Resumo: O presente artigo pretende estabelecer considerações a respeito da investigação policial e o do instituto do indiciamento em contraponto com as limitações estabelecidas na fase preliminar pelo foro por prerrogativa de função. Para tanto, recorreu-se à doutrina e às recentes decisões dos Tribunais Superiores. Utilizou-se do medito dedutivo e dividiu-se o estudo em dois capítulos: o primeiro aborda a instauração do inquérito policial e o ato do indiciamento, bem como as características de ambos os institutos. Em um segundo capítulo, estuda-se a temática do foro privilegiado, bem como os seus efeitos no processo e principalmente as limitações que incidem na fase investigativa, conduzida pelo Delegado de Polícia, em face da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
Palavras-chave: inquérito policial; indiciamento; limitações; foro privilegiado; jurisprudência.
Sumário: 1 Introdução. 2 Considerações Gerais Sobre a Investigação Policial e o Indiciamento. 3 As Limitações da Investigação Policial Pela Prerrogativa de Foro Privilegiado do Investigado. 4 Conclusão. 5 Bibliografia.
1 INTRODUÇÃO
No Direito Processual Penal existem basicamente dois sistemas processuais com características claramente distintas, e um terceiro sistema que resulta de uma mescla desses dois primeiros.
Pelo sistema inquisitorial, o processo segue um rito rigoroso, secreto e escrito. Adotava a tortura como principalmente meio de prova, sem observar o contraditório, uma vez que as funções de acusar, defender e julgar eram concentradas na figura de um juiz inquisidor.
Por outro lado, o sistema acusatório é caracterizado pela separação das funções de acusar, defender e julgar, primando pela oralidade e publicidade dos atos praticados e pela oportunidade das à atividade probatória. Neste sistema o julgador assumia uma posição passiva e o seu poder instrutório é exceção. A Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB/88 adotou o sistema acusatório.
No Brasil, a persecução criminal para a apuração de infrações penais e sua autoria é dividida em duas grandes etapas. A primeira etapa é a investigação criminal e a segunda é denominada de fase processual.
Cada um dessas etapas é regida por seus respectivos princípios e regras, que ora lhes são particulares, ora são comuns a ambas as etapas.
A investigação criminal é uma fase preliminar e com características inquisitivas, que pode se dar de maneiras diversas, como o inquérito policial, o procedimento investigativo criminal, a verificação preliminar de informações, termo circunstanciado de ocorrência ou outro procedimento previsto em lei. Essa investigação criminal, preliminar, poderá até mesmo ser dispensada, caso os indícios de autoria e materialidade, bem como as circunstâncias de eventual infração penal já estejam apurados.
Como veremos, em regra, a autoridade responsável pela condução das investigações é livre em sua discricionariedade regrada para assumir, sem ingerências externas, as diligências que considerar necessárias para a elucidação dos fatos e da autoria. Entretanto, existem alguns indivíduos, pela posição estatal que ocupam, detêm certas prerrogativas que podem tolher a autonomia das investigações pela autoridade ordinariamente responsável.
No presente trabalho trataremos especificamente das limitações da investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia que ocorrem por conta do cargo do indivíduo que está sendo investigado.
2 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A INVESTIGAÇÃO POLICIAL E O INDICIAMENTO
Segundo Tourinho Filho, inquérito policial é o “conjunto de diligências realizadas pela Polícia Judiciária para a apuração de uma infração penal e sua autoria, a fim de que o titular da ação penal possa ingressar em juízo”[1]. O inquérito tem a função de fornecer elementos para subsidiar eventual ação penal, que será posta em juízo pelo seu titular, seja o Ministério Público, nos casos de ação penal pública, seja o ofendido, nos casos de ação penal privada. O inquérito subsidiará a instauração da fase processual.
O inquérito policial possui natureza jurídica de procedimento administrativo preliminar de caráter informativo e rege-se subsidiariamente pelas regras dos atos administrativos em geral[2]. Isto significa que os elementos dos atos administrativos – forma, competência, finalidade, motivo e objeto –, bem como os seus atributos – presunção de legitimidade, autoexecutoriedade, tipicidade e imperatividade –, a depender do caso, são aplicáveis ao inquérito policial. A subsidiariedade mencionada decorre de que tais elementos e atributos devem ser compatibilizados com o disposto no Código de Processo Penal e na legislação de trata desta fase persecutória.
