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”
É o que bem observa Danielle Annoni:
Todavia, apesar das críticas à reforma do Poder Judiciário, no que se refere a este estudo, as disposições trazidas na introdução expressa do direito à duração razoável do processo, no art. 5.º, inc. LXXVIII, merecem destaque por ter elevado esse direito, já reconhecido por norma infra-constitucional (Decreto 678/92), ao status constitucional de garantia fundamental, protegido por cláusula pétrea. (ANNONI, 2009, p. 144).
3. Duração razoável do processo
3.1. Previsão da Garantia em Convenções Internacionais e Consagração no Novo Código de Processo Civil
Pode-se dizer que o surgimento do direito à tutela jurisdicional em tempo razoável ocorreu com a Convenção Europeia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, a qual fora firmada em Roma, no ano de 1950. No bojo deste diploma, consta o art. 6.º, § 1.º, que dispõe que:
Qualquer pessoa tem direito a que sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a proteção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.
Posteriormente, a defesa dos direitos humanos foi se difundindo com mais vigor por todo o mundo, havendo a criação de sistemas regionais de proteção internacional dos direitos humanos reunindo Estados soberanos.
Neste contexto foi criado o Sistema Interamericano de Direitos Humanos que abarca os Estados da América, incluindo, assim, o Brasil. Tal sistema é composto por tratados que visam à promoção da dignidade da pessoa humana, e ainda pela presença de uma Corte, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada em San José, capital da Costa Rica, havendo na mesma, periodicamente, a cada ano, reuniões para analisar as denúncias de violações dos direitos humanos. (PORTELA, 2010, p. 693-694).
O principal tratado do Sistema Interamericano de Direitos Humanos é a Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica, por ter sido celebrado em San José, capital da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. Este documento legal preceitua expressamente em seu art. 8.º, “a” que:
Toda pessoa tem direito de ser ouvida com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, instituído por lei anterior, na defesa de qualquer acusação penal contra ele formulada, ou para determinação de seus direitos e obrigações de ordem civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
Oportuno fixar que a mencionada convenção foi ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, ingressando no ordenamento brasileiro após a promulgação do Decreto n.º 678 em 06 de novembro de 1992 e posterior publicação em 09 de novembro do mesmo ano.
Isto posto, em face do que preceitua a CF/88 em seu art. 5.º, § 2.º, in verbis: “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, é imperioso afirmar que a partir do Decreto 678/92, o direito fundamental da razoável duração do processo já estaria incorporado ao ordenamento pátrio.
Partindo desta premissa, outra conclusão que se chega é que a legislação brasileira, por meio do art. 5.º, LXXVIII da CF/88, inserido pela EC 45/04, apenas expressamente veio a declarar o direito à prestação jurisdicional dentro de um prazo razoável.
Discorrendo com propriedade acerca da ideia acima desenvolvida, ensina Araken de Assis:
Não se pode emprestar à explicitação do princípio da duração razoável do processo o caráter de novidade surpreendente e, muito menos, de mudança radical nos propósitos da tutela jurídica prestada pelo Estado brasileiro. Estudo do mais alto merecimento já defendera, baseado em argumentos persuasivos, a integração ao ordenamento brasileiro do direito à prestação jurisdicional tempestiva, através da incorporação do Pacto de São José da Costa Rica ou Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Em síntese, o art. 8.º, 1, do Pacto, prevendo tal direito, agregou-se ao rol dos direitos fundamentais, a teor do art. 5.º, § 2.º, da CF/88. De acordo com tal regra, o catálogo formal não excluiria outros direitos fundamentais decorrentes de tratados internacionais. À luz desse raciocínio, a EC 45/04 limitou-se a declarar um princípio implícito na Constituição. Ainda mais convincente se revelava a firme tendência de localizar na cláusula do devido processo (art. 5.º, da CF/88) a garantia de um processo justo, inseparável da prestação da tutela jurisdicional no menor prazo possível nas circunstâncias (ASSIS, 2007, p. 41-42).
Seguindo a tendência internacional e constitucional da tutela jurisdicional em tempo razoável, o Novo Código de Processo Civil de 2015 também prevê expressamente o princípio da duração razoável do processo.
Nesse sentido, observa-se que em duas oportunidades o novo diploma processual menciona a ideia de que o processo tem que se encerrar em prazo razoável. Primeiramente, dentre as normas fundamentais (art. 4.º) e, em seguida, no art. 139, II, quando aborda os deveres do juiz.
3.2. Significado da Expressão Razoável Duração do Processo
Conforme demonstrado, a partir da Emenda Constitucional n. 45/20004, a CF/88 passou a incluir no rol de direitos e garantias fundamentais a previsão de que a todos “são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (art. 5.º, LXXVIII).
A partir da leitura desse dispositivo pode-se afastar uma primeira eventual interpretação equivocada, a de que esse dispositivo impõe que para o processo ter uma duração razoável, ele tem que ser célere.
Na verdade, a interpretação mais correta é aquela que impõe a celeridade apenas para atingir a duração razoável do processo. Tal linha de pensamento é bem exposta por Ricardo Quass Duarte:
Nesse diapasão, não se pode confundir celeridade com razoabilidade do tempo de tramitação do processo. Célere é sinônimo de ligeiro, veloz, acelerado; razoável significa não excessivo, moderado, suficiente. É evidente que esses adjetivos não se equivalem. Em verdade, é possível até notar certa contradição entre eles, pois dizer que o processo tramitou celeremente significa que percorreu os caminhos necessários de forma extremamente rápida, ao passo que afirmar que o processo foi concluído em prazo razoável traz a idéia de moderação e adequação do intervalo de tempo utilizado. (DUARTE, 2009, p. 56).
Voltando-se à perquirição do significado da expressão razoável duração do processo é que se percebe na doutrina, propostas de fixação de prazos determinados para que os processos sejam concluídos.
Entretanto, tais propostas merecem críticas, em face da imprevisível gama de situações que podem ser diferentes entre os processos, ainda que estes possuam pedidos idênticos e sejam regidos pelo mesmo procedimento.
Nesse sentido, oportuno se trazer à baila a crítica acertada trazida por Ricardo Quass Duarte:
Ademais, ainda que possuam objetos idênticos e sigam o mesmo procedimento, dois processos não tramitam de forma homogênea, podendo tomar rumos bastante diferentes e, consequentemente, ser decididos em tempos distintos, sem que isso represente afronta à garantia de tempestividade da tutela jurisdicional. Há uma imensa gama de situações processuais legítimas que podem afetar profundamente o trâmite de um processo e, consequentemente, o seu tempo de duração, como um pedido de tutela antecipada, a intervenção de um terceiro, o ajuizamento de uma ação declaratória incidental, a realização de inspeção judicial, a expedição de uma carta rogatória, etc. (DUARTE, 2009, p. 53-54).
