SUMÁRIO: 1.Introdução. 2 Princípios Universais. 3 Processo e Princípios Processuais. 4 Conceito de Prova. 5 A Ação Controlada como meio de obtenção de Prova. 5.1 A Ação Controlada na Operação Carga Pesada. 5.2 A Ação Controlada na Operação Titanic. 6 A Reforma da Lei 12.850, de 02 de Agosto de 2013. 7 Conclusão. 8 Referências.
A modernidade tem trazido a lume o amadurecimento e aperfeiçoamento dos métodos de investigação criminal, em decorrência do surgimento e crescimento de verdadeiras organizações criminosas em nossa sociedade, as quais, por seus vários e escusos métodos de cometimento do delito, trazem grandes dificuldades para a persecução criminal e para o cumprimento da legislação penal.
Ao iniciarmos os estudos sobre as últimas inovações legislativas no Brasil que tratam da conceituação e definição das organizações criminosas, e, ainda, sobre possíveis métodos de investigação policial para o combate a tais organizações por parte do Estado, vemos que, apesar da tentativa do Estado em dar uma efetiva resposta à sociedade, as novas leis ainda carecem de aperfeiçoamento, assim como as instituições também carecem de aperfeiçoamento dos meios legais para a investigação e combate ao crime organizado.
Neste trabalho, aprofundaremos o estudo das leis brasileiras que dispuseram e que atualmente dispõe sobre a repressão ao crime organizado (leis 9.034/1995 e 12.850/2013), bem como sobre a doutrina atualizada que discorre sobre a legislação e meios de investigação e produção da prova, em especial a Ação Controlada como um dos principais meios de produção de prova utilizados no combate ao crime organizado.
Analisaremos ainda alguns dos principais princípios penais da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e da Declaração Universal dos Direitos do Homem, os quais devem ser aplicados à legislação penal brasileira, tanto na fase de produção das leis penais e processuais penais, quanto na sua interpretação e aplicação.
Através da pesquisa tentaremos demonstrar se a Ação Controlada é ou não compatível com os princípios constitucionais e supralegais estabelecidos pelas Convenções Internacionais e pela Constituição Federal, bem como se a legislação atual é ou não compatível com o Estado Democrático de Direito.
A Declaração Universal de Direitos Humanos foi adotada e proclamada pela Assembléia das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, e assinada pelo Brasil na mesma data[1].
Esse documento surgiu como base para a luta contra a discriminação, contra a desigualdade e contra os atos que pudessem ferir a dignidade das pessoas, como atos decorrentes da primeira e segurança Guerra Mundiais que violaram vários direitos humanos, e para que diversas Nações do mundo passassem a estabelecer leis visando o respeito às liberdades e garantias fundamentais de cada indivíduo.
Dentre os princípios fundamentais instituídos pela Declaração, podemos extrair os seguintes princípios penais aplicáveis ao instituto da Ação Controlada:
1- Princípio da Igualdade, que foi inserido tanto pelo preâmbulo da Carta quanto em seus arts. 1º e 7º.
2- Princípio da imparcialidade, pelo qual a pessoa somente deverá ser julgada por um tribunal competente e com imparcialidade da autoridade judiciária, sendo vedado, então, a existência de tribunal de exceção (art. 10).
3- Princípio da Presunção de Inocência, pelo qual a pessoa somente poderia ser considerada culpada após sua culpabilidade ser provada de acordo com a Lei (art. 11).
4- Princípio da Ampla Defesa e do contraditório, pelo qual o acusado deve ter assegurado a ele todas as garantias necessárias a sua defesa (art. 11).
5- Princípio da Legalidade, devendo haver prévia previsão legal de que o ato praticado pelo indivíduo deva ser considerado um delito, bem como deve haver prévia previsão da pena aplicável ao delito (art. 11.2).
Assim como ocorreu na Declaração Universal dos Direitos Humanos, vários princípios penais foram, também, enumerados e adotados pela Convenção Americana de Direitos Humanos e pela Constituição Federal de 1988, em especial os direitos fundamentais e garantias individuais instituídas pelo art. 5º, da Constituição Federal brasileira.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em 22 de novembro de 1969, baseia-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi ratificada e incorporada no sistema jurídico brasileiro através do Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992.
