Resumo: Esse artigo visa a analisar a possibilidade de se reconhecer a ocorrência do fenômeno da litispendência entre o processo de homologação de sentença estrangeira em curso perante o STJ e um outro processo sobre a mesma questão fática em curso perante um juiz brasileiro.
Sumário: 1.Introdução 1. Conceito de litispendência. 2.Posição Doutrinária e Disciplina legal 4.Bibliografia
1.Introdução
Com a globalização, tornou-se mais frequente a situação de ser preciso que uma decisão judicial prolatada por um juiz ou tribunal estrangeiro produza efeitos no território nacional.
Essa eficácia não ocorre de forma automática sendo necessário um prévio processo de homologação da sentença estrangeira, atualmente da competência do Superior Tribunal de Justiça, por força do art. 105, i, da CF.
Questão interessante existe quando são ajuizados simultaneamente o processo de homologação de sentença estrangeira perante o STJ e uma outra demanda perante um juiz brasileiro sobre a mesma questão fática. Seria possível, com base no art. o art. 337, § 2º, do CPC, reconhecer a ocorrência de litispendência?
1. Conceito de litispendência.
Duas causas são idênticas quando seus três elementos identificadores são iguais, isto é, “os elementos ou dados que servem para individuar uma ação no cotejo com outra”. [1] São eles: as partes, o pedido e a causa de pedir, conforme prevê o art. 337, § 2º, do CPC.
As partes são os sujeitos da relação processual, ou seja, o autor e o réu,[2] devem ser as mesmas ou atuarem na mesma qualidade, como ocorre no caso de sucessão processual, ocupando o sucessor a mesma posição jurídica do sucedido.[3]
Já o pedido equivale à lide, ao mérito a ser decidido pela sentença. No aspecto processual, é também o pedido “o tipo de prestação invocada (condenação, execução, declaração, cautela, etc.). Para que uma causa seja idêntica à outra, requer-se a identidade da pretensão, tanto de direito material, como de direito processual.”. [4]
Por fim, a causa de pedir consiste no fato jurídico que fundamenta a pretensão O elemento fático é a causa de pedir remota e a sua repercussão jurídica, a causa de pedir próxima.[5] [6]
Quando se verifica entre dois processos brasileiros a identidade dos elementos da demanda, ocorre o fenômeno da litispendência. Nesse caso, deve o segundo processo ser extinto sem julgamento de mérito, com base no art. 485, V, do CPC.[7] A questão que se coloca é se essa mesma solução seria aplicável no caso de um processo brasileiro e um processo estrangeiro com as mesmas partes, pedido e a causa de pedir.
2.Posição Doutrinária e Disciplina legal
Imagine-se que A ajuíza, em 2012, na Inglaterra, uma ação em face de B, pleiteando o ressarcimento de danos causados por um acidente provocado por este. Se, em 2014, a mesma questão for submetida ao juiz brasileiro, deve ele reconhecer a litispendência, extinguindo sem julgamento de mérito o processo? Responde a doutrina brasileira de forma negativa, com base no art. 90 do antigo CPC (atual art. 24 do CPC).[8] Afirma Humberto Theodoro que: “a litispendência é um fenômeno típico da competência interna, de sorte que nunca ocorre entre causas ajuizadas no país e no exterior.”[9] No mesmo sentido, é a lição de Cândido Rangel Dinamarco:
“(...) quis o legislador brasileiro não só permitir a repropositura da demanda aqui, não-obstante a litispendência estrangeira, como ainda excluir que essa litispendência produza no Brasil qualquer dos efeitos processuais que produziria a pendência de um processo perante o juiz brasileiro.