Sendo assim, refuta-se a ideia de que a duração razoável do processo seja medida através do somatório de prazos fixados na legislação para produção de atos processuais. Tal tese não se sustenta, a uma por serem inúmeros e complexos os fatores que envolvem os processos e não apenas os prazos.
Portanto, a conclusão que se chega é que não há como se fixar, a priori, lapsos temporais para encerramento dos feitos para caracterizar, com o seu descumprimento, violação à garantia da razoável duração do processo.
Com efeito, o que se afigura mais plausível é que a verificação se o processo tramitou em prazo razoável se dê em cada caso concreto.
Este pensamento se coaduna com a doutrina de Carlos Henrique Ramos que assim dispõe:
(...) muitas são as críticas à doutrina do não-prazo. Mas o fato é que não deve ser fixado, em abstrato, um prazo máximo a ser obedecido em todos os processos. A multiplicidade de procedimentos e a diversidade de pretensões inviabilizariam qualquer tentativa nesse sentido. Assim como no direito moderno muito se pugna pela criação de procedimentos flexíveis e adaptáveis às necessidades do direito material, a garantia da duração razoável impõe que sua análise seja balizada nas peculiaridades do caso concreto. (RAMOS, 2008, p. 90).
É forçoso lembrar que esta tese é corroborada pelas manifestações do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, conforme destaca Ricardo Quass Duarte:
Como já salientado, a aferição sobre a ocorrência ou não de violação à garantia de temporalidade razoável do processo deve ser feita concretamente, à luz das especificidades de cada caso. Nesse sentido manifesta-se reiteradamente a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (...) (DUARTE, 2009, p. 52).
Lastreado, portanto, nas premissas fixadas até então no presente artigo, pode-se dizer que a razoável duração do processo é variável, porém, é possível observar-se de plano que dentro deste conceito se inclui a ideia de um tempo adequado para a discussão do direito das partes, observado o devido processo legal.
Ocorre que, fica claro que falar apenas em tempo adequado, ainda que se leve em conta as considerações feitas, não resolve o problema da subjetividade que acompanha a expressão razoável duração do processo.
Carece, portanto, os operadores do direito de uma maior concretude para a expressão, de modo que se possa avaliar com mais facilidade se houve ou não, em determinado processo, violação à garantia da duração razoável do processo.
Visando solucionar tal problema, é de grande importância salientar que a Corte Europeia dos Direitos do Homem, num esforço pedagógico de estabelecer balizas para fixar o prazo razoável de tramitação de cada processo, ensina que tal razoabilidade deve ser aferida através de três critérios objetivos, quais sejam: a complexidade da causa, o comportamento das partes e o modo como as autoridades dirigiram o processo. Esta afirmação pode ser confirmada através da doutrina de Danielle Annoni:
Assim, dada a complexidade em se fixar uma regra específica, determinante das violações ao direito à tutela jurisdicional dentro de prazo razoável, a Corte Européia dos Direitos do Homem firmou entendimento de que, respeitadas as circunstâncias de cada caso, devem ser observados três critérios para se determinar a duração razoável do processo, quais sejam: a) a complexidade do assunto; b) o comportamento dos litigantes e de seus procuradores ou da acusação e da defesa do processo; c) a atuação do órgão jurisdicional. (ANNONI, 2009, p. 125).
Avaliando a referida proposta da Corte Europeia, entende-se ser medida salutar a fixação desses critérios balizadores. A uma, porque diminui a possibilidade de decisões judiciais arbitrárias e casuísticas. E a duas, porque não foge à realidade complexa imposta pela variedade de situações e procedimentos existentes.
Por outro lado, observa-se que pelo fato da referida garantia da duração razoável do processo ter sido positivada pela primeira vez na Convenção Europeia sobre Direitos Humanos, deve-se tomar a experiência das decisões da Corte Europeia como a fonte mais rica sobre o tema, devendo a mesma servir como parâmetro para o Brasil.
Pela riqueza que envolve o tema, necessário se faz a avaliação de cada critério acima citado de per si.
O primeiro critério a ser discutido é o da complexidade da causa. A análise da complexidade da causa envolve variados fatores que se pode apontar, tais quais o número de pessoas envolvidas no litígio; tipo de processo; quantidade de pedidos; especialidade ou não dos procedimentos, bem como a natureza do direito envolvido.
Quanto ao número de pessoas envolvidas, não é difícil perceber que processos em que haja um maior número de litigantes haverá maior complexidade, pois a todos eles será conferido o direito à ampla defesa, que resultará na necessidade de lapso temporal mais dilatado para que todos possam produzir suas eventuais provas.
Por outro lado, há uma necessidade de tempo maior para o juiz julgar a lide, em virtude do número maior de questões de direito envolvidas no litígio.
No tocante aos tipos de processos, uma primeira conclusão que se pode chegar é que, em regra, um processo de conhecimento terá maior complexidade do que os processos de execução e cautelar.
Isto decorrerá da sua própria natureza, vez que seu escopo é de formação do convencimento do magistrado acerca do direito das partes, enquanto que o processo cautelar visa apenas assegurar a efetivação do direito e o processo de execução, a própria efetivação.
Da mesma forma, pode-se dizer que é simples concluir que processos com maior número de pedidos e de questões prejudiciais para serem analisados são mais complexos.
De outra banda, verifica-se, outrossim, de plano, que determinados procedimentos especiais são mais céleres que o procedimento ordinário, sendo, portanto, mais curtos e considerados menos complexos em virtude da redução do número de atos a serem produzidos pelas partes até a prolação da sentença.
Não se pode esquecer que a complexidade da causa pode ser relacionada à importância que alguns direitos possuem no nosso ordenamento, tais quais processos que tratem do direito à saúde, à liberdade, ou relacionados aos idosos.
Nesse sentido, é que quando há um pedido de medicamento, habeas corpus, ou algum processo que envolve idoso, pelo seu tempo reduzido de vida que lhe resta, o ordenamento pátrio prioriza tais ritos abreviando o tempo normal do processo.
Partindo agora para análise do segundo critério, aquele referente ao comportamento das partes, é importante fixar que a questão principal a ser perseguida é investigar se alguma das partes e procuradores envolvidos no processo contribuíram para uma dilatação desnecessária do processo.
Será verificado se algum dos litigantes agiu de má-fé, faltou com seus deveres processuais, tal qual o da lealdade processual; se houve alguma atuação procrastinatória, destituída de fundamento; se criou embaraços ao cumprimento de provimentos judiciais. Em suma, pode-se dizer que um bom guia para analisar o comportamento das partes é observar o cumprimento dos deveres processuais dos envolvidos no processo, previsto no art. 77 do NCPC.
Por fim, resta a análise do terceiro critério, referente à atuação do órgão jurisdicional. Aqui se destaca a atuação do juiz no tocante à correta condução do processo. É necessário que se verifique se houve alguma intenção do magistrado em retardar o processo, movido por algum interesse particular injustificável.