É importante ressaltar que, de acordo com a jurisprudência da Suprema Corte brasileira, a Convenção Americana de Direitos Humanos possui status supralegal, conforme entendimento adotado após julgamento do RE nº 466.343-STF[2]. Em seu voto no RE 466.343, o Exmo. Ministro Gilmar Mendes esclareceu que “as legislações mais avançadas em matéria de direitos humanos proíbem expressamente qualquer tipo de prisão civil decorrente do descumprimento de obrigações contratuais”, isto é, em respeito aos direitos humanos estatuídos desde a Declaração dos Direitos Humanos vários Países passaram a construir leis que respeitassem a dignidade da pessoa humana e seus direitos individuais.
A questão mais importante e que foi amplamente debatida no voto do Exmo. Ministro Gilmar Mendes e demais Ministros do STF e que possui forte ligação com a Ação Controlada é a relação hierárquico-normativa dos Tratados Internacionais, nossas leis infraconstitucionais e a Constituição brasileira, principalmente dos Tratados que versem sobre Direitos Humanos. Essa é a questão chave para uma análise da legalidade ou não do instituto da Ação Controlada como está preconizada na atual Lei nº 12.850/2013.
Como cita expressamente o art. 5º, §2, da Constituição Federal, os direitos e garantias individuais não excluem os direitos decorrentes de Tratados de Direitos Humanos de que o Brasil se torne parte. Assim, por força da permissão constitucional, novos direitos e garantias individuais teriam força de norma constitucional ao serem incorporados em nosso ordenamento jurídico, desde que observados os requisitos previstos no art. 5º, §3º, da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional 45/2004, conhecida como Emenda da Reforma do Judiciário. Como o Pacto de São José da Costa Rica foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro antes de tal redação constitucional da Emenda 45/2004, os Ministros do STF acompanharam o voto do Exmo. Ministro Gilmar Mendes e atribuíram ao Pacto de São José da Costa Rica o status de norma supralegal, ou seja, acima das leis infraconstitucionais e abaixo da Constituição Federal.
Dessa forma, dispositivos legais previstos nos atuais códigos penais e processuais penais, bem como em legislações penais especiais, como a Lei nº 12.850/13, não podem colidir com os direitos e princípios estabelecidos pela norma supralegal.
Dentre os principais direitos e princípios, podemos extrair da Convenção Interamericana de Direitos Humanos os seguintes princípios, aplicáveis ao instituto da Ação Controlada:
1- Princípio da legalidade, contido expressamente no art. 5º, XXXIV, da C.F., e incorporado na Convenção em seu art. 7º, item 2.
2- Princípio da ampla defesa e contraditório, devendo o Estado e a lei infraconstitucional permitir à defesa a inquirição de testemunhas, de ter o tempo mínimo e meios adequados para a preparação de sua defesa.
Os princípios considerados universais da legalidade, da ampla defesa, do contraditório, da imparcialidade, são princípios que devem reger todo o ordenamento jurídico brasileiro a partir da Carta Magna de 1988 e da ratificação do Pacto de São José da Costa Rica, e, por isso, desde a edição da Lei nº 12.850/13 deveria ter sido elencado critérios mais objetivos e rigorosos para a autorização da Ação Controlada em uma determinada investigação criminal, de forma contrária ao subjetivismo e discricionariedade judicial, bem como meios que permitissem ao investigado a sua ampla defesa e o contraditório, ou seja, deveria conter critérios legais, em respeito ao princípio da legalidade, que permitissem ao investigado o tempo mínimo e os meios adequados para a preparação de sua defesa, ainda que de forma diferida, pois a Lei nº 12.850/2013 é norma hierarquicamente inferior à Convenção Americana de Direitos Humanos.
3 Processo e Princípios Processuais
Com os avanços sociais e a modernidade, o Processo deve, conforme lecionado pelo Prof. Rosemiro Pereira Leal:
“garantir a todos indistintamente provimentos jurisdicionais que, passíveis de controle pelo Processo, não estejam centrados na pretoriana subjetividade dos julgadores ou no corporativismo do Judiciário, na autocracia do Estado ou no interesse dos agrupamentos hegemônicos”. (Teoria Geral do Processo, 2014, p. 17).
O Processo surgiu em tempos atuais com a conquista histórico-teórica das garantias e direitos fundamentais constitucionalizados, ainda que de forma debilitada pelo desequilíbrio jurídico e sócio-econômico das camadas sociais (LEAL, 2014, P. 22).