(...)Nega-se que a pendência de processo no exterior impeça a propositura da mesma demanda aqui, até porque o juiz brasileiro de primeiro grau, ao apreciar eventual defesa consistente nessa litispendência estrangeira, teria de penetrar no exame dos requisitos para a homologação da sentença que lá vier a ser proferida- o que constituiria uma antecipação do juízo de delibação reservado ao Superior Tribunal de Justiça.”[10]
À mesma conclusão chega Barbosa Moreira, apesar de criticar a redação do art. 90 do CPC:
“Dizer que a propositura de ação perante a Justiça alienígena ‘não induz litispendência ’é dizer mais do que se precisaria; aliás, não cabe à lei brasileira, evidentemente, regular efeitos processuais que se produzam no território estrangeiro. O que se quis estatuir foi a irrelevância desses possíveis efeitos para a nossa Justiça: que a lide penda ou não perante o juiz do outro Estado, nada importa aqui.”[11]
De forma diversa, entende Vicente Greco Filho. Preconiza o autor que como se admite, por meio da homologação de sentença estrangeira, a decisão do juiz alienígena sobre uma causa, também deve ser reconhecida a existência do processo em andamento que alcançaria esse resultado. Sobre esse ponto, sustenta o doutrinador:
“Se a jurisdição estrangeira, sob determinadas condições, é reconhecida como conclusiva a respeito de determinada causa, pela mesma razão reconhecida deve ser a existência de lide pendente para os efeitos de alegação da exceção. Se a litispendência no Direito interno tem por finalidade impedir o desgaste processual desnecessário e também o escândalo de decisões contraditórias, os mesmos fundamentos valem para o Direito internacional”.[12]
Apesar da relevância dos argumentos, não parece ser esse o melhor entendimento. No caso do Direito brasileiro, há a previsão expressa do art. 24 do CPC em sentido contrário. Além disso, o reconhecimento da sentença estrangeira não é automático e depende do preenchimento dos requisitos positivos e negativos, sendo possível, inclusive, que ele seja denegado. Ainda no exemplo acima ventilado, como ficaria a situação das partes se o juiz brasileiro extinguisse o processo por reconhecer a litispendência internacional, mas a sentença inglesa, por falta de algum pressuposto, viesse a não poder ser homologada pelo STJ? Essa possibilidade é lembrada por Cândido Rangel Dinamarco:
“Quanto ao processo instaurado fora do país, no entanto, não se sabe ainda se seu resultado poderá impor-se aqui: isso será objeto do juízo de delibação a ser feito a posteriori e com exclusividade pelo STJ. Por isso, a lei libera desde logo a propositura e prosseguimento do processo no Brasil, mesmo que em coincidência de conteúdo com algum outro já pendente no estrangeiro.”[13]
A corrente defendida pela maioria da doutrina sempre foi acolhida pelo STF e, após a EC45/04, também vem sendo adotada pelo STJ. Nesse sentido, vejam-se:
“2. Sentença estrangeira, ainda que transitada em julgado, não produz qualquer efeito no Brasil, a não ser que homologada pelo Supremo Tribunal Federal. 3. A justiça brasileira é indiferente a que se tenha ajuizado ação em país alienígena, mesmo se idêntica a outra que aqui tramite.”[14]
“Comprovada a hipótese da concorrência internacional de jurisdição, resta inviável considerar a possibilidade da litispendência, porquanto "a ação intentada perante tribunal estrangeiro" não a induz, consoante expressa previsão do art. 90 do CPC.”[15]
A situação, contudo, não parece ser tão simples se o país estrangeiro for um signatário do Código Bustamante[16], cujo artigo 394 prevê: “A litispendência, por motivo de pleito em outro Estado contratante, poderá ser alegada em matéria cível, quando a sentença, proferida em um deles, deva produzir no outro os efeitos de coisa julgada.” Nesse caso, alguns autores como Cândido Rangel Dinamarco[17] e Vicente Greco Filho[18] [19] entendem que o tratado prevalece no caso de processos pendentes em países participantes da Convenção de Havana, não se aplicando o art. 90. Segundo este autor, não seria possível afirmar que o Código de Processo Civil de 1973 tacitamente teria revogado essa disposição, pois se o Estado se obrigou perante outros países, somente por meio de uma outra manifestação perante esses países- denúncia do tratado- poderá se desobrigar. Discorda desse entendimento Carmen Tiburcio, para quem o emprego da palavra litispendência no art. 394 do Código Bustamante foi equivocado, pois a disposição trata apenas da hipótese de haver coisa julgada.[20]
O novo Código de Processo Civil contém disposição semelhante a do art.90 do antigo CPC, sendo ressalvada expressamente a existência de disposição em sentido contrário de tratados internacional e acordos bilaterais celebrados pelo Brasil. [21]
Por fim, cabe lembrar que essa questão, contudo, só se coloca nas hipóteses de competência internacional concorrente do juiz brasileiro (CPC, art. 21). Sendo um caso de competência exclusiva do juiz brasileiro (CPC, art.23), não se pode pensar em qualquer eficácia da sentença estrangeira ou do próprio processo estrangeiro no Brasil.[22]
4.Bibliografia
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NOTAS:
[1]Júnior, Humberto Theodoro, Curso de Direito Processual Civil, V.1, 43ª edição, 2005, Forense, p. 72.