Importante destacar, por oportuno, acerca dos critérios balizadores do direito à razoável duração do processo, a lição de Carlos Henrique Ramos, a seguir:
A partir de um esforço compilativo, os critérios desenvolvidos pela Corte Européia de Direitos Humanos podem ser sintetizados a partir de algumas assertivas fundamentais. Nesse sentido, a garantia do prazo razoável restará violada caso: a) em uma causa considerada não-complexa, a controvérsia não seja solucionada tempestivamente ou, em se tratando de um feito que verse sobre questões complexas, os juízes não empreendam esforços para o seu adequado enfrentamento; b) os postulados éticos de demandar e ser demandado, além dos deveres típicos de colaboração, não sejam obedecidos; c) os deveres dos juízes e dos auxiliares da justiça, mais precisamente aqueles relacionados com a correta condução do processo e com o cumprimento dos prazos, não sejam corretamente obedecidos; d) o Estado, como um todo, não adote providências estruturais para melhor aparelhar o sistema judiciário. (RAMOS, 2008, p. 100-101).
Como consequência da violação da garantia da duração razoável do processo, os sistemas de proteção dos direitos humanos, através de suas Cortes, sancionam os Estados a indenizarem os prejudicados com a demora excessiva. Tal realidade é confirmada por Danielle Annoni, conforme se observa nas linhas abaixo:
No caso da Corte Européia dos Direitos do Homem, a sanção pela violação do dispositivo que garante o direito à prestação jurisdicional num prazo razoável, foi a condenação dos Estados lesantes a indenizarem os prejudicados pela demora excessiva no julgamento de suas demandas. (ANNONI, 2009, p. 126).
No mesmo sentido, Marco Félix Jobim relata caso em curso no Judiciário do Estado do Ceará e submetido à Corte Interamericana em que houve condenação em cento e trinta e cinco mil dólares às vítimas pela demora injustificada do processo, nos termos que abaixo se segue:
Na hipótese, a Corte Interamericana considerou o atraso por mais de seis anos do processo penal e do processo civil de reparação de dano moral, ambos em curso no Judiciário do Estado do Ceará, sem que até a data da sentença da Corte tivesse havido conclusão no juízo de primeiro grau com sentença prolatada, tudo em decorrência de demoras injustificáveis por culpa do aparelho judiciário. Além de ter recebido outras sanções imateriais, o Estado brasileiro foi condenado a indenizar os pais e irmãos da vítima em mais de cento e trinta e cinco mil dólares americanos, a serem entregues diretamente aos beneficiários. (JOBIM, 2011, p. 92).
Por tudo que foi dito, notadamente por se alinhar com a jurisprudência internacional de proteção aos direitos fundamentais e com a recente inclusão pela EC 45/04, entre o rol de direitos e garantias fundamentais, da duração razoável do processo, torna-se plenamente legítima a defesa da tese que o Judiciário brasileiro, ou seja, o Estado brasileiro, pode por determinadas condutas ou ausência delas, ser responsabilizado pela demora da prestação jurisdicional por violação a direito fundamental, expressamente assegurado na CF/88, através do art. 5.º, inciso LXXVIII e consagrado igualmente no art. 4.º do NCPC.
4. Responsabilidade estatal pela morosidade processual
4.1. Evolução da Responsabilidade Estatal
Diante da conclusão acima exposta da possibilidade da responsabilidade estatal pela demora na prestação jurisdicional, faz-se oportuno a análise do instituto da responsabilidade estatal sob o aspecto de sua evolução, visando trazer para o presente trabalho subsídios a partir dos traços distintivos das modalidades de responsabilidade estatal, para o correto enquadramento da conduta lesiva realizada pelo Estado.
Posto isto, inicialmente, é imperioso salientar que a ideia de responsabilidade está relacionada à ideia de resposta. Nesse sentido é que o ordenamento impõe àquele que provoca um dano a outrem, o dever de responder por esta conduta danosa perante o mesmo e a esta concepção se dá o nome de Responsabilidade Civil.
Para análise do tema da responsabilidade civil estatal é necessário distinguir suas duas modalidades, quais sejam, a da responsabilidade contratual e extracontratual.
A responsabilidade contratual está relacionada às obrigações oriundas dos contratos em que a Administração figura como parte, e a extracontratual é a decorrente das demais atividades estatais.
Para o presente trabalho, a modalidade de responsabilidade que interessa se cogitar é a responsabilidade extracontratual, a qual está bem definida por Celso Antônio Bandeira de Mello, assim:
Entende-se por responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado a obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos. (MELLO, 2010, p. 993).
Delimitada a modalidade de responsabilidade estatal a que se quer dar destaque, passa-se a analisar propriamente a evolução da responsabilidade estatal.
Observa-se primeiramente que alguns doutrinadores, notadamente Di Pietro, dividem a evolução mencionada em três fases marcantes: fase da teoria da irresponsabilidade, fase da teoria civilística e fase da teoria publicística. (DI PIETRO, 2010, p. 643).
Antes de começar a discorrer acerca de cada uma delas é importante trazer à baila a tese que a ideia de responsabilidade do Estado decorre do surgimento do Estado de Direito. Tal pensamento é cristalino nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, adiante transcritas:
Segundo entendemos, a idéia de responsabilidade do Estado é uma conseqüência lógica inevitável da noção do Estado de Direito. A trabalhar-se com categorias puramente racionais, dedutivas, a responsabilidade estatal é simples corolário da submissão do Poder Público ao Direito. Deveras, a partir do instante em que se reconheceu que todas as pessoas, sejam elas de Direito Privado, sejam de Direito Público, encontram-se, por igual, assujeitadas à ordenação jurídica, ter-se-ia que aceitar, à bem da coerência lógica, o dever de umas e outras – sem distinção – responderem pelos comportamentos violadores do direito alheio em que incorressem. (MELLO, 2010, p. 999).
Tal qual no âmbito privado, verifica-se que no âmbito da Administração Pública, a evolução da responsabilidade civil partiu da responsabilidade aquiliana ou culposa, comumente chamada de responsabilidade subjetiva, à responsabilidade objetiva, atualmente prevista no art. 37, § 6.º da CF/88, conforme se demonstrará adiante.
O Estado atualmente também pode ser responsabilizado por condutas danosas, porém nem sempre foi assim. Observando a evolução da responsabilidade estatal, verifica-se num primeiro momento a aplicação da teoria da irresponsabilidade estatal, com posterior evolução para teoria dos atos de impérios e de gestão e em seguida para a teoria da culpa civil ou responsabilidade subjetiva. Posteriormente, apresenta-se a teoria da culpa administrativa ou da culpa do serviço público e por fim, a teoria do risco administrativo e risco integral, as quais serão melhores explicitadas a seguir.