Os princípios constitucionais e garantias fundamentais do indivíduo devem nortear todo o processo, pois a sociedade contemporânea não aceita mais o subjetivismo e a discricionariedade do julgador no exercício da jurisdição.
Dentre as teorias do processo, uma das mais importantes que merece ressalva é a Teoria de Processo como Procedimento em Contraditório de Fazzalari, que entende o contraditório como “posição de simétrica paridade entre os possíveis afetados pelo provimento final, ou seja, a construção participada da decisão” (BARROS; MACHADO, 2011, p. 21).
Os princípios constitucionais do contraditório, da isonomia ou igualdade e da ampla defesa e devem permear todo o processo, em absoluto respeito ao modelo de processo constitucionalizado.
Podemos definir o contraditório como sendo o direito fundamental das partes em poder ter a garantia de uma efetiva participação no processo, em simétrica paridade, não bastando apenas dizer ou contradizer, mas de ter acesso a todas as provas produzidas no processo e poder participar efetivamente da construção e análise das provas em um espaço procedimentalizado, as quais servirão de base para a decisão que afetará todos os envolvidos no processo. Como prevê a Declaração Universal de Direitos Humanos em seu art. 11 e o Pacto de São José da Costa Rica, o acusado em geral deve ter o tempo mínimo necessário e a garantia dos meios necessários para preparação de sua defesa.
Citando a Teoria de Fazzalari como um importante papel na democratização do processo penal, o Prof. Aury Lopes Jr. leciona que:
A sentença, como provimento final, deve ser construída em contraditório e por ele legitimada. Não mais concebida como (simples) ato de poder e dever, a decisão deve brotar do contraditório real, da efetiva e igualitária participação das partes no processo (LOPES JR, 2014, P. 84).
O Processo deve ser visto como uma garantia do indivíduo, pois, “tomando como base a noção de processo como garantia, o contraditório deve ser compreendido como o espaço procedimentalizado para garantia da participação dos afetados na construção do provimento” (BARROS; MACHADO, 2011, p.23).
Atualmente a Ação Controlada não permite à parte investigada o amplo acesso e nem a participação na produção de provas que servirão para a construção da decisão final, ainda que de forma diferida, pois não há simétrica paridade entre as partes e muito menos acesso às informações produzidas durante as investigações que estiveram com sigilo judicial decretado.
A garantia de participação mediante um procedimento penal constitucionalizado deve ocorrer também segundo o princípio constitucional da Isonomia (ou da Igualdade), ou seja, deve haver um equilíbrio de forças e igual tratamento entre as partes do processo, para que aqueles que serão afetados pela decisão final tenham tido todos os meios adequados e necessários para a defesa de seus interesses e igual oportunidade de participação no procedimento.
Nesse sentido, Cintra, Grinover e Dinarmarco disciplinam que: “As partes e os procuradores devem merecer tratamento igualitário, para que tenham as mesmas oportunidades de fazer valer em juízo as suas razões” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2014, P. 72).
A ampla defesa significa a garantia constitucional de que as partes podem e devem atuar no processo em simétrica paridade e com todos os meios legais disponíveis, devendo a jurisdição promover a construção participada e igualitária das partes na construção de todo o processo e de produção de provas, em um amplo debate, de forma a construir de forma participada o provimento final.
A ampla defesa pode subdividir-se em autodefesa e em defesa técnica. Ambas são consideradas indispensáveis no processo penal, mas apenas a autodefesa “é um direito disponível pelo réu, que pode optar pelo direito ao silêncio” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2014, P. 75).
A defesa técnica deve ser exercida pelo profissional com conhecimentos do Direito, sendo, no Brasil, o Advogado de Defesa devidamente inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil.
Nesse sentido, conforme disciplinado por Aury Lopes Jr.:
“a defesa técnica é uma exigência da sociedade, porque o imputado pode, a seu critério, defender-se pouco ou mesmo não se defender, mas isso não exclui o interesse da coletividade de uma verificação negativa no caso do delito não constituir uma fonte de responsabilidade penal” (LOPES JR, 2014, P. 225).