Como dito, o inquérito policial possui algumas características e atributos que lhe são próprios, os quais apenas citaremos, vez que tal aprofundamento não é objetivo do presente trabalho. O inquérito policial é um procedimento inquisitivo, discricionário, sigiloso, escrito, unidirecional, temporário, indisponível e dispensável, dotado de oficiosidade, autoritariedade e oficialidade.
Essas características remetem que o inquérito seja presidido por uma autoridade pública (autoritariedade), que constitui um órgão oficial do Estado (oficialidade). O inquérito policial é presidido e conduzido pela Autoridade de Polícia, isto é, pelo Delegado de Polícia, conforme dispõe o §4º do art. 144 da Constituição Federal:
Art. 144, § 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.[3]
Salienta-se é plenamente possível a coexistência de outros procedimentos de caráter investigativo conduzidos por outras autoridades que não o Delegado de Polícia, tais como o procedimento investigativo preliminar, conduzido por membro do Ministério Público; as Comissões Parlamentares de Inquérito; processos administrativos disciplinares e etc.
A diferença é que o inquérito policial, por assim ser denominado, é capitaneado pelo Delegado de Polícia. Portanto, todos os atos praticados nos autos inquérito serão autorizados e realizados, salvo cláusulas de reserva de jurisdição, pela Autoridade de Polícia, a quem caberá a condução do respectivo procedimento.
Os artigos 6º e 7º do Código de Processo Penal listam uma série de diligências de podem ou devem ser realizadas pelo Delegado de Polícia no curso das investigações, veja-se:
Art. 6o Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:
I - dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais; (Redação dada pela Lei nº 8.862, de 28.3.1994)
II - apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais; (Redação dada pela Lei nº 8.862, de 28.3.1994)
III - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias;
IV - ouvir o ofendido;
V - ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título Vll, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que Ihe tenham ouvido a leitura;
VI - proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações;
VII - determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias;
VIII - ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes;
IX - averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter.
X - colher informações sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa. (Incluído pela Lei nº 13.257, de 2016)
Art. 7o Para verificar a possibilidade de haver a infração sido praticada de determinado modo, a autoridade policial poderá proceder à reprodução simulada dos fatos, desde que esta não contrarie a moralidade ou a ordem pública.[4]
No evoluir do inquérito policial, conforme o transcurso das diligências realizadas e a obtenção de provas da materialidade e indícios da autoria de determinada infração penal, constitui-se lastro probatório suficiente para a individualização da investigação em face de determinado indivíduo, suposto autor da infração. Neste momento toma corpo o instituto do indiciamento.
Renato Brasileiro refere que o indiciamento é “O indiciamento é o ato resultante das investigações policiais por meio do qual alguém é apontado como provável autor de um fato delituoso.”[5]
Segundo Guilherme de Souza Nucci, indiciamento é ato vinculando, que deve ser fundamentado em provas, pelo qual a autoridade policial realiza a individualização do suspeito da autoria de determinada infração penal, colhendo seus dados e determinando o registro na sua folha de antecedentes[6].
Por sua vez, Aury Lopes Júnior, citando MORAES PITOMBO dispõe que o indiciamento é resultado do encontro de um feixe de indícios convergentes em detrimento de determinado indivíduo, declarando a autoria provável da prática de suposta infração penal[7].
Nestor Távora refere que indiciamento é:
“a informação ao suposto autor a respeito do fato objeto das investigações. É a cientificação ao suspeito de que ele passa a ser o principal foco do inquérito. Saímos do juízo de possibilidade para o de probabilidade e as investigações são centradas em pessoa determinada”[8]
Diante da conceituação apresentada pela mais abastada doutrina, podemos confluir que o indiciamento é o ato pelo qual o Delegado de Polícia cientifica e direciona a investigação criminal expressamente a determinado indivíduo, que deixa o “status” de suspeito para adquirir uma condição de “indiciado”, e a inquérito policial passa, de um juízo de mera probabilidade, para um juízo de verossimilhança.
Durante muitos anos o indiciamento padeceu de maiores referência legislativas. Só em 2013 a lei n.º 12.830 foi editada no intuito de dispor a respeito da investigação conduzida pela Autoridade Policial, e timidamente tratando do indiciamento no §6º do art. 2º.