Pode-se dizer primeiramente com relação à fase da irresponsabilidade, que esta prevaleceu até a primeira metade do século XIX e tinha um cunho essencialmente absolutista. Outro ponto a se destacar é o fato que a irresponsabilidade do Estado era considerada corolário de soberania e do absolutismo dos monarcas que concentravam todos os poderes. Tal fase decorria do contexto político que se vivenciava na época, conforme salienta com propriedade José dos Santos Carvalho Filho:
Na metade do século XIX, a idéia que prevaleceu no mundo ocidental era a de que o Estado não tinha qualquer responsabilidade pelos atos praticados por seus agentes. A solução era muito rigorosa para com os particulares em geral, mas obedecia às reais condições políticas da época. O denominado Estado Liberal tinha limitada atuação, raramente intervindo nas relações entre particulares, de modo que a doutrina de sua irresponsabilidade constituía mero corolário da figuração política de afastamento e da equivocada isenção que o Poder Público assumia àquela época. (CARVALHO FILHO, 2009, p. 522).
A doutrina de Danielle Annoni é precisa a respeito desta fase, quando diz que:
(...) a teoria da irresponsabilidade absoluta do Estado pautava-se, fundamentalmente, em dois postulados: 1) a soberania do Estado, que proibia a relação de igualdade entre o soberano e o súdito, seu representado; 2) a representação do Direito como ordenamento posto pelo próprio Estado, o que inviabilizava que o soberano violasse o Direito que ele mesmo instituiu. Como corolário desses postulados, os atos contrários à lei praticados por funcionários do Estado não poderiam ser atribuídos a este, já que não poderia o Estado agir contra o Direito. A responsabilidade deveria ser atribuída pessoalmente àqueles. (ANNONI, 2009, p. 60-61).
Conforme se depreende da lição acima exposta, dentro da concepção política do Estado absoluto torna-se inviável a reparação dos danos causados pelo poder público, bem como não se admitia a constituição de direitos contra o Estado soberano, o que implica dizer que o mesmo possuía imunidade total em face de seus súditos.
Mais uma vez, faz-se oportuno trazer à baila a lição de Danielle Annoni sobre esta fase da irresponsabilidade estatal:
Resguardava-se o Estado regalista, protegido pelo princípio da não contradição: o Estado, órgão gerador do Direito, a quem cabe a tutela jurídica, não poderia, ao exercê-lo, atentar contra a própria ordem que instituiu, haja vista que, “sendo ele próprio o Direito, jamais praticaria injustiças”. (ANNONI, 2009, p. 61).
Esta concepção de Estado infalível é bem lembrada, outrossim, por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que dispõe que:
(...) o Estado dispõe de autoridade incontestável perante o súdito; ele exerce a tutela do direito, não podendo, por isso agir contra ele; daí os princípios de que o rei não pode errar (the king cannot do wrong; le roi ne peut mal faire) e de “aquilo que agrada ao príncipe tem força de lei (quod principi placuit habet legis vigorem). (DI PIETRO, 2010, p. 644).
Essa teoria, porém, não resistiu ao Estado Democrático de Direito, conforme dito acima nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello. Isto porque, a teoria da irresponsabilidade era deveras injusta, uma vez que a irresponsabilidade do Estado era a negação dos princípios da justiça e da igualdade, os quais são postulados basilares da Revolução Francesa.
Inaugura-se então a fase das teorias civilistas, na qual, pode-se afirmar que a responsabilidade do Estado seguia a principiologia do Direito Civil, embasada na ideia de culpa.
Neste sentido, num primeiro momento passou-se a admitir alguns casos de responsabilidade, porém, em outros não se admitia. Com efeito, distinguiam-se, nesta fase, para fins de responsabilidade, os atos do Estado praticados no exercício do poder de império (ius imperii) e os atos do poder de gestão (ius gestionis).
Nos primeiros, atos de império, o Estado estaria agindo no exercício de sua soberania, com todas as prerrogativas, impostos ao particular coercitivamente, sem haver necessidade, portanto, da autorização judicial para prática dos mesmos. Esta característica destes atos faz com que mesmo quando danosos aos particulares, estes não gerem direito à reparação.
Já nos atos de gestão, a Administração pratica-os em situação de igualdade com o particular, equiparando-se a este. Em decorrência destas posições em mesmo plano da Administração (ou soberano) e do administrado (ou súdito), poderia haver responsabilização.
Discorrendo sobre a referida distinção traz-se à baila o magistério de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
Essa distinção foi idealizada como meio de abrandar a teoria da irresponsabilidade do monarca por prejuízos causados a terceiros. Passou-se a admitir a responsabilidade civil quando decorrente de atos de gestão e a afastá-la nos prejuízos resultantes de atos de império. Distinguia-se a pessoa do Rei (insuscetível de errar – the king can do no wrong), que praticaria os atos de império, da pessoa do Estado, que praticaria atos de gestão, através de seus prepostos. (DI PIETRO, 2010, p. 645).
Esta divisão em atos de império e atos de gestão, apesar do inegável avanço que representou em comparação com a antiga teoria da irresponsabilidade, recebeu muitas críticas, pois não era suficiente para resolver todos os problemas que surgiam nas relações com a Administração.
Na verdade, não se fazia muito simples a distinção entre um e outro ato, o que acabou por deslocar a responsabilidade para ideia de culpa. Esta teoria responsabilizava o Estado, quando por ato ilícito praticado por seus agentes, viesse a cometer alguma lesão contra um particular.
É importante, assim, destacar que o abandono da tese que separava os atos de Estado em atos de império e de gestão, para efeito de responsabilização, não significou a superação da fase das teorias civilísticas, uma vez que se continuava a se utilizar da doutrina do Direito Civil para explicar a responsabilidade, havendo algum dano.
Surgiu, pois, a teoria da culpa civil, onde se buscava individualizar a culpa pela conduta através dos agentes estatais. Conforme destaca Di Pietro (2010, p. 645): “Procurava-se equiparar a responsabilidade do Estado à do patrão, ou comitente, pelos atos dos empregados ou prepostos.”
Para Danielle Annoni, a teoria da culpa civil impunha a responsabilização estatal quando se demonstrasse culpa in eligendo ou culpa in vigilando, colhendo-se por oportuno sua lição acerca dessas modalidades:
A culpa in eligendo era atribuída ao Estado quando da escolha de seus funcionários. O dano causado por um ato ilícito conferia ao Estado o dever de indenizar o prejudicado, haja vista que era responsável pela escolha de seus funcionários. A culpa in vigilando, por sua vez, resultava da conduta negligente ou imprudente dos agentes públicos, quando no exercício de suas atribuições, que fazia o Estado responder também pelos danos causados. (ANNONI, 2009, p. 63).