Outro importante princípio processual que deve permear o processo é o da fundamentação das decisões judiciais. Essa fundamentação, prevista no art. 93, inciso IX, da C.F., não pode ser simplesmente um produto do Juiz, mas sim “produto de um esforço reconstrutivo do caso concreto pelas partes afetadas” (BARROS; MACHADO, 2011, P. 23). Por isso é que “a fundamentação da decisão é indissociável do contraditório”, pois a participação somente será garantida de forma efetiva no processo se a “decisão apresentar em sua fundamentação a argumentação dos respectivos afetados” (BARROS; MACHADO, 2011, P. 23). Não basta apenas citar a argumentação das partes, mas, sim, analisar de forma séria e concreta cada argumentação trazida pelas partes no processo.
Além dos princípios processuais citados, deve ser ressaltado o princípio da imparcialidade, pois a imparcialidade também deve reger todo o procedimento penal. Segundo Flaviane Barros e Machado:
“a imparcialidade se garante pelo afastamento das hipóteses de impedimento e suspeição, bem como, e principalmente, pela exigência do esforço argumentativo das partes, que será a base para se construir a decisão presente na fundamentação”(BARROS; MACHADO, 2011, P. 23).
Pelo princípio da imparcialidade, o Juiz não pode ter vínculos objetivos com a causa ou com as partes, devendo colocar-se como terceiro imparcial (BARROS; MACHADO, 2011, p. 25).
Nesse sentido, o Prof. Aury Lopes Jr. acentua que:
“a gestão da prova deve estar nas mãos das partes (mais especificamente, a carga probatória está inteiramente nas mãos do acusador), assegurando-se que o juiz não terá iniciativa probatória, mantendo-se assim suprapartes e preservando sua imparcialidade (LOPES JR.,2014, P. 214).
Os princípios da imparcialidade, do contraditório, da isonomia ou igualdade, da ampla defesa, são indissociáveis, pois, “quando uma decisão judicial permite uma abertura para a discricionariedade e para o subjetivismo do juiz afeta-se não só o contraditório, a fundamentação da decisão, mas a imparcialidade do juiz” (BARROS; MACHADO, 2011, p. 26).
Na garantia de um processo democrático e com a observância e a aplicação de todos os principais princípios processuais elencados neste trabalho, merece ser ressaltado o entendimento do Prof. Rosemiro Pereira Leal, o qual leciona que:
“o Processo não pode ser um instrumento da jurisdição, como afirmam Cintra, Grinover e Dinamarco, de que a “a jurisdição se exerce através do processo”, mas, ao contrário da jurisdição, o Processo define-se hoje em garantias principiológicas pela reserva legal de direitos antecipadamente assegurados nas Leis Fundamentais” (LEAL, 2014, p.23).
Para ele (Leal), a jurisdição deve estar subordinada ao dever de julgar e decidir segundo os princípios fundamentais do Processo, e não segundo o arbítrio do julgador.
A importância da legislação especial penal que regula a Ação Controlada não pode admitir o arbítrio do julgador e muito menos a iniciativa probatória ou iniciativa judicial de determinar atos investigatórios. Não pode haver folga de conduta subjetiva ou flexibilização de vontade, seja pelo arbítrio ou discricionariedade no exercício da função jurisdicional, pois se houver há a quebra da garantia constitucional da simétrica paridade dos sujeitos do processo (LEAL, 2014, p. 23).
4 Conceito de Prova
A prova é “o instrumento por meio do qual se forma a convicção do juiz a respeito da ocorrência ou inocorrência dos fatos controvertidos no processo” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2014, P. 402).
A doutrina de Eugênio Pacelli estabelece o conceito de prova como uma teoria geral da prova. Segundo o autor: “a prova judiciária tem um objetivo claramente definido: a reconstrução dos fatos investigados no processo, buscando a maior coincidência possível com a realidade histórica, isto é, com a verdade dos fatos” (PACELLI, 2014, P.239). Para o autor, quaisquer que forem os meios ou métodos de prova adotados para se aproximar o possível da realidade dos fatos investigados, eles possuem um limite previamente definido pela Constituição Federal, que é o respeito aos direitos e às garantias individuais (PACELLI, 2014, P. 329).
Conforme leciona o Prof. Aury Lopes, a prova “é erigida a espinha dorsal do processo penal, estruturando e fundando o sistema a partir de dois princípios informadores: Princípio dispositivo e Princípio inquisitivo” (LOPES JR., 2014, P. 553). Segundo o autor, o princípio dispositivo funda o sistema acusatório e coloca a gestão da prova nas mãos das partes, e o princípio inquisitivo coloca a gestão da prova nas mãos do julgador (LOPES JR., 2014, P. 554).
