Resumo: O artigo pretende analisar se a propositura do processo de homologação de sentença estrangeira perante o STJ impede a propositura de um processo perante o juiz brasileiro sobre a mesma questão.
Sumário: 1.Caso hipotético 2.Posição doutrinária. 3.Posição jurisprudencial. 4.Fenômeno da “caça à sentença”.
Com base no art.961 do CPC, a sentença estrangeira só produz efeitos no Brasil após a sua homologação. Assim, ainda que já tenha havido o seu trânsito em julgado para o sistema jurídico estrangeiro, a mesma questão pode ser submetida ao juiz brasileiro, não havendo qualquer ofensa à autoridade da coisa julgada. Sobre o ponto, leciona Barbosa Moreira:
“Sem ela (a homologação), portanto, em vão se invocará, no processo brasileiro posterior, a existência de res iudicato formada noutro país sobre a lide: a preliminar não será acolhível, nem poderá o órgão judicial pátrio, é claro, conhecer dela de ofício.” [1]
Imagine-se, por exemplo, que A ajuizou em 2008, na Inglaterra, ação em face de B, arguindo o dever deste de indenizá-lo por danos causados num acidente de carro. Em 2012, transita em julgado a decisão de procedência. Enquanto não houver sua homologação pelo STJ, a questão do dever de indenizar pode ser objeto de um processo brasileiro, tendo novamente como partes A e B. Emerge, portanto, a possibilidade de coexistirem o processo de homologação da sentença estrangeira perante o STJ e o processo de conhecimento sobre a mesma lide perante o juiz brasileiro.
Evidentemente, não é possível se falar em litispendência, nessa hipótese. Tal fenômeno ocorre quando duas ações são idênticas, por terem as mesmas partes, o mesmo pedido e a mesma causa de pedir.[2] Todavia, ainda que as partes sejam as mesmas, são o pedido e a causa de pedir diferentes.[3] No processo de homologação, é pleiteado o reconhecimento e a produção no Brasil dos efeitos da sentença estrangeira, sendo a causa de pedir o preenchimento dos requisitos dos art. 15 e 17 da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro. Já no processo brasileiro, o pedido é a condenação do réu à obrigação de indenizar, com base na sua responsabilidade civil. Ou seja, nesse processo discutir-se-á se há o dever de indenizar, se houve o dano, a conduta do réu, se está presente o nexo causal. Já naquele, a discussão se limitará à presença dos requisitos de homologabilidade[4] Nas palavras de Roberto Rosas e Paulo Cezar Aragão:
“A rigor não há, nem pode haver litispendência, ante a substancial e profunda diversidade entre os dois juízos, com certeza já presente no espírito do leitor que vem acompanhando esta exposição: o juízo de homologação é autônomo, e tem petitum totalmente distinto da ação nacional que verse sobre a mesma relação substancial já decidida.”[5]
A pendência da ação brasileira não obsta, portanto, a propositura da ação de homologação. [6] [7] Esse entendimento foi adotado em decisões mais recentes pelo STF[8], tendo sido mantido pelo STJ. Sobre o ponto, veja-se:
“SENTENÇA ESTRANGEIRA - TRAMITAÇÃO DE PROCESSO NO BRASIL - HOMOLOGAÇÃO. O fato de ter-se, no Brasil, o curso de processo concernente a conflito de interesses dirimido em sentença estrangeira transitada em julgado não é óbice à homologação desta última.”[9] [10]
“1. Segundo o sistema processual adotado em nosso País em tema de competência internacional (CPC, arts. 88 a 90), não é exclusiva, mas concorrente com a estrangeira, a competência da Justiça brasileira para, entre outras, a ação de divórcio, de alimentos ou de regime de guarda de filhos, e mesmo a partilha de bens que não sejam bens situados no Brasil. Isso significa que "a ação intentada perante tribunal estrangeiro não induz litispendência, nem obsta que a autoridade judiciária brasileira conheça da mesma causa e das que lhe são conexas" (CPC, art. 90) e vice-versa.
2. Por isso mesmo, em casos tais, o ajuizamento de demanda no Brasil não constitui, por si só, empecilho à homologação de sentença estrangeira”[11].
“A existência de ação ajuizada no Brasil com as mesmas partes, com o mesmo pedido e com a mesma causa de pedir não obsta a homologação de sentença estrangeira transitada em julgado.
