RESUMO: O presente trabalho abordará a inércia legiferante do Poder Legislativo da União mesmo após tal direito ter sido elevado ao status constitucional, abordando a necessidade de condenação no âmbito internacional para que houvesse uma tentativa de efetivação dos direitos imanentes à dignidade da pessoa humana. Para tanto, far-se-á uma análise pormenorizada dos dispositivos legais da Lei Maria de Penha, buscando-se, em alguns pontos, o entendimento conferido pelos tribunais superiores em cotejo com a interpretação efetuada pela mais balizada doutrina brasileira, por meio da revisão bibliográfica. Busca-se verificar em que passo a sociedade brasileira caminha na busca da igualdade de direitos.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A Lei Maria da Penha Enquanto Efetivadora de Direitos. 3. Considerações Finais. 4. Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 assegurou, ao estabelecer a dignidade da pessoa humana enquanto fundamento da República Federativa do Brasil no seu artigo 1º, inciso III, não só o direito à vida, mas também a uma existência digna.
Ocorre que, a simples menção ao direito não conduz, por si só, à sua internalização no seio social, sendo que as mulheres por décadas viram seus direitos violados em razão de um Estado inerte e de uma cultura machista e opressora. A mulher, então, necessita de um apoio estatal efetivo para que consiga ter seus direitos efetivamente respeitados, alcançando-se a tão sonhada igualdade material.
Nesse cenário surge, após a condenação do Brasil pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a lei nº 11.340 no ano de 2006, aproximadamente dezesseis anos depois da promulgação da Constituição Cidadão.
Embora revista-se de intento nobre, sabe-se que por trazer situações de tratamento desiguais entre homens e mulheres, a mencionada lei foi alvo de críticas e intensos debates para se aferir sua conformidade com o próprio texto constitucional, sendo que o presente trabalho se proporá a analisar os dispositivos legais da Lei Maria da Penha e esmiuçar seus efeitos práticos.
2. A LEI MARIA DA PENHA ENQUANTO EFETIVADORA DE DIREITOS
Conforme esculpido no art. 226, §8º, da Constituição Federal, o Estado resguardará à família na individualidade de cada um dos seus membros, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito das suas relações.
Em 1996 o Brasil internalizou, por meio do Decreto de nº 1.973, a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, “Convenção de Belém do Pará”, de 09 de junho de 1994. Entretanto, somente em 2006 o congresso nacional conseguiu inovar o ordenamento jurídico e implementar o comando constitucional contido no art. 226, da CF, criando a Lei Maria da Penha (lei nº 11.340/2006).
Cumpre salientar que, o congresso nacional somente aprovou a Lei Maria da Penha após ter sido o Brasil internacionalmente condenado na OEA (Organização dos Estados Americanos), a qual considerou o país negligente na defesa dos direitos da mulher vítima de violência doméstica e familiar, recomendando que fosse elaborada legislação específica sobre o tema.
A legislação, conforme mencionado, somente veio à tona após condenação internacional oriunda de caso concreto levado a julgamento na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no qual constava como vítima Maria da Penha, casada com professor universitário, o qual se tornou seu algoz durante os anos de convivência marital. Por oportuno, vejamos a síntese da história:
Maria da Penha é biofarmacêutica cearense, e foi casada com o professor universitário Marco Antonio Herredia Viveros. Em 1983 ela sofreu a primeira tentativa de assassinato, quando levou um tiro nas costas enquanto dormia. Viveros foi encontrado na cozinha, grtitando por socorro, alegando que tinham sido atacados por assaltantes. Desta primeira tentativa, Maria da Penha saiu paraplégica A segunda tentativa de homicídio aconteceu meses depois, quando Viveros empurrou Maria da Penha da cadeira de rodas e tentou eletrocutá-la no chuveiro.
Apesar da investigação ter começado em junho do mesmo ano, a denúncia só foi apresentada ao Ministério Público Estadual em setembro do ano seguinte e o primeiro julgamento só aconteceu 8 anos após os crimes. Em 1991, os advogados de Viveros conseguiram anular o julgamento. Já em 1996, Viveros foi julgado culpado e condenado há dez anos de reclusão mas conseguiu recorrer.