A gestão da prova é o que determina se o sistema processual penal adotado no Brasil é o modelo acusatório ou modelo inquisitório. Apesar do art. 129, I, da C.F., estabelecer que cabe ao Ministério Público promover a ação penal pública, vemos que a legislação penal diverge da norma constitucional ao permitir a iniciativa probatória ao Juiz enquanto órgão julgador e não permitir às partes, em especial a defesa, a produção de provas que sejam do interesse da defesa.
Podemos afirmar com base na atual legislação penal adotou o princípio inquisitivo em razão da gestão da prova não estar nas mãos das partes, pois, conforme prevê expressamente o art. 156, do CPP, é dada iniciativa probatória ao Juiz, e, conforme prevê a Lei º 12.850/2013 é permitida a produção de provas durante a Ação Controlada somente ao Ministério Público e ao Órgão Policial encarregado da investigação. Mesmo que de forma diferida, não é permitida à defesa a produção de provas nos mesmos moldes que é permitida à acusação, contrariando a paridade de armas no processo e os princípios da isonomia e da ampla defesa.
Haverá sempre uma disparidade de armas caso o Juiz e a Acusação passe a promover e a determinar a realização de meios de prova, como está permitido pela atual lei que regula a Ação Controlada, sem a igual oportunidade de produção de provas que deveria ser destinada à defesa, em simétrica paridade.
Desta forma, os princípios processuais penais também são aplicáveis quando definimos a Prova no processo penal e, como vimos, não são plenamente aplicados na Lei 12.850/2013.
5 A Ação Controlada como Meio de Obtenção de Prova
A Ação Controlada está definida, atualmente, pela Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013[3]. Conforme prevê seu art. 3º, inciso III, a ação controlada é um meio de obtenção de prova, assim como a colaboração premiada, interceptação telefônica, e outros meios.
Nesse sentido, os autores Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar disciplinam que os meios de produção de prova também podem ser chamados de “meios de investigação de prova” (TÁVORA; ALENCAR, 2016, P. 615).
Quanto a esses meios de investigação de prova há alguns considerados especiais, como a Ação Controlada, prevista na Lei 12.850/2013, art. 3º, letra “c”. Segundo os citados autores:
“Técnicas especiais de investigação: são instrumentos distintos daqueles tradicionais (prova documental ou oral), consistentes em estratégias que visam melhor apurar crimes graves, com a otimização dos resultados através de criatividade investigativa que funcione como meio de obtenção de prova. As técnicas especiais de investigação são caracterizadas por dois elementos: o sigilo e a dissimulação”. (TÁVORA; ALENCAR, 2016, P.615).
Marcelo Mendroni define a Ação Controlada como sendo uma medida cautelar que “permita viabilizar a obtenção de indícios, elementos de provas em melhor qualidade e quantidade” (MENDRONI, 2014, P. 70), especificamente para casos que envolvem criminalidade organizada, e “pode ser deferida, naturalmente, sempre que houver fundada suspeita – assim fundamentada pelo requerente e pelo MP – da criminalidade organizada – ou a ela vinculada” (MENDRONI, 2014, P. 70).
Além disso, a Ação Controlada somente pode ser aplicada com a observação e acompanhamento constante, para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz à formação de provas e obtenção de informações (art. 8º, caput, da Lei 12.850/13).
No interesse da persecução penal, há, mediante o controle judicial, o retardamento da ação policial de busca e prisão de envolvidos já identificados na investigação para que se possa obter novas provas e identificar novos envolvidos com os delitos cometidos pela organização criminosa, devendo o Ministério Público ter “a palavra final acerca do momento ideal para que a medida se concretize” (MENDRONI, 2014, P. 70).
A nova lei determina em seu art. 8º, §1º, que “o retardamento da intervenção policial ou administrativa será previamente comunicado ao juiz competente que, se for o caso, estabelecerá os seus limites e comunicará ao MP”.
Na obra “Comentários à Lei de Combate ao Crime Organizado”, de Marcelo Mendroni, ele leciona que cabe ao Juiz interpretar se o pedido da Ação Controlada ultrapassa ou não os limites do aceitável, estipulando controles, tanto no aspecto temporal quanto no aspecto formal da ação, fixando as medidas investigativas aplicáveis (MENDRONI, 2014, P. 70).