Art. 2º, § 6o O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.[9]
Segundo o dispositivo, o indiciamento dar-se-á mediante análise técnico-jurídica do fato e é ato privativo do Delegado de Polícia. Portanto, caberá ao Delegado de Polícia, privativamente, promover o indiciamento durante o IP, não se subvertendo a requisições do MP ou do Juiz nesse sentido. A doutrina prevalente sempre ressonou neste sentido antes do advento da referida legislação.
Isto não significa que a Autoridade de Polícia poderá não atender às requisições judiciais ou ministeriais para a instauração de investigações. A abertura de inquérito não implica necessariamente de indiciamento, são atos diferentes e se prestam a finalidades distintas. Nada impede que o Delegado de Polícia instaure investigação por conta de requisição, mas que entenda pelo não indiciamento do investigado. Nestes casos, não haverá requisição que obrigue a Autoridade Policial à realização do indiciamento, pois, como vimos, o indiciamento é ato privativo.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal decidiu a respeito:
“ (...) 1. Sendo o ato de indiciamento de atribuição exclusiva da autoridade policial, não existe fundamento jurídico que autorize o magistrado, após receber a denúncia, requisitar ao Delegado de Polícia o indiciamento de determinada pessoa. A rigor, requisição dessa natureza é incompatível com o sistema acusatório, que impõe a separação orgânica das funções concernentes à persecução penal, de modo a impedir que o juiz adote qualquer postura inerente à função investigatória. Doutrina. Lei 12.830/2013. 2. Ordem concedida.”[10]
Avançando-se sobre o conceito legal, percebemos que o indiciamento “dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”. Em outras palavras, o Delegado de Polícia deverá aventar os elementos de informação já obtidos no curso da investigação para que, fundamentadamente, possa convergir a investigação em face de determinado indivíduo.
Segundo Norberto Avena,
“O indiciamento não exige a comprovação do envolvimento do indivíduo na prática criminosa, o que será objeto de apuração no curso da instrução criminal, após o oferecimento da denúncia ou da queixa-crime. (...) é suficiente que haja indicativos da sua responsabilidade pelo cometimento do fato investigado. Sem embargo, condiciona-se à existência de prova de materialidade da infração.”[11]
Essa necessidade de fundamentação decorre também dos elementos dos atos administrativos. A forma é o requisito do ato que demanda uma fundamentação ou motivação.
O ato do indiciamento irradia seus efeitos de forma endoprocessual e extraprocessual. Dentro do processo o indivíduo passa a ser denominado “indiciado” – atributo que carrega maior probabilidade de autoria de suposta infração penal –, além disso, o indiciamento é antecedente lógico, mas não necessário (inquérito policial é dispensável), para que o agente assuma o pólo passivo de eventual fase processual. Segundo Nestor Távora, como efeito extraprocessual, o indiciamento aponta para a sociedade quem é o provável sujeito ativo do delito que se investiga[12].
Deste modo, uma vez analisado o conceito e os efeitos do indiciamento, fica evidente a distinção do ato de abertura das investigações. O indiciamento dar-se-á por ato fundamentado, privativo do Delegado de Polícia, mediante análise técnico-jurídica do fato e devidamente fundamentada. É passível de incorrer em constrangimento ilegal. A abertura das investigações, por sua vez, pode se dar por portaria da Autoridade Policial, por requisição do Juiz ou do membro do MP, por auto de prisão em flagrante delito e até mesmo pela conversão do termo circunstanciado, caso as particulares do caso necessitem maiores diligências investigatórias.
Ambos os institutos podem sofrer limitações quando a investigação for de autoridades com foro privativo em determinados tribunais. Essas limitações vão dependem do cargo ocupado pelo investigado, bem como do Tribunal competente.
3 AS LIMITAÇÕES DA INVESTIGAÇÃO POLICIAL PELA PRERROGATIVA DE FORO PRIVILEGIADO DO INVESTIGADO
Não são poucas as limitações pelas quais os Delegados de Polícia estão sujeitos quando da condução do inquérito policial. Dentre elas, podemos citar a impossibilidade de indiciamento após o recebimento da denúncia; as medidas que estão sujeitas a cláusulas de reserva de jurisdição, como a busca e apreensão e a interceptação telefônica; a prerrogativa de foro de determinadas autoridades, disposições do Estatuto da Magistratura e a Lei Orgânica do Ministério Público; dentre diversas outras limitações.