Com o passar dos anos, verificou-se igualmente a insuficiência desta teoria da culpa civil. Isto porque cabia ao lesado arcar com o ônus da prova não só do dano, mas também da atuação culposa do agente público. Eis o problema, dado que nem sempre se conseguia identificar o causador do dano ou ainda acontecer do dano ser provocado por conduta desidiosa do funcionário, impossibilitando, assim, a responsabilização do Estado.
Fazia-se necessário transpor essa necessidade de configuração de culpa do agente para possibilitar a responsabilidade do Estado. E dentro do processo evolutivo, em 1873, em Bourdeaux, cidade francesa, houve um caso do atropelamento de uma menina por um vagão da Companhia Nacional da Manufatura do fumo, ocasião em que seu pai acionou o Estado francês pleiteando uma indenização por tal fato e pela primeira vez, a jurisprudência francesa entendeu cabível o pedido, pois haveria no caso a responsabilidade decorrente de funcionamento do serviço público.
Pela importância do fato que marca o início da fase das teorias publicísticas, traz-se à baila os comentários de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
O primeiro passo no sentido da elaboração de teorias de responsabilidade do Estado segundo princípios do direito público foi dado pela jurisprudência francesa, com o famoso caso Blanco, ocorrido em 1873: a menina Agnès Blanco, ao atravessar uma rua da cidade de Bordeaux, foi colhida por uma vagonete da Cia. Nacional de Manufatura do Fumo; seu pai promoveu ação civil de indenização, com base no princípio de que o Estado é civilmente responsável por prejuízos causados a terceiros, em decorrência de ação danosa de seus agentes. Suscitado conflito de atribuições entre a jurisdição comum e o contencioso administrativo, o Tribunal de Conflitos decidiu que a controvérsia deveria ser solucionada pelo tribunal administrativo, porque se tratava de apreciar a responsabilidade decorrente de funcionamento do serviço público. Entendeu-se que a responsabilidade do Estado não pode reger-se pelos princípios do Código Civil, porque se sujeita a regras especiais que variam conforme as necessidades do serviço e a imposição de conciliar os direitos do Estado com os direitos privados. (DI PIETRO, 2010, p. 645).
Tem-se, portanto, o início da fase das teorias publicísticas, com o advento de três novas teorias: a teoria da culpa do serviço (também chamada de “culpa administrativa”, “acidente administrativo” “ou falta do serviço – doutrina da faute du service”); a teoria do risco administrativo e a teoria do risco integral.
A primeira teoria da fase publicística, como visto, é a teoria da culpa do serviço, na qual se leva em consideração a irregularidade no funcionamento do serviço, para dele inferir a responsabilidade estatal. O fato gerador é justamente o funcionamento defeituoso do serviço, que independe de culpa do agente público.
Deve-se ressaltar que a culpa do serviço mencionada, ocorre em três hipóteses, segundo Paul Duez (1927), sistematizador desta teoria da faute du service, apud Mello (2010, p. 1005): “1) le service a mal fonctionné (culpa in committendo); 2) le service n’a pás fonctionné (culpa in ommittendo); 3) le service a fonctionné tardivemente”, ou seja, 1.ª) o mau funcionamento do serviço (culpa in comittendo); 2.ª) o não funcionamento do serviço (culpa in omittendo); 3.ª) o atrasado ou demorado funcionamento do serviço.
Em tal modalidade de responsabilidade pela culpa do serviço, embora se possa enxergar na mesma os germes da teoria objetiva, não chega a ser uma responsabilidade objetiva. Isto porque se faz presente o elemento culpa.
Entretanto, conforme será melhor explicitado adiante, tal culpa estatal é presumida, havendo, assim, a inversão do ônus da prova, cabendo ao Estado a possibilidade de comprovação de que o serviço funcionou normalmente.
A teoria da faute du service ou culpa do serviço evoluiu para a teoria do risco administrativo, esta sim, tipicamente responsabilidade objetiva, estando atualmente consagrada pelo art. 37, § 6.º, da Constituição Federal de 1988.
Oportuno trazer-se à baila a definição de responsabilidade objetiva erigida por Mello (2010, p. 1005-1006): “Responsabilidade objetiva é a obrigação de indenizar que incumbe a alguém em razão de um procedimento lícito ou ilícito que produziu uma lesão na esfera juridicamente protegida de outrem.”
A Teoria do Risco Administrativo é, sem dúvida, mais benéfica para o administrado, visto que o mesmo não necessita identificar o agente causador do dano, bem como a culpa do mesmo na conduta estatal, ou ainda, a culpa do serviço, para ensejar a responsabilização do Estado pelos seus prejuízos, cabendo, portanto, em atos lícitos e ilícitos, necessitando apenas a comprovação do dano e do nexo de causalidade entre a conduta estatal e o mesmo dano.
Frise-se, portanto, que mesmo no exercício das atividades regulares da Administração, o Estado pode vir a ser responsabilizado, com base na teoria do risco.
Necessário se faz, portanto, adentrar nos fundamentos que justificam a responsabilização do Estado sem a necessidade da comprovação de sua culpa.
Na verdade, a ideia é que o Estado por ser a parte mais forte da relação entre Administração e administrado, deveria arcar com o risco das atividades administrativas. Tal fundamentação está bem explanada na lição de José dos Santos Carvalho Filho que ora se expõe:
Foi com lastro em fundamentos de ordem política e jurídica que os Estados modernos passaram a adotar a teoria da responsabilidade objetiva no direito público. Esses fundamentos vieram à tona na medida em que se tornou plenamente perceptível que o Estado tem maior poder e mais sensíveis prerrogativas do que o administrado. É realmente o sujeito jurídica, política e economicamente mais poderoso. O indivíduo, ao contrário, tem posição de subordinação, mesmo que protegido por inúmeras normas do ordenamento jurídico. Sendo assim, não seria justo que, diante de prejuízos oriundos da atividade estatal, tivesse ele que se empenhar demasiadamente para conquistar o direito à reparação dos danos. Diante disso, passou-se a considerar que, por ser mais poderoso, o Estado teria que arcar com um risco natural decorrente de suas numerosas atividades: à maior quantidade de poderes haveria de corresponder um risco maior. Surge, então, a teoria do risco administrativo, como fundamento da responsabilidade objetiva do Estado. (CARVALHO FILHO, 2009, p. 524).
O risco administrativo, embora esteja lastreado na responsabilidade objetiva, não impõe ao Estado responsabilização absoluta, havendo, assim hipóteses que excepcionam a regra prevista no art. 37, § 6.º da CF/88 e ilidem a responsabilidade do Estado.
É neste contexto que Meirelles (2004, p. 626-627) divide em duas modalidades a teoria do risco: o risco administrativo, propriamente dito, e o risco integral.
Segundo o autor, pela teoria do risco integral, obrigar-se-ia o Estado a indenizar todo e qualquer dano, ainda que decorrente de dolo ou culpa da vítima, caso fortuito, força maior, ou ato-fato de terceiro. Ou seja, é teoria extremada, dado que inadmite quaisquer excludentes à responsabilização estatal.