[2] Pinho,Humberto Dalla Bernadina de, Teoria Geral do Processo Civil Contemporâneo, 2ª edição, 2009, Lumen Iuris, p.142.
[3] Júnior ,Humberto Theodoro, Curso de Direito Processual Civil, V.1, 43ª edição, 2005, Forense, p. 72.
[4] Idem , p. 72.
[5] Idem , p. 72.
[6] Entendem alguns autores, como José Carlos Barbosa Moreira que apenas os fatos integram a causa de pedir, sendo irrelevantes para a identificação da demanda seus fundamentos jurídicos. Moreira,José Carlos Barbosa, O Novo Processo Civil Brasileiro, 28ª edição, 2010, Forense, p. 17.
[7] Humberto Theodoro Júnior, Curso de Direito Processual Civil, V.1, 43ª edição, 2005, Forense, p. 345.
[8] Art. 90: A ação intentada perante tribunal estrangeiro não induz litispendência, nem obsta a que a autoridade judiciária brasileira conheça da mesma causa e das que lhe são conexas.
[9] Júnior ,Humberto Theodoro, Curso de Direito Processual Civil, V.1, 43ª edição, 2005, Forense, p. 346.
[10] Dinamarco , Cândido Rangel, Instituições de Direito Processual Civil, V.I, 6ª edição, 2009, Malheiros, p.356-357.
[11]Moreira, José Carlos Barbosa, Relação entre processos instaurados, sobre a mesma lide civil, no Brasil e em país estrangeiro, in: Revista de Processo, V.8, 1977, p.01-02.
[12] Filho, Vicente Greco, Homologação de sentença estrangeira, 1978, Saraiva, p.78.
[13] Dinamarco, Cândido Rangel, Instituições de Direito Processual Civil, V.I, 6ª edição, 2009, Malheiros, p.358.
[14] STF, SEC 6971, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, DJ 14.02.2003.
[15] STJ, SEC 2.958/EX, Rel. Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Corte Especial, DJe 14.10.11.
[16] O Código Bustamante foi promulgado, no Brasil, em 13.08.1929, pelo Decreto-Lei n° 18.871/29.
[17]Dinamarco, Cândido Rangel, Instituições de Direito Processual Civil, V.I, 6ª edição, 2009, Malheiros, p. 358.
[18]Filho, Vicente Greco, Homologação de sentença estrangeira, 1978, Saraiva, p.82-83.
[19] No mesmo sentido, Barbi , Celso Agrícola, Comentários ao Código de Processo Civil, V.I, 6ª edição, 1991, Forense, p.244-245.
[20] Tiburcio ,Carmen, Temas de Direito Internacional, 2006, Renovar, p.509.
[21] Art. 23: A ação proposta perante tribunal estrangeiro não induz litispendência e não obsta a que a autoridade judiciária brasileira conheça da mesma causa e das que lhe são conexas, ressalvadas as disposições em contrário de tratados internacionais e acordos bilaterais em vigor no Brasil.
[22] Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil, V.I, 6ª edição, 2009, Malheiros, p. 358.
Procuradora da Fazenda Nacional. Advogada formada em Direito pela UERJ.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Aline Antelo Machado de. O fenômeno da litispendência internacional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jun 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50356/o-fenomeno-da-litispendencia-internacional. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Guilherme Waltrin Milani
Por: Beatriz Matias Lopes
Por: MARA LAISA DE BRITO CARDOSO
Por: Vitor Veloso Barros e Santos
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