Quanto ao ato de “fixar medidas investigativas aplicáveis” consideramos que o autor ultrapassou os limites da razoabilidade ao defender tal medida na Ação Controlada, pois o Juiz, em respeito ao princípio da imparcialidade e ao princípio acusatório nunca deveria tomar parte do processo como se fosse órgão acusador ou investigador, de forma a preservar a paridade de armas também durante a produção de provas na fase da Ação Controlada.
5.1 A Ação Controlada na Operação Carga Pesada
A Operação Carga Pesada teve início em meados de Janeiro do ano 2000, após ter sido constatado em diligências policiais a existência de um modus operandi bem diferente, em especial atos que visavam, dentre outros crimes, o crime de sonegação de tributos por meio de emissão de Notas Fiscais frias, caracterizando, em tese, crimes de sonegação fiscal, formação de quadrilha e crimes contra o sistema financeiro nacional.
As equipes de investigação detectaram que suspeitos buscavam a emissão de notas frias para acobertar crimes como o delito de roubo de cargas, de forma interestadual, dando início a uma nova investigação policial junto a Justiça Federal do Estado do Espírito Santo.
Posteriormente, ficou mais evidenciado que se tratava de uma organização criminosa, bem estruturada e com divisão de tarefas entre os vários membros do grupo.
A legislação que tratava de organização criminosa e era aplicável à época dos fatos era a Lei nº 9.034/95, antes de ser revogada pela atual lei nº 12.850/2013.
Conforme previa em seu art. 1º, a lei disciplinava os meios de prova e os meios investigatórios dos crimes praticados por quadrilha ou bando, organizações ou associações criminosas.
O art. 2º, II, da Lei 9.034/95 já previa a Ação Controlada como uma forma de retardar a ação policial, quando da apuração de crimes praticados por organizações criminosas.
Assim, com base em tal premissa, foi autorizada pelo Juízo Federal a adoção da Ação Controlada e a Interceptação Telefônica dos envolvidos para a apuração dos crimes de sonegação, de roubo de cargas e outros crimes conexos apurados pela investigação policial.
Durante todo o ano de 2000 foram realizadas várias interceptações telefônicas de diversos alvos, incluindo alvos dos Estados do Espírito Santo, São Paulo e Bahia, além de várias diligências de campana, gravação de imagens e outras medidas investigativas.
De todo modo, o bem jurídico principal e alvo da organização criminosa era o patrimônio (público ou privado), bens e mercadorias pertencentes a empresas e terceiros que eram objeto de furto e roubo pela organização criminosa, além dos crimes conexos.
Todas as diligências tinham como objetivo principal identificar os líderes da organização criminosa, o modus operandi, a rede de receptadores, a identificação e individualização da conduta criminosa praticada por cada integrante da organização.
Uma das maiores dificuldades da equipe de investigação foi identificar o modus operandi dos integrantes da organização, seu próprio vocabulário, como significado de expressões próprias de quem lida diariamente com veículos de carga, notas frias, caminhões e outros veículos.
Saber, por exemplo, se a carga roubada é “dada” ou “tomada”, o que significava “1313”, “truck”, o trabalho de “formiguinha” dado a aquele que era encarregado da distribuição em pequenos lotes de mercadorias roubadas a cada receptador, a identificação de cada depósito, quem eram os alvos principais, a utilização de empresa de fachada para emissão de Notas Fiscais frias para acobertar o trânsito das mercadorias roubadas, etc., tudo que demandava tempo de acompanhamento e investigação, algo somente possível pela aplicação da Ação Controlada.
O principal problema era que, como o delito envolvia organização criminosa armada, que também agia com violência e grave ameaça na prática do roubo de cargas era praticamente impossível prever a inocorrência de crime mais grave durante a investigação e o retardamento da ação policial, como um possível homicídio praticado por integrantes da organização criminosa.
Tal fato pode ser constatado pela interceptação telefônica de um dos investigados durante a operação, o qual era conhecido pelo apelido de “Rildo”, o qual gabou-se de ter matado e queimado com o uso de pneus um dos integrantes da quadrilha, fato que nunca pode ser comprovado posteriormente, pois tal “Rildo” não confirmou, logicamente, que praticara tal delito, sendo, provavelmente, uma forma de demonstrar aos líderes da organização que possuía a periculosidade necessária para permanecer na organização criminosa.
Este era um dos maiores erros da Lei 9.034/95, a qual não estabelecia quaisquer limites ou controles à ação controlada, havendo apenas prazos para o encerramento da instrução criminal, mas não da fase pré-processual da investigação policial.