Na verdade, o que se pode concluir, com amparo nas ideias do renomado autor, é que a teoria do risco integral, se fosse, na prática, adotada como regra levaria ao abuso social.
Como conclusão às ideias trazidas com a explanação das fases evolutivas da responsabilidade civil estatal bem se encaixa a doutrina de Danielle Annoni, a qual explica que não se excluem atualmente a responsabilidade subjetiva e objetiva, conforme se vê abaixo:
No entanto, há que se ter claro que o processo evolutivo, tanto no âmbito do direito privado quanto no de direito público, não se fez de forma linear, muito menos excludente. Isto significa dizer que atualmente convivem e regem a vida dos cidadãos tanto a responsabilidade civil subjetiva como a objetiva, além de suas nuances. (ANNONI, 2009, p. 59).
4.2. Discussão acerca da Responsabilidade pela Demora na Prestação Jurisdicional
Antes de pensar em responsabilizar o Estado pelos atos do Poder Judiciário, cabe estabelecer que a atividade judiciária está enquadrada dentro do conceito de serviço público.
Com efeito, é fácil concluir que a atividade judiciária constitui um serviço público, vez que a tutela de direitos é realizada pela via jurisdicional, não podendo o particular, salvo em hipóteses legalmente previstas, se eximir da jurisdição, como se percebe com a vedação ao particular do exercício da justiça pelas próprias mãos, sendo, inclusive, tal atitude, sancionada na esfera penal, conforme se depreende da leitura do art. 345 do Código Penal brasileiro.
Nesse sentido, dispõe, igualmente, Danielle Annoni:
A própria origem da atividade judiciária atesta seu caráter de típico serviço público, na medida em que se vedou ao particular o exercício da justiça por meio próprio e privado, instituindo-se, então, o serviço público judiciário, que não passa de espécie do gênero serviço público. (ANNONI, 2009, p. 86-87).
Corroborando tal pensamento, destaca-se a lição proposta por Vanessa Padilha Catossi:
Já por estas considerações, possível se mostra concluir que a atividade jurisdicional caracteriza-se como um serviço público, encontrando, pois, enquadramento nos termos do art. 37, § 6.º da Lei Maior. E para que não restem dúvidas acerca de tal premissa, basta lembrar a lição de Di Pietro (2002, p. 99), para quem serviço público pode ser definido como “toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que exerça diretamente ou por meio dos seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público. (CATOSSI, 2007, p. 9).
Fixada a premissa que a prestação jurisdicional é espécie do gênero serviço público, cumpre salientar a existência de outra garantia constitucional dos cidadãos, no que se refere a todos os serviços públicos. De fato, o art. 37, § 3.º da CF/88, com redação dada pela EC n.º 19/98, passou a garantir que os serviços públicos sejam eficientes.
Alinha-se a tal ordem de ideias os ensinamentos de Ivan de Oliveira Silva:
Voltando ao texto constitucional, verifica-se no caput do artigo 37, no mesmo sentido do art. 22 do CDC, o princípio da eficiência como uma imposição à administração pública, em qualquer esfera de Poder estatal. Desta diretriz, segue plenamente aceitável a afirmação de que toda a atividade do Estado, seja exercida pelo Poder Executivo, Legislativo ou Judiciário, deverá ser realizada de maneira a demonstrar uma organização e funcionamento, sobretudo, eficiente. (SILVA, 2004, p. 138).
Devendo, portanto, o Judiciário oferecer uma prestação jurisdicional eficiente, nos termos acima expostos, torna-se plenamente legítimo, também em decorrência desta garantia, defender a ideia que o jurisdicionado deve ser indenizado no caso de deficiência do serviço público, como ocorre, por exemplo, em processos desnecessariamente demorados.
Falando sobre o assunto, podemos apontar a doutrina de Vargas (1999, p. 50), segundo o qual: “Se o serviço for deficiente, o usuário deve ser indenizado, já que ele é contribuinte (direta ou indiretamente) e tem direito a uma prestação de serviço público de qualidade.”
Outrossim, arremata Vanessa Padilha Catossi:
Desse modo, reconhecido o exercício da função jurisdicional como sendo a prestação de um serviço público, a responsabilidade civil do Estado por atos judiciais começa a ganhar fortes contornos no sentido de ser uma decorrência do dever indenizatório imposto ao Estado por danos decorrentes dos serviços públicos, os quais se tornam mais nítidos quando se verifica que os principais argumentos que sustentam a tese contrária são passíveis de refutação. (CATOSSI, 2007, p. 9).
Entretanto, observa-se que há entendimentos jurisprudenciais, até mesmo do STF, defendo a tese da irresponsabilidade estatal.
Verifica-se que os adeptos de tal tese argumentam basicamente: 1) que a imposição da responsabilidade ao Estado afetaria a independência da magistratura; 2) haveria atentado à soberania do Estado, posto que os atos dos magistrados seriam atos de soberania; e 3) ausência de previsão legal para responsabilização.
Quanto aos dois primeiros argumentos, utilizando-se dos ensinamentos de Annoni (2009, p. 106-108), pode-se refutar os mesmos.
Primeiramente, quanto à independência da magistratura, há de se afirmar que a responsabilização do Estado não interfere nas garantias da magistratura, vez que não atinge os magistrados, tendo como foco apenas o ressarcimento pelo dano.
Em seguida, no tocante ao argumento da soberania do Poder Judiciário, essa tese não se sustenta, porque a soberania não é atributo do Pode Judiciário isoladamente, e sim do Estado, razão pela qual não há motivos para desobrigar o Estado de indenizar os jurisdicionados por tal motivo.
Quanto ao argumento da ausência de previsão legal para a responsabilidade estatal pela demora na prestação jurisdicional, pela clareza de sua exposição, traz-se à colação a doutrina de João Paulo dos Santos Melo:
No entanto, em que pese à respeitabilidade do egrégio Supremo Tribunal Federal, permita-nos discordar. A Constituição Federal apesar de ter expressamente colocado a hipótese de demora para colocar em liberdade o condenado, não afirmou ser ela a única hipótese de responsabilização do Estado. Também não há no texto constitucional qualquer menção a impossibilidade de indenização pela demora do processo. Ao contrário, a Constituição Federal de 1988 trouxe no bojo de suas mudanças, o instituto da responsabilização objetiva do Estado, com a teoria do risco administrativo. Pensamos que o STF ao interpretar a Constituição, entendendo que só há uma hipótese de responsabilização, criou uma restrição onde não havia. Cabe sim, a responsabilização pela morosidade processual (...) (MELO, 2010, p. 174-175).
Por todo o exposto até então, resta evidente que nos casos em que se tem um processo excessivamente moroso, estar-se diante de um anormal funcionamento do serviço público da Justiça.