Hipótese de competência concorrente (arts. 88 a 90 do Código de Processo Civil), inexistindo ofensa à soberania nacional”[12] [13]
De fato, essa solução acaba por permitir a ocorrência da chamada “caça à sentença”, a qual, na maioria das vezes, consiste num “procedimento fraudulento e procrastinatório das partes”.[14] Em alguns países, como na Colômbia, a não pendência de processo nacional com a mesma lide é um requisito para a homologação da sentença estrangeira.[15] Também no anteprojeto de Alfredo Buzaid, havia a previsão dessa causa específica de inadmissibilidade do pedido de homologação.[16] Contudo, não há, no atual CPC, qualquer vedação nesse sentindo. Apenas no âmbito do Mercosul, há a previsão do art. 22 do Tratado de Las Leñas[17] [18].
Só haverá interferência entre os dois processos, quando a decisão proferida em um deles transitar em julgado.[19] Assim, caso a decisão do juiz brasileiro transite em julgado, fica vedada a homologação da sentença estrangeira, pois, com a homologação a sentença estrangeira passaria a ter eficácia no Brasil, revestindo-se da autoridade da coisa julgada, o que ofenderia à res iudicata da sentença nacional.[20] Nas palavras de Barbosa Moreira:
“Não porque a decisão superveniente acerca do pedido da homologação, em si mesma, fosse capaz de ofender a coisa julgada da sentença brasileira: não o seria, já que inexiste identidade entre as duas ações. Mas, se o Supremo Tribunal[21] acolhesse o pedido, com o trânsito em julgado do seu acórdão entraria a revestir igualmente a auctoritas rei iudicatae, no território nacional, a decisão estrangeira homologada-e, aí, sem dúvida se configuraria a ofensa à res iudicata. A hipótese é de extinção do processo (de homologação) sem julgamento de mérito.”[22]
Esse também é o entendimento do STJ:
“3. O requerente apresentou a sentença homologanda, original e traduzida, devidamente chancelada pelo Consulado Brasileiro e certidão comprovando o trânsito em julgado. No entanto, diante da informação prestada pelo ilustre Juízo da 1ª Vara de Família, Órfão e Sucessões do Foro Regional de Jabaquara do Estado de São Paulo/SP, de que houve o trânsito em julgado referente aos processos nos 003.03.009294-1 e 003.03.012013-9, em que se discutiam, respectivamente, a guarda da menor e o divórcio das partes, não há como acolher o pedido de homologação sob pena de ofensa à ordem pública nacional.
4. Não se trata de mera litispendência, mas de matéria soberanamente julgada no Brasil sobre a mesma lide, o que obsta a homologação do pedido.
5. Homologação de sentença estrangeira indeferida.”[23]
Já se ocorrer primeiro o trânsito em julgado da decisão de procedência do pedido de homologação, deve a parte suscitar, no processo brasileiro, a preliminar da coisa julgada ou mesmo o juiz reconhecê-la de ofício, com a consequente extinção do processo sem julgamento de mérito, com base no art. 485, V, do CPC. Caso seja, neste processo, proferida sentença definitiva, caberá ação rescisória, com base no art. 966, IV.[24] Sendo, porém a decisão do STJ de improcedência, não fica o juiz brasileiro impedido de apreciar a questão, pois a decisão estrangeira fica impedida de produzir, no Brasil, seus efeitos.[25]
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[1] José Carlos Barbosa Moreira, Relação entre processos instaurados, sobre a mesma lide civil, no Brasil e em país estrangeiro, in: Revista de Processo, V.8, 1977, p.3.
[2] CPC, art. 301, §§1o, 2o.
[3] José Carlos Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. V, 12ª edição, 2006, Forense, p.95.
[4] O Brasil adota o sistema de delibação, isto é, não se reexamina o mérito da decisão estrangeira, limitando-se o STJ a analisar se estão presentes na decisão requisitos mínimo para que ela possa ser reconhecida e executada no Brasil.
[5] Roberto Rosas e Paulo Cezar Aragão, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. V, 2ª edição, 1988 Revista dos Tribunais, p.156.
[6] Em sentido contrário, defendendo a prevalência da sentença nacional: Haroldo Valladão, Estudos de Direito Internacional Privado, 1947, p.727 e Celso Agrícola Barbi, Comentários ao CPC, Forense, V.I, tomo II, p.403.