A periculosidade dos agentes que integram organizações criminosas como a que foi identificada pela “Operação Carga Pesada” também foi constatada no Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito “Roubo de Cargas” 2000/2001/2002 (Congresso Nacional, 2003, págs. 427- 438).
5.2 A Ação Controlada na Operação Titanic
A Operação Titanic teve início em meados de Fevereiro de 2007, quando foi iniciada investigação preliminar de importação fraudulenta de Jet Ski e outros veículos aquáticos, registrados na Capitania dos Portos de Vitória/ES.
Após análise das diligências preliminares, constatou-se que, além de Jet Ski, os envolvidos atuavam na importação de veículos de alto luxo, como Ferrari, Lamborghini, e outros.
O principal alvo da investigação, Sr. Adriano Scopel, utilizava de sua empresa Tag Importação, criada no Estado de Rondônia, para a realização da operação de importação, pois possuía cerca de 85% de benefícios fiscais em operações aduaneiras realizadas por intermédio de sua empresa naquele Estado. Entretanto, toda a importação ocorria, na realidade, através do Porto de Vitória/ES.
O subfaturamento dos veículos de alto luxo teria causado um prejuízo de cerca de 7 (sete) milhões de Reais aos cofres públicos, somente no ano de 2007.
A Ação Controlada, aplicada por intermédio da Lei nº 9.034/95, teve que ser extremamente utilizada nas investigações em razão da complexidade do modus operandi da organização criminosa, pois esta utilizava de amplo conhecimento técnico na área de comércio internacional, despacho aduaneiro, envolvimento de agentes públicos, além dos benefícios fiscais no Estado de Rondônia, fatos que demandaram tempo e execução de várias diligências para apuração dos delitos, além do auxílio de equipes de investigação formada por Auditores da Receita Federal, mediante autorização judicial.
Em razão da complexidade dos atos delituosos praticados pela organização criminosa identificada na “Operação Titanic”, as investigações perduraram por todo o ano de 2007, vindo a execução e término da ação controlada somente em Abril de 2008, com a deflagração da operação e prisão de todos os envolvidos.
Consideramos de extrema importância a adoção da Ação Controlada em investigação de crimes de corrupção, contra o sistema tributário e financeiro nacional, em razão da ausência de periculosidade, de violência ou grave ameaça por parte dos integrantes da organização criminosa no cometimento dos delitos e devido à alta complexidade do modus operandi, diferentemente do que ocorreu na “Operação Carga Pesada”.
Podemos ver claramente que, pela análise das investigações realizadas nas duas diferentes Operações Policiais a cargo da Polícia Federal, a “Operação Carga Pesada” e a “Operação Titanic”, a delimitação do objeto da investigação em relação aos crimes praticados é que deve ensejar uma maior ou menor restrição ao uso da Ação Controlada como meio de produção da prova.
Riscos inerentes e decorrentes da ação criminosa cometida por grupos armados deveriam ter a ação controlada concedida e aplicada de forma extremamente restrita, para tão somente identificar os líderes da organização e, assim, desencadear, desde logo, a ação policial, de modo a evitar maiores danos à sociedade em decorrência do retardamento da ação policial.
6 A Reforma da Lei nº 12.850, de 02 de Agosto de 2013.
Ao estudarmos a nova Lei nº 12.850/13, vimos que a Ação Controlada como meio de produção da prova não possui limitação legal, tendo sido deixado ao Estado-Juiz e ao órgão acusador a ampla discricionariedade de quais devem ser os limites que devem ser aplicados na ação controlada quando da investigação realizada pelos órgãos responsáveis pela repressão ao Crime Organizado.
Podemos constatar que a gestão da prova, assim como está definida pela lei, está mantida nas mãos da figura do Juiz-Investigador e em um procedimento penal mais que inquisitivo, que busca a verdade real em detrimento das garantias constitucionais da pessoa que é investigada, a qual fica à mercê do que pode ou não ser feito durante a Ação Controlada de acordo com a discricionariedade do Juiz e do Ministério Público.
Deve haver, na possível reforma da Lei que regula a Ação Controlada, um meio de estabelecer o direito e garantia à defesa de produção de provas, ainda que de forma diferida, em ampla e simétrica paridade e com os meios legais a ela disponíveis, de forma a garantir a eficácia dos princípios processuais da ampla defesa, do contraditório, da isonomia e da legalidade.