Importante precisar neste momento as três espécies de serviço público judicial imperfeito, quais sejam: o mau funcionamento; a falta de funcionamento e o funcionamento defeituoso. Para tal tarefa, utilizar-se-á da lição de Adelson Freitas de Andrade Júnior:
Interessante é distinção encontrada, especialmente na doutrina espanhola, entre mau funcionamento, falta de funcionamento e defeituoso funcionamento. O primeiro pressupõe uma decisão e, portanto, é o erro judiciário. O segundo relaciona-se à denegação completa da função jurisdicional, e, portanto, ao próprio Estado de Direito. O terceiro relaciona-se as dilações indevidas e aos atrasos injustificáveis. Os dois últimos encerram o chamado anormal funcionamento da jurisdição. (ANDRADE JÚNIOR, 2008, p. 2).
Sendo assim, outra conclusão não se pode chegar, senão a da necessidade de responsabilizar o Estado pela demora na prestação jurisdicional, a qual se enquadra na definição de serviço judiciário defeituoso, conforme preceitua Sérgio Cavalieri Filho:
Por seu turno, o serviço judiciário defeituoso, mal organizado, sem os instrumentos materiais e humanos adequados, pode, igualmente, tornar inútil a prestação jurisdicional e acarretar graves prejuízos aos jurisdicionados pela excessiva morosidade na tramitação do processo. Os bens das partes se deterioram, o devedor desaparece, o patrimônio do litigante se esvai, etc. Ora, já ficou assentado que o arcabouço da responsabilidade estatal está estruturada sobre o princípio da organização e funcionamento do serviço público. E, sendo a prestação da justiça um serviço público essencial, tal como outros prestados pelo Poder Executivo, não há como nem por que escusar o Estado de responder pelos danos decorrentes da negligência judiciária, ou do mau funcionamento da Justiça, sem que isso moleste a soberania do Judiciário ou afronte o princípio da autoridade da coisa julgada. (CAVALIERI FILHO, 2004, p. 266).
Embora se possa afirmar que parte considerável dos doutrinadores pátrios entendem haver o dever de responsabilizar o Estado pela demora na prestação jurisdicional, não se verifica a mesma tendência consensual quanto à modalidade de responsabilidade estatal que se apresenta no caso.
Com efeito, existe controvérsia à medida que há na doutrina aqueles que entendem que a morosidade processual é hipótese de responsabilidade objetiva e outros que entendem ser subjetiva.
Para aqueles que entendem ser objetiva a responsabilidade estatal, assim o fazem por defenderem que é desnecessário que o particular demonstre a culpa estatal para ser indenizado pela demora processual, devendo-se aplicar a teoria do risco administrativo, nos termos do art. 37, § 6.º da CF/88, restando apenas ao Estado tentar se livrar da condenação a partir das excludentes de responsabilidade da culpa exclusiva da vítima e caso fortuito ou força maior.
Esse é o entendimento de Ivan de Oliveira Silva:
Destarte, em decorrência da lentidão processual, os danos causados às vítimas da máquina estatal, deverão ser devidamente reparados, sendo certo que, para tanto, nos termos do parágrafo 6.º, do artigo 37 da CF, a apuração da responsabilidade do Estado deverá seguir as diretrizes da teoria do risco administrativo – prescindindo-se a demonstração de culpa – vale dizer, disposição de cunho objetivo. Frise-se, pois, que a responsabilidade estatal pela falta de aplicação do direito dentro de um lapso temporal razoável é objetiva. (SILVA, 2004, p. 148).
Já aqueles que entendem ser caso de responsabilidade subjetiva defendem que no caso de demora na prestação jurisdicional haverá culpa do serviço ou faute du service em virtude da deficiência do serviço público jurisdicional.
Esse é o entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello:
(...) a ausência de serviço devido ao seu defeituoso funcionamento, inclusive por demora, basta para configurar a responsabilidade do Estado pelos danos daí decorrentes em agravo dos administrados (...). É mister acentuar que a responsabilidade por “falta do serviço”, falha do serviço ou culpa do serviço (faute du service, ou seja qual for a tradução que se lhe dê) não é, de modo algum, modalidade de responsabilidade objetiva, ao contrário do que entre nós alhures, às vezes, tem-se inadvertidamente suposto. É responsabilidade subjetiva porque baseada na culpa (ou dolo), conforme advertiu o Prof. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello. (MELLO, 2010, p. 1003).
Acrescenta ainda o autor que: “impor responsabilidade objetiva ao Estado nos casos de falta de serviço seria transformá-lo em um “segurador universal””. (2010, p. 181).
No mesmo sentido defendido por Celso Antônio Bandeira de Mello, sustenta João Paulo dos Santos Melo que:
Ao contrário, se temos um processo lento, por insuficiência de funcionários, juízes, material de expediente, grande quantidade de processo, tal fato ocorre não por uma ação, mas sim por uma omissão do Estado em aparelhar e fiscalizar o Judiciário gerando um serviço público imperfeito. Nesse caso, temos uma omissão, em decorrência da falta ou deficiência do serviço, devendo ser aplicada a teoria da responsabilidade subjetiva. (MELO, 2010, p. 180).
Em seguida, continua o mesmo autor:
Assim, em que pese entender que a punição pela morosidade processual seja um dos caminhos mais eficazes para a transformação do processo brasileiro, entendemos que não se pode aplicar a teoria da responsabilização objetiva, pautada no risco administrativo, nos casos em que existe uma falta do serviço. (MELO, 2010, p. 181).
Ademais, é importante frisar que a escolha por uma das espécies da responsabilidade estatal, seja ela objetiva ou subjetiva, tem implicações quanto a questão da inversão do ônus da prova.
Para os que entendem haver responsabilidade objetiva, não há que se falar em inversão do ônus da prova, já que o administrado não precisa provar a culpa do Estado, bastando demonstrar o dano sofrido e que o mesmo tem relação com a demora na prestação jurisdicional.
Conforme irá se observar abaixo, é exatamente este o pensamento defendido por Ivan de Oliveira Silva:
Assim, na ação reparatória dos danos decorrentes da falta de celeridade processual, descabida será qualquer pretensão de inversão do ônus da prova, haja vista que, conforme já exposto, em função do risco administrativo, a reparação dos danos seguirá, exclusivamente, a teoria de cunho objetivo. Portanto, o ônus da vítima da morosidade processual restringirá à prova do nexo de causalidade entre o dano injustamente suportado e a desídia do Estado. Não há de se falar, em momento algum, sobre a eventual culpa estatal. Frise-se, nesse caso, a perquirição de culpa deverá ser afastada. (SILVA, 2004, p. 148).
Por outro lado, aqueles que entendem ser caso de responsabilidade subjetiva por culpa do serviço, defendem que há nos casos de morosidade processual uma culpa presumida, sendo caso, portanto, de inversão do ônus da prova, cabendo não ao administrado, e sim ao Estado comprovar que ele não teve culpa na demora processual.