[7] Há no projeto do novo Código de Processo Civil uma disposição expressa nesse sentido: art. 23, parágrafo único: A pendência da causa perante a jurisdição brasileira não impede a homologação de sentença judicial ou arbitral estrangeira.
[8] Esse entendimento foi adotado em alguns julgados pelo STF no caso de sentenças estrangeira sobre a guarda de menores. Nesse sentido, STF, SEC 4694, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, Pleno, DJ 18.03.1994; STF, SEC 6729, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, Pleno, DJ 07.0.-2002; STF, SEC 5526, Rel. Min. ELLEN GRACIE, Pleno, DJ 28.05.2004.
[9] STF, SEC 7209, Rel. Min. ELLEN GRACIE, Relator p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Pleno, DJ 29.09.2006.
[10] Essa tese também foi adotada em outros julgamentos, como: STF, SEC 5116, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Pleno, DJ 07.08; SEC 6971, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, Pleno, DJ 14.02.2003.
[11] STJ, SEC 4.127/EX, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, Relator p/ Acórdão Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, Corte Especial, DJe 27.09.2012.
[12] STJ, AgRg na SE 4.091/EX, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, Corte Especial, DJe 0./09.2012.
[13] Esse mesmo entendimento foi adotado em outros julgados, como: STJ, SEC 2.611/PL, Rel.Min. LAURITA VAZ, Corte Especial, DJe 16.02.2011; STJ, AgRg na SEC 6.948/EX, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, Corte Especial, DJe 01.02.2013; STJ, SEC 6.894/EX, Rel. Min. CASTRO MEIRA, Corte Especial, DJe 04.03.2013.
[14] Roberto Rosas e Paulo Cezar Aragão, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. V, 2ª edição, 1988 Revista dos Tribunais, p.157.
[15] Vicente Greco Filho, Homologação de sentença estrangeira, 1978, Saraiva, p.24.
[16] José Carlos Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. V, 12ª edição, 2006, Forense, p.96.
[17] Art. 22: Quando se tratar de uma sentença ou de um laudo arbitral entre as mesmas partes, fundamentado nos mesmos fatos, e que tenha o mesmo objeto de outro processo judirisdicional ou arbitral no Estado requerido, seu reconhecimento e sua executoriedade dependerão de que a decisão não seja incompatível com outro pronunciamento anterior ou simultâneo proferido nesse processo no Estado requerido.
Do mesmo modo não se reconhecerá nem se procederá à execução, quando se houver iniciado um procedimento entre as mesmas partes, fundamentado nos mesmos fatos e sobre o mesmo objeto, perante qualquer autoridade jurisdicional do Estado requerido, anteriormente à apresentação da demanda perante a autoridade jurisdicional que tiver pronunciado a decisão da qual haja solicitação de reconhecimento.
[18] O tratado de Las Leñas foi promulgado no Brasil em 02.07.02, pelo Decreto 6.891/02.
[19] José Carlos Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. V, 12ª edição, 2006, Forense, p.96.
[20]Idem, p.97.
[21] Deve-se recordar que, antes da EC45/05, a competência para a ação de homologação se sentença estrangeira era do STF.
[22] José Carlos Barbosa Moreira, Relação entre processos instaurados, sobre a mesma lide civil, no Brasil e em país estrangeiro, in: Revista de Processo, V.8, 1977, pg.4.
[23] STJ, SEC 1.271/EX, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, Corte Especial, DJe 24.06.2011.
[24] José Carlos Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. V, 12ª edição, 2006, Forense, p.97. No mesmo sentido, Roberto Rosas e Paulo Cezar Aragão, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. V, 2ª edição, 1988 Revista dos Tribunais, p.157.
[25] José Carlos Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. V, 12ª edição, 2006, Forense, p.97.
Procuradora da Fazenda Nacional. Advogada formada em Direito pela UERJ.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Aline Antelo Machado de. A relação entre o processo de homologação de sentença estrangeira e o processo brasileiro sobre a mesma lide Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 jun 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50358/a-relacao-entre-o-processo-de-homologacao-de-sentenca-estrangeira-e-o-processo-brasileiro-sobre-a-mesma-lide. Acesso em: 22 nov 2024.
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