Em razão da clara diferença que há em cada bem jurídico tutelado e alvo das Operações Carga Pesada e Titanic, torna-se necessário que a Lei passe a fixar limites objetivos ao tempo de duração da autorização judicial relativa a Ação Controlada, de forma a considerar o fato de que as investigações preliminares são atos de Cognição Sumária, ou seja, não devem estar rodeadas de toda a produção de prova que deveria ser realizada sob o crivo do contraditório e da ampla defesa e na fase da instrução processual, não podendo a ação controlada estender-se por prazos intermináveis com o argumento de que é necessária a produção de provas robustas, pois na fase de Cognição Sumária bastaria a coleta de provas e dados suficientes para delimitar a autoria e a materialidade dos delitos praticados pela organização criminosa, bem como seus respectivos líderes.
Sem os limites a serem estabelecidos pela própria Lei, em respeito ao Princípio da Legalidade, possibilita-se o surgimento de argumentos de que a Ação Controlada pode ser deferida pelo simples argumento de que há “fundada suspeita” de que há o envolvimento de criminalidade organizada (MENDRONI, 2014, P. 70), e enquanto o Ministério Público entender necessário até dar a palavra final para o encerramento da medida.
Nossa Constituição Federal adotou, de acordo com o art. 129, I, o Sistema Acusatório, e, portanto, não poderia a nova Lei 12.850/13 instituir que, em relação ao deferimento da Ação Controlada, cabe ao Juiz fixar medidas investigativas (MENDRONI, 2014, P.70), como se fosse um Juiz-Investigador, em total ausência de simétrica paridade, pois ao Juiz compete a garantia dos direitos fundamentais, de forma a limitar abusos na investigação, e não assumir a função dos órgãos de investigação ou do órgão acusador, contrariando totalmente o princípio constitucional e supralegal da imparcialidade, imprescindível para o justo julgamento do procedimento penal, conforme prevê o princípio da imparcialidade instituído pelo art. 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Nesse mesmo sentido, Eugênio Pacelli leciona que “o juiz criminal não é e não pode ser considerado protagonista das operações...” (PACELLI, 2014, P. 836), e, em consequência, não pode ser um Juiz-Investigador, e muito menos ter, o Juiz, iniciativa investigatória nos crimes praticados por organizações criminosas, pois, vale a pena repetir que o Juiz, ao autorizar a Ação Controlada, ou uma interceptação telefônica, deve agir de modo a proteger os direitos fundamentais e as normas constitucionais (PACELLI, 2012, p. 139), bem como os princípios processuais aplicáveis, e não agir no interesse da persecução penal.
7 Conclusão
A moderna concepção do que é Processo como procedimento penal em contraditório ressalta que o processo deve atender o direito ao contraditório entre as partes, em simétrica paridade, considerando o processo como procedimento em ampla defesa e contraditório e como um direito e garantia constitucional impostergável do cidadão.
O processo penal não pode servir como um instrumento da jurisdição, com Juízes agindo como Guardiães da Lei e com objetivos de fazer justiça social em critérios não esclarecidos na Lei por supostas probidade e seriedade de operadores virtuosos do Direito.
Desde a elaboração legislativa da Lei nº 12.850/2013 até sua aplicação no Processo Penal deveria ter sido observado todos os princípios básicos que regem o processo constitucional, como o contraditório, a ampla defesa, o sistema acusatório, o princípio da legalidade, da isonomia e da imparcialidade.
É necessária a adequação da Lei nº 12.850/2013 ao sistema penal acusatório e aos citados princípios processuais, de modo a efetivar os direitos e garantias individuais previstos não só na nossa Constituição, mas também na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção Americana de Direitos Humanos.
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[3] BRASIL. Lei 12.850, de 02 de Agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei no 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm. Consulta realizada em 13 de junho de 2016.
Agente de Polícia Federal. Bacharel em Direito pela Faculdade Estácio de Sá. Possui mais de 12 anos de experiência profissional na área de fiscalização, controle e estudo da legislação especial de segurança privada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Altamiro Modesto da Silva. Limites aos meios de produção de prova: a ação controlada como meio de produção de prova Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jun 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50350/limites-aos-meios-de-producao-de-prova-a-acao-controlada-como-meio-de-producao-de-prova. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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