Abordamos, neste trabalho, apenas as limitações que decorrem da prerrogativa de foro privativo do investigado.
Inicialmente, analisaremos a questão da investigação policial de membros Magistratura e do Ministério Público que, apensar de possuírem foro privilegiado, as limitações decorrem da legislação da respectiva carreira.
A lei ordinária n.º 8.625/93 e a lei complementar n.º 35/79 tratam, respectivamente da Lei Orgânica do Ministério Público (LOMP) e do Estatuto da Magistratura. Essas leis referem expressamente sobre o procedimento quando, no curso de investigação houver indício de pratica de infração penal por membro do Ministério Público ou da Magistratura. Vejamos:
Art. 41 da lei n.º 8.625/93. Constituem prerrogativas dos membros do Ministério Público, no exercício de sua função, além de outras previstas na Lei Orgânica:
(...)
II - não ser indiciado em inquérito policial, observado o disposto no parágrafo único deste artigo;
(...)
Parágrafo único. Quando no curso de investigação, houver indício da prática de infração penal por parte de membro do Ministério Público, a autoridade policial, civil ou militar remeterá, imediatamente, sob pena de responsabilidade, os respectivos autos ao Procurador-Geral de Justiça, a quem competirá dar prosseguimento à apuração.[13]
Art. 33 da lei complementar n.º 35/79. São prerrogativas do magistrado:
(...)
II - não ser preso senão por ordem escrita do Tribunal ou do órgão especial competente para o julgamento, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará imediata comunicação e apresentação do magistrado ao Presidente do Tribunal a que esteja vinculado (vetado);
III - ser recolhido a prisão especial, ou a sala especial de Estado-Maior, por ordem e à disposição do Tribunal ou do órgão especial competente, quando sujeito a prisão antes do julgamento final;
(...)
Parágrafo único - Quando, no curso de investigação, houver indício da prática de crime por parte do magistrado, a autoridade policial, civil ou militar, remeterá os respectivos autos ao Tribunal ou órgão especial competente para o julgamento, a fim de que prossiga na investigação.[14]
Quando no curso de determinada investigação conduzida pelo Delegado de Polícia surgirem indícios de que a infração tenha sido praticada por membro do Ministério Público, conforme o art. 41 da lei n.º 8.625/93, o responsável deverá remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça, que assumirá a investigação e será o responsável pelo seu prosseguir.
Igualmente, o parágrafo único do art. 33 do Estatuto da Magistratura refere que quando houver indícios da prática de uma infração penal por Magistrado, o Delegado de Polícia deverá remeter a investigação para o Tribunal competente para o julgamento desta autoridade.
Assim, por expressa determinação legal das respectivas leis das carreiras, cessa a possibilidade da Autoridade de Polícia que presidente o inquérito policial prosseguir nas investigações de membro do Ministério Público ou Magistrado. Por consequência, não se admitirá que o auto de prisão em flagrante seja lavrado pelo Delegado de Polícia.
Deste modo, concluímos que todos os atos de investigações em face de membros do Parquet e da Magistratura deverão ser realizados, respectivamente, pelo Procurador-Geral de Justiça e pelo Tribunal competente.
Foro privilegiado ou foro por prerrogativa de função, segundo Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar, nada mais é do que a ascendência para julgamento. Isto é, algumas autoridades, em razão da importância do cargo ou da função que desempenham, serão julgadas originariamente perante tribunal, em uma interface de tratamento entre os Poderes[15].
As regras de competência estão delineadas principalmente na Constituição Federal e em algumas legislações ordinárias, que deverão ser compatíveis com a Magna Carta. Veja alguns exemplos, sem qualquer pretensão de exaurimento: Presidente da República, Senadores e Deputados Federais, nas infrações penais comuns, possuem foro privilegiado no STF (art. 102, I, b da CRFB/88); os Governadores dos Estados e do DF, membros dos TCEs e membros dos Tribunais Regionais Federais, Eleitorais e do Trabalho, possuem foro no STJ (art. 105, I, a da CRFB/88); os Prefeitos Municipais serão julgados, nos crimes comuns, perante os Tribunais de Justiça do respectivo estado-membro (art. 29, X da CRFB/88); juízes federais e membros do Ministério Público da União (art. 108, I a da CRFB/88); dentre outros.