Esse é o entendimento de João Paulo dos Santos Melo, conforme se verifica:
Nesse sentido, a falta do serviço pode ser apurada através da figura da culpa presumida. Tal instituto na realidade é uma representação no direito material da figura da inversão do ônus da prova. Em outras palavras, permite-se a discussão no processo do elemento culpa, mas há a inversão do ônus probandi, impingido ao Estado a comprovação de que ele não agiu com culpa ou dolo. (MELO, 2010, p. 181).
Complementando seu entendimento dispõe o mesmo autor:
Entendo inclusive que a responsabilidade subjetiva com culpa presumida concilia a necessidade de punição do Estado moroso e ausente, em todos os aspectos, com a impossibilidade do Estado onipresente. (MELO, 2010, p. 182).
Importante frisar dentro do contexto da discussão acima travada que a razão de se presumir a culpa do Estado é o reconhecimento de que o administrado é a parte mais fraca da relação, o qual não teria como comprovar que houve violação à razoável duração do processo.
No mesmo sentido destaca Celso Antônio Bandeira de Mello:
(...) outro fator que há de ter concorrido para robustecer este engano é a circunstância de que em inúmeros casos de responsabilidade por faute du service necessariamente haverá de ser admitida uma “presunção de culpa”, pena de inobservância desta modalidade de responsabilização, ante a extrema dificuldade (às vezes intransponível) de demonstrar-se que o serviço operou abaixo dos padrões devidos, isto é com negligência, imperícia ou imprudência, vale dizer, culposamente. Em face da presunção de culpa a vítima fica desobrigada a comprová-la. Tal presunção, entretanto, não elide o caráter subjetivo desta responsabilidade, pois se o Poder Público demonstrar que se comportou com diligência, perícia e prudência – antítese de culpa – estará isento da obrigação de indenizar, o que jamais ocorreria se fora objetiva a responsabilidade. (MELLO, 2010, p. 1004).
A ideia defendida acima é igualmente bem exposta por João Paulo dos Santos Melo:
A aplicação do instituto da culpa presumida proporciona ao jurisdicionado, porquanto hipossuficiente, uma paridade de armas, já que, em regra, não conseguiria ele comprovar as nuances administrativas que levaram a falta ou deficiência do serviço. Com esse pensamento, caberia a administração comprovar que não agiu com culpa no caso concreto. (MELO, 2010, p. 181).
Discorrendo sobre essa distinção entre os dois tipos de responsabilidade, Sérgio Cavalieri Filho expõe que:
A culpa presumida foi um dos estágios na longa evolução do sistema de responsabilidade subjetiva ao da responsabilidade objetiva. Em face da dificuldade de se provar a culpa em determinadas situações e da resistência dos autores subjetivistas em aceitar a responsabilidade objetiva, a culpa presumida foi o mecanismo encontrado para favorecer a posição da vítima. O fundamento da responsabilidade, entretanto, continuou o mesmo – a culpa; a diferença reside num aspecto meramente processual de distribuição do ônus da prova. Enquanto no sistema clássico (da culpa provada) cabe à vítima provar a culpa do causador do dano, no da inversão do ônus probatório atribuí-se ao demandado o ônus de provar que não agiu com culpa. (CAVALIERI FILHO, 2004, p. 59).
Em face de toda linha de pensamento desenvolvida até então, entende-se que a posição mais acertada é aquela que defende que nos casos de demora injustificada da prestação jurisdicional há responsabilidade subjetiva estatal, na modalidade da culpa do serviço por violação à garantia da razoável duração do processo e, portanto, com culpa presumida estatal.
Tal conclusão é reforçada com a notícia de que esta é a posição do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, conforme esclarece Olavo de Oliveira Neto e Patrícia Elias Cozzolino de Oliveira:
(...) cremos que não cabe ao interessado a produção da prova da culpa do serviço e de identificá-la de forma adequada, sob pena de se tornar praticamente impossível a indenização. Por isso aderimos à posição de João Aveiro Pereira, que explana o entendimento do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, aduzindo que “Nos diversos casos que tem sido chamado a decidir, por atrasos excessivos na tramitação de processo judiciais, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem afirmado e reafirmado os critérios gerais a utilizar para a determinação de prazo razoável. E, nesta matéria, importa realçar que o caráter de razoabilidade é considerado matéria de facto, cujo ônus da prova o Tribunal faz recair sobre o estado requerido que terá de apresentar as necessárias explicações sobre os motivos do atraso constatado, quando esse se afigurar excessivo”. Em suma, portanto, cremos que é ônus do Estado demonstrar que o prazo de tramitação e solução do processo não feriu o critério da razoável duração, o que sempre será feito em face do caso concreto e em função dos parâmetros acima aduzidos, relativos à complexidade do feito, atuação das partes e atuação do magistrado, dos auxiliares da justiça e da estrutura do órgão jurisdicional. (OLIVEIRA NETO; OLIVEIRA, 2010, p. 1333).
Em face do exposto ao longo do artigo, pode-se afirmar que a responsabilidade estatal pela demora na prestação jurisdicional se apresenta como um instrumento para a efetivação do direito fundamental da duração razoável do processo e, igualmente, para contribuir no tocante à solução do problema da morosidade processual.
5. CONCLUSÃO
A Justiça brasileira carece ainda de maior efetividade, sob pena do Poder Judiciário perder a credibilidade perante o jurisdicionado.
Demonstrou-se que existem atualmente mecanismos processuais que visam atacar a morosidade judicial, dando-se ênfase no presente artigo à responsabilização estatal pela demora excessiva do processo.
Conforme demonstrado, procurou-se defender a ideia que a garantia constitucional da duração razoável do processo é fundamento hábil para responsabilizar o Estado pela demora na prestação jurisdicional.
Verificou-se que a atividade jurisdicional deve ser entendida como serviço público e que havendo morosidade na sua prestação, deve o Estado ser responsabilizado sob a modalidade da culpa do serviço, tendo em vista o serviço público imperfeito prestado.
Observou-se, desta forma, que para a caracterização da violação à razoável duração do processo, alguns critérios devem ser observados e que os mesmos não são fáceis de serem comprovados pelos administrados, razão pela qual se defendeu, nesse caso, que se deve entender haver culpa presumida do Estado, cabendo a este provar o contrário.
Pode-se dizer, por tudo que foi visto neste artigo, que a responsabilidade estatal pela demora na prestação jurisdicional, pode servir de instrumento para efetivar o direito fundamental da razoável duração do processo e assim contribuir para solução do problema da morosidade processual.
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Analista Judiciário do TJPE. Assessor de Magistrado. Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera - Uniderp. Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto Elpídio Donizetti. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004).
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Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
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Por: PRISCILA GOULART GARRASTAZU XAVIER
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