Mesmo após 15 anos de luta e pressões internacionais, a justiça brasileira ainda não havia dado decisão ao caso, nem justificativa para a demora. Com a ajuda de ONGs, Maria da Penha conseguiu enviar o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), que, pela primeira vez, acatou uma denúncia de violência doméstica. Viveiro só foi preso em 2002, para cumprir apenas dois anos de prisão[1].
Após a publicização internacional do descaso com o qual era tratada a mulher vítima de violência doméstica no Brasil, foi criada a Lei nº 11.340, nominada de Maria da Penha em homenagem à vitima da história susomencionada, objetivando coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, prestar assistência e proteção à mulher vítima, instituindo, ainda, a figura dos juizados especiais criminais de violência doméstica e familiar.
Como não poderia deixar de ser, a constitucionalidade da Lei Maria da Penha foi muito debatida no cenário jurídico interno, sendo objeto de acirradas discussões, que objetivavam aferir se o fator de discriminem utilizado – a conformação sexual biológica – era suficiente a ensejar tratamento desigual entre homens e mulheres. O que se objetiva, em todo caso, é aferir se a desigualdade fática foi devidamente sopesada e contrabalanceada nos termos da lei, para que com isso possa proporcionar isonomia material no tratamento desigual.
Em primeiro plano, uma análise histórica da legislação brasileira nos permite concluir pela constitucionalidade da Lei de Proteção à mulher.
Após o advento da Constituição Federal de 1988, Constituição Cidadã, diversas leis surgiram com escopo de discriminar determinadas realidades fáticas que mereciam tratamento legal diferenciado, cite-se como exemplo: Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003); Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº
8089/1990); Lei de Crimes Hediondos, crimes de maior potencial ofensivo (Lei nº 8072/1990); Lei dos Juizados Especiais Criminais, crimes de menor potencial ofensivo (Lei nº 9099/1995).
Some-se a isso, o entendimento veiculado na seara criminal de sistemas de proteção, os quais podem ser geral e especial. Nesta situação a lei terá destinatário certo, tal qual ocorre na Lei Maria da Penha e nas outras tantas acima mencionadas. Por outro lado, no sistema de proteção geral, a lei penal não possui um endereçamento determinado, destina-se à coletividade como um todo, tal qual se vislumbra no Código Penal, em específico nos crimes contra as pessoas ou contra o patrimônio, por exemplo.
Feito este esboço propedêutico, adentremo-nos no bojo da Lei Maria.
A Lei nº11.340 objetiva coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, prestar assistência e proteção à mulher vítima e incidirá nas relações atentatórias contra à mulher ocorridas no âmbito da unidade doméstica, familiar e nas relações de afeto. A conceituação das situações sobre as quais os comandos legais da Lei sem aplicarão vêm descritos e explicados no incisos I, II e II, do art. 5º, in litteris:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Noutra vertente, superando a Constituição Federal e o Código Civil, a Lei de Proteção à Mulher abarcou expressamente no seu bojo as relações homoafetivas, conforme consta no parágrafo único, do art. 5º. Independe, assim, da orientação sexual adotada pela vítima.
Avançando no tema, embora tenha previsto no seu âmago as relações homoafetivas, não será em todas as situações que mulher vítima poderá se beneficiar dos preceitos da Lei 11.340. Quer-se aqui afirmar, que Lei pressupõe discriminação oriunda de violência de gênero.
Assim, exemplificando, como o faz a doutrina, caso Tício, perigoso traficante da cidade de Goiânia-GO, conhecido por sua insubrdinação às leis estatais e dura punição com os que descumprem seus comandos, após ser capturado pelas autoridades policiais, ameaça todas as testemunhas arroladas pelo Estado-acusação, afirmando que, caso elas venham a revelar qualquer fato que o incrimine, pagarão com a vida. Acontece que, dentre as testemunhas ameaçadas, encontrava-se sua esposa, com a qual vivia maritalmente antes da sua prisão. Nessa situação hipotética, não ocorrerá à incisão da Lei Maria da Penha, mesmo tendo a ameaça atingido sua esposa, não resta constatada violência de gênero como força motriz deflagradora da conduta de Tício.
Os comandos legais objetivam resguardar a mulher vítima das mais diversas espécies de violência, seja ela física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Nesse diapasão, vejamos o que dispõe o art. 7º, in verbis:
Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
Ademais, embora se ressalte em demasia o caráter eminentemente penal da Lei Maria Penha, cumpre salientar os comandos legais não possuem caráter punitivo, ou seja, criminalizador. Mas sim conjugam elementos da seara criminal, administrativa, trabalhista, cível, sendo, portanto, uma lei multidisciplinar.