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
(...)
b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República;
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I - processar e julgar, originariamente:
a) nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais;
Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:
(...)
X - julgamento do Prefeito perante o Tribunal de Justiça; (Renumerado do inciso VIII, pela Emenda Constitucional nº 1, de 1992)
Art. 108. Compete aos Tribunais Regionais Federais:
I - processar e julgar, originariamente:
a) os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral;[16]
Uma análise superficial e imobilizada do texto constitucional poderia levar à conclusão de que a prerrogativa de função se restringiria à fase processual, sem repercussão na esfera investigativa. Entretanto, este não é o posicionamento da doutrina e da atual jurisprudência dos tribunais superiores, que entendem que, a depender da autoridade e do Tribunal competente, a prerrogativa funcional gerará reflexos diferentes nesta fase investigativa.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal já decidiu que as investigações de autoridades que possuam foro por prerrogativa na respectiva Corte só poderão iniciar ou prosseguir com a autorização deste Tribunal. A competência originária do STF por conta da prerrogativa de função é estendida, de forma implícita, à fase investigativa.
Segundo Márcio André Lopes Cavalcante:
“Se fosse permitido que tais autoridades pudessem ser investigadas pela autoridade policial ou pelo MP sem a supervisão do STF, haveria um enfraquecimento, uma mitigação, da garantia conferida pelo foro por prerrogativa de função. Em outras palavras, continuaria havendo riscos de perseguições políticas e instabilidade institucional se as autoridades pudessem ser investigadas sem o controle do STF.”[17]
Este entendimento é extraído de decisão paradigmática do Plenário do STF, no Inq 2411 QO, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, em 10/10/2007. No julgado, o ministro traz algumas premissas que devemos ser consideradas.
Inicialmente, diferencia-se o “inquérito policial em geral”, previsto nos art. 4º ao art. 23 do CPP, do “inquérito originário”, de competência originária do STF, que deve ser processado na forma do art. 102, I, b da CRFB/88 e dos art. 230 ao art. 234 do Regimento Interno do STF.
Portanto, nestes “inquéritos originários”, em que há a prerrogativa de função perante do STF, para que a investigação se inicie ou prossiga deve haver a autorização da Suprema Corte.
Apesar de existir certa polêmica, prevalece que os autos desta investigação tramitarão no respectivo Tribunal, que realizará uma verdadeira supervisão judicial das atividades investigativas.
Esta supervisão judicial não significa a observância dos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa nesta fase da persecução, que não perde seu caráter inquisitivo. A 2ª Turma do STF, no Inq 3387, em 15 de dezembro de 2015, já decidiu nesse sentido:
(...) 1. O Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que o inquérito policial é peça meramente informativa, não suscetível de contraditório. Precedentes.
2. Não cabe à defesa controlar, ex ante, a investigação, de modo a restringir os poderes instrutórios do relator do feito para deferir, desde logo, as diligências requeridas pelo Ministério Público que entender pertinentes e relevantes para o esclarecimento dos fatos.
3. Assim, carece de fundamento a pretensão de que seja concedida à investigada a oportunidade de se manifestar previamente sobre relatório de análise de informações bancárias e requerimento de diligências com base nele formulado pelo Ministério Público Federal.
4. A Súmula Vinculante nº 14 do Supremo Tribunal Federal assegura ao defensor legalmente constituído do investigado o direito de pleno acesso ao inquérito, desde que se trate de provas já produzidas e formalmente incorporadas ao procedimento investigatório, excluídas, consequentemente, as informações e providências investigatórias ainda em curso de execução e, por isso mesmo, não documentadas no próprio inquérito (HC nº 93.767, Segunda Turma, Relator o Ministro Celso de Mello, DJe de 1º/4/14).
5. Agravo regimental não provido.[18]
Desta forma, podemos concluir que quando surgirem indícios de infração penal cometida por autoridades com prerrogativa especial no Supremo Tribunal Federal, o órgão responsável pela investigação deverá remeter os autor ao Tribunal, onde irá tramitar sob tal supervisão judicial. Além disso, permanecerão todas as características da investigação, em especial a ausência do contraditório e da ampla defesa, típicos da fase processual.
Existem outras autoridades com foro privilegiado em outros órgãos, tais como o Superior Tribunal de Justiça, Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais. A manifestação judicial desses casos nem sempre chega ao âmbito do STF, uma vez que comumente não há afronta a disposições constitucionais e nem a competência desta Corte. Por isso, dar-se-á maior importância aos julgados de outros tribunais, em especial ao STJ.
O Ministro Ribeiro Dantas do STJ, no RHC 77.518 de 17 de março de 2017, decidiu pela desnecessidade de autorização do Tribunal em que o investigado detém a prerrogativa funcional para o prosseguir investigação criminal, seja ela conduzida pela Autoridade Policial, seja pelo Parquet:
“Nas hipóteses de haver previsão de foro por prerrogativa de função, seja por disposição do poder constituinte, do constituído reformador ou decorrente, pretende-se apenas que a autoridade, em razão da importância da função que exerce, seja processada e julgada perante foro mais restrito, formado por julgadores mais experientes, evitando-se pois persecuções penais infundadas. Da prerrogativa de função, contudo, não decorre qualquer condicionante à atuação do Ministério Público, ou da autoridade policial, no exercício do mister investigatório, sendo, em regra, despicienda a admissibilidade da investigação pelo Tribunal competente.”[19]
No mesmo sentido, em novembro de 2016, o Ministro do STJ Reynaldo Soares, no REsp 1563962, considerou que prescinde-se da autorização do Tribunal de Justiça do estado-membro para investigar autoridade com foro privativo deste Tribunal:
“No que concerne às investigações relativas a pessoas com foro por prerrogativa de função, tem-se que, embora possuam a prerrogativa de serem processados perante o Tribunal, a lei não excepciona a forma como se procederá à investigação, devendo ser aplicada, assim, a regra geral trazida no Código de Processo Penal, a qual, reitere-se, não requer prévia autorização do judiciário.”[20]
Logo, percebemos que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é alinhada à doutrina de que a investigação de autoridades com prerrogativa de foro não depende de quaisquer autorizações do órgão jurisdicional competente para processo. Ressaltamos que haverá tal necessidade, por óbvio, nos casos de medida sujeita a reserva de jurisdição, como a determinação de interceptação telefônica e decretação de medidas cautelares pessoais.
Não obstante, o Supremo Tribunal Federal, analisando a questão de investigação criminal em face de Prefeito Municipal na Questão de Ordem na Ação Penal n.º 912, de relatoria do Ministro Luiz Fux, e considerando que o investigado detém foro privilegiado estabelecido da CRFB/88 perante o Tribunal Regional Federal, para os casos de crimes federais, ressaltou na fundamentação de decisão que houve nulidade da investigação por usurpação da competência do referido Tribunal.
“(...) 5. Concessão de ordem de habeas corpus para determinar o imediato trancamento da ação penal quanto ao réu detentor de prerrogativa de foro junto a esta Corte, tendo em vista a ausência de justa causa e a inépcia da denúncia quanto à individualização da sua conduta na prática em tese, criminosa. Obiter dicta do entendimento do Relator, que acolhia, preliminarmente, a tese da nulidade da investigação quanto ao ex-Prefeito, por violação de competência do Tribunal Regional Federal para autorizar a instauração de inquérito envolvendo titular de prerrogativa de foro, à luz do disposto no art. 5º, LIII, c/c art. 29, X, da Constituição Federal. Neste sentido, concluía no sentido da aplicabilidade, in casu, do entendimento firmado no julgamento da AP 933-QO, Segunda Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 03/02/2016, e, por extensão, da jurisprudência firmada a partir do julgamento do Inq. 2411-QO, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 24/04/2008. (...)”[21]
Desta forma, analisando as decisões expostas, podemos concluir que há notável divergência no entendimento do STF e do STJ quanto à necessidade ou não de autorização e tramitação dos autos da investigação no Tribunal competente em razão da prerrogativa funcional do investigado.
4 CONCLUSÃO
Concluímos que, quando a prerrogativa funcional for no STF, a investigação deverá tramitar nesta Corte, conforme o próprio entendimento reiteradamente exposto. Nesse ponto, o STJ não tem qualquer ingerência, pois não detém de competência a dispor a respeito. Por outro lado, quando o foro privativo for em outros tribunais, o STF ainda entende pela imprescindibilidade de supervisão judicial (AP 912), ao passo que o STJ manifesta a desnecessidade de autorização e supervisão judicial (RHC 77.518 e REsp 1563962).