As medidas protetivas, constantes dos arts. 22, 23 e 24, da Lei de Regência, trazem à baila comandos que visão acautelar a mulher vítima, objeto de proteção da lei, sendo de cunho estritamente cível, motivo pelo qual possuem como pressupostos a fumaça do bom direito e perigo na demora, imanentes a toda a qualquer ação de cautelar. Conquanto isso, diferentemente das medidas cautelares do processo civil, não estão sujeitas ao prazo decadencial de 30 dias, devendo permanecer, segundo entendimento do Superior tribunal de Justiça, enquanto necessárias.
Ainda quanto às medidas protetivas, algumas peculiaridades merecem destaque. Podem ser concedidas de ofício pelo juiz e não podem ser requisitadas pelo Delegado de Polícia, podendo este, entretanto, representar pelas medidas cautelares constantes do Código de Processo Penal e pela prisão do agressor – desde que constatados os requisitos da constrição cautelar da liberdade.
A Lei Maria da Penha instituiu, ainda, uma tríplice assistência à mulher vítima de violência, resguardando-a quanto à sua segurança, saúde e ofertando auxílio social. Alguns pontos merecem destaque, tal qual o acesso prioritário à remoção quando a vítima for servidora integrante do quadro da administração direta e indireta (art. 9º, §2º, I), manutenção do vínculo trabalhista, quando for necessário o afastamento do trabalho, pelo período de até 06 meses (art. 9, §2º, II) – prevalece na doutrina que se trata de causa de suspensão do vínculo trabalhista, ou seja, padece de vencimentos enquanto se mantiver o afastamento.
Em especial, no tange às medidas protetivas de urgência, grande celeuma pairava sobre a doutrina e jurisprudência quando do seu injustificado descumprimento. Pacificando o tema, o STJ decidiu no REsp. 1.374.653, que não restaria configurado o crime de desobediência, por ter a própria lei estabelecido medidas assecuratórios para o caso de descumprimento como a possível decretação da prisão preventiva do agressor.
Por fim, no que tange a imposição de penalidades, a Lei veda expressamente que seja aplicada, única e exclusivamente, pena de cestas básicas, de prestação pecuniária ou que implique no pagamento isolado de multa, conforme consta do art. 17.
3. CONCLUSÃO
Destarte, os avanços são inúmeros, as políticas públicas, mesmo que tardiamente, têm sido implementadas. Mas, como não poderia deixar de ser, a subordinação da mulher aos anseios masculinos estão arraigados na história cultural do povo latino-americo, não tendo a lei – comando impessoal e abstrato – o condão de promover a efetiva modificação de um comportamento tão repudiável quanto recorrente. Porém, o avanço foi grande e a história, como sabemos, é feita marchas e contramarchas, o que não pode deixar de ser ressaltado é o efetivo e louvável ganho que Lei Maria Penha trouxe à sociedade brasileira.
Portanto, que sejam apontadas as críticas, porquanto o embate intelectual está posto, mas que não se permita ofuscar o barulho dos aplausos que devemos ofertar à Lei do Combate à Violência de Gênero.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 7ºed. São Paulo. Editora Saraiva, 2014.
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. 3ºed. São Paulo. Editora Wmfmartinsfontes, 2010.
HABIB, Gabriel. Leis Penais Especiais – Tomo II. Salvador - BA. Editora JusPODIVM, 2015.
LENZA, Pedro. Curso de Direito Constitucional Esquematizado. 15º ed. São Paulo. Editora Malheiros, 2011.
LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Criminal Especial Comentada. Salvador - BA. Editora JusPODIVM, 2015.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. Vol. 1. 8ª ed. Editora GenMétodo, 2015.
[1] Disponível em: http://www.observe.ufba.br/lei_mariadapenha. Acessado 10/05/2014, às 20:00 horas.
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal. Advogado e Professor. <br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MENDES, João Paulo Ferreira. A Lei Maria da Penha enquanto efetivadora de Direitos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 maio 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50178/a-lei-maria-da-penha-enquanto-efetivadora-de-direitos. Acesso em: 22 nov 2024.
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