Esta necessidade ou não da autorização repercute, por desdobramento lógico no instituto do indiciamento que, apesar de ser privativo do Delegado de Polícia, nos casos de supervisão judicial das investigações, dependerá de autorização do respectivo tribunal, limitando a atuação da Autoridade Policial.
Com a devida vênia aos entendimentos jurisprudenciais e doutrinários, alinhamos nosso pensar de acordo com as decisões do STJ, uma vez que a persecução criminal no Brasil é claramente bifurcada em duas etapas, uma etapa preliminar de caráter investigativo e uma segunda de caráter processual, com todas as características e princípios que são inerentes a cada uma delas.
Ademais, vige no Brasil o sistema acusatório, e permitir a participação e a ingerência do judiciário em fases investigatórias implicaria em sérios riscos até mesmo à defesa do então acusado no processo, vez que o seu julgador já teria tido contado prévio com os elementos indiciários de sua responsabilidade criminal.
Seja o Delegado de Polícia, seja o membro do Ministério Público, quem conduzir as investigações deve ser plena autoridade e discricionariedade em tal mister, reservando-se ao Judiciário as medidas que realmente demandam sua manifestação, compatibilizando-se assim com a essência de uma verdadeiro sistema acusatório.
5 BIBLIOGRAFIA
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[2] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual pena – 11. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora Podivm, 2016.
[3] BRASIL. Constituição de República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 27 de maio de 2017.
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[5] LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de Processo Penal. Niterói: Impetus, 2013, p. 111.
[6] NUCCI, Guilherme de Souza: “Prática Forense Penal”, p. 33 – 8. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro : Forense, out./2014.
[7] LOPES JR., Aury: “Direito processual penal” – 11. ed. – São Paulo: Saraiva, 2014.
[8] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual pena – 11. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora Podivm, 2016.
[9] BRASIL. Lei n.º 12.830 de 20 de junho de 2013. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12830.htm>. Acesso em: 27 de maio de 2017.
[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 115015, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 27/08/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-179 DIVULG 11-09-2013 PUBLIC 12-09-2013. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000214383&base=baseAcordaos>. Acesso em: 27 de maio de 2017.
[11] AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado – 7ª ed. – Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: MÉTODO, 2015, p. 203.
[12] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual pena – 11. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora Podivm, 2016.
[13] BRASIL. Lei n.º 8.625 de 12 de fevereiro de 1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8625.htm>. Acesso em: 31 de maio de 2017.
[14] BRASIL. Lei Complementar n.º 25 de 14 de março de 1979. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp35.htm>. Acesso em: 31 de maio de 2017.
[15] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual pena – 11. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora Podivm, 2016.
[16] BRASIL. Constituição de República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 01 de junho de 2017.
[17] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Investigação criminal envolvendo autoridades com foro privativo no STF. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/093b60fd0557804c8ba0cbf1453da22f>. Acesso em: 01/06/2017
[18] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inq 3387 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 15/12/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-036 DIVULG 25-02-2016 PUBLIC 26-02-2016. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000303773&base=baseAcordaos> Acesso em: 02 de junho de 2017.
[19] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC 77.518/RJ, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 09/03/2017, DJe 17/03/2017. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=67855166&num_registro=201602779978&data=20170317&tipo=91&formato=HTML> Acesso em: 02 de junho de 2017.
[20] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1563962/RN, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 08/11/2016, DJe 16/11/2016. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=65519368&num_registro=201502640769&data=20161116&tipo=51&formato=HTML>.Acesso em: 02 de junho de 2017.
[21] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AP 912, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 07/03/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-101 DIVULG 15-05-2017 PUBLIC 16-05-2017. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=523213>. Acesso em: 02 de junho de 2017.
Advogado, formado pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MELLO, Bruno de Ugalde. As limitações do inquérito policial pela prerrogativa de foro do investigado em face da jurisprudência dos tribunais superiores Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jun 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50242/as-limitacoes-do-inquerito-policial-pela-prerrogativa-de-foro-do-investigado-em-face-da-jurisprudencia-dos-tribunais-superiores. Acesso em: 22 nov 2024.
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