RESUMO: O trabalho aborda a evolução social da mulher desde tempos remotos até a conquista de direitos e sua desvinculação do poder patriarcal, destacando também os tipos de violência sofridos pela mulher atualmente. O foco de interesse da pesquisa, através da metodologia bibliográfica e documental, é impulsionar o reconhecimento social de que mesmo nos tempos atuais a mulher ainda sofre constante violação dos direitos humanos. Dessa forma, ressalta-se a importância das políticas públicas como modo de prevenção à violência contra a mulher e a necessidade de atenção estatal para uma reeducação social que vise ressocializar homens e mulheres, para que convivam com igualdade, de forma que a punibilidade não seja a única alternativa para a prevenção a esse tipo de violência.
Palavras-chave: Violência; Mulher; Patriarcado.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO 1. ASPECTOS HISTÓRICOS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER. 1.1 A mulher como propriedade e a relação de poder masculina exercida no ambiente familiar. 1.2 A busca das mulheres por novos direitos. 2 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. 2.1 Conceituando violência. 2.2 A violência contra a mulher nos dias atuais. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
INTRODUÇÃO
Principia-se, no Capítulo I, demonstrar através dos aspectos históricos a evolução da violência de gênero, delineando a forma como a mulher era vista socialmente sob um viés patriarcal. Busca-se, neste capítulo, salientar a longevidade da opressão sofrida pelas mulheres ao longo dos anos, na qual era vista como natural e legitimada por meio de um padrão social imposto através do seio familiar e conjugal pelo patriarcalismo.
No Capítulo II, buscar-se-á delinear as origens da violência, os tipos de violência doméstica existentes, suas causas e efeitos e o processo de criação de uma lei que visasse coibir todo tipo de violência sofrida no ambiente doméstico e familiar. São várias as formas de violências sofridas pelas mulheres, seja no âmbito público ou privado, e que necessitam de espaço para que sejam claramente divulgadas e se façam entendidas por todo e qualquer ser humano, para que se torne mais viável coibi-la ou denunciá-la.
1. ASPECTOS HISTÓRICOS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
1.1 A mulher como propriedade e a relação de poder masculina exercida no ambiente familiar
No início do século XVI, Portugal tinha acabado de descobrir o Brasil e mantinha imenso interesse em tomar posse das terras e colonizá-la, antes que outros países tentassem o mesmo, bem como ampliar os domínios da cristandade. Os portugueses não manifestavam interesse em fixar residência aqui, mas apenas explorar a terra recém-descoberta, enriquecer e retornar à Europa.
A agricultura até então não fazia parte dos interesses dos exploradores, pois para tal seria necessária a fixação na terra. As ocupações de Portugal com as possessões fora da América e a frustração imediata de lucro fácil no Brasil não acarretaram em interesses maiores para a corte. No decorrer do tempo, com a valorização do açúcar na Europa, os portugueses viram no Brasil a necessidade da criação de lavouras de grande porte e consequentemente a criação de latifúndios. A partir dessa necessidade, surgiram os primeiros engenhos, com a fixação de portugueses no litoral, dando início à sociedade patriarcal no Brasil.
Sob o domínio do pater famílias, conhecido como senhor de engenho, estabelecia-se a casa-grande, parte mais importante dessas fazendas, as quais eram governadas por uma gerente doméstica que mantinha a ordem e organização da casa, chamada também de matronas ou matriarcas. A própria palavra família – cuja origem está no latim, famulus, significa conjunto de escravos domésticos, considerando-se como parte desse todo mulher, filhos e agregados. (LEAL, p. 167, 2004)
Essas mulheres, vindas de Portugal acompanhadas de seus maridos, trouxeram consigo toda tradição e cultura europeia, promovendo assim a fixação dessa cultura no Brasil. Tal fato dava-se pelo tamanho desdenho que tais famílias mantinham pelo Brasil, e, no intuito de não sucumbir a um cenário completamente diferente dos quais estavam habituados, tentavam transportar para a colônia os hábitos civilizados e o luxo que a corte portuguesa os proporcionara.
Tanto as famílias patriarcais rurais, habitantes dos engenhos, quanto às famílias patriarcais urbanas, residentes dos sobrados, eram formadas por pai, mãe, filhos, parentes em grau distante, bem como agregados. Ademais, nesse grupo social, os espaços eram delimitados, havendo uma rígida hierarquização e estratificação.
Advindo dessa hierarquização que impunha papeis rigidamente estabelecidos e regras explícitas para cada membro desse grupo social, o poder patriarcal estabeleceu como característica básica a restrição ao espaço da mulher e o poder exercido sobre ela pelo marido, chefe da casa e do engenho. A mulher estava delimitada ao poder masculino na família e deveria reconhecer seu próprio lugar e função social.
A liberdade feminina, tanto da esposa como das filhas, era restringida do modo mais autoritário possível pelos patriarcas, que viam nessas mulheres propriedades suas. De acordo com José Carlos Leal, o espaço feminino delimitava-se à missa, único local em quem poderiam romper minimamente com sua clausura, pois a rua era um ambiente no qual estavam aptos a frequentar apenas os homens e as prostitutas, única mulher que poderia caminhar sem maiores restrições. (LEAL, p. 168, 2004)
O local determinado e obrigatório para as mulheres da época era dentro de casa, cuidando e gerenciando o lar e limitando-se às ordens de seu esposo. De acordo com Leal, nem mesmo para compras era possível deslocar-se de seu lar, e portanto, quando o queriam fazer, os patriarcas solicitavam que viessem ao sobrado os representantes das lojas, para que suas esposas pudessem escolher os produtos desejados.
Deste modo, evidencia-se a limitação a qual sujeitava-se a mulher, visto que não poderia sequer sair de casa. Ademais, fica nítido como a rua sempre foi um ambiente masculino, motivo pelo qual até hoje mulheres sofrem violência de todo gênero quando expostas a ambientes que não sejam seu próprio lar, e por isso são vistas como seres aptos a aceitarem qualquer tipo de assédio.
Na rua estavam as pessoas de classe mais baixa e os homens senhores do lar, portanto, as mulheres não deveriam misturar-se com pessoas desses níveis, para que mantivessem a classe, dignidade e exercessem seu papel dentro do lar. As senhoras dos engenhos e dos sobrados, bem como as filhas, deveriam retirar-se do ambiente comum a todos no momento em que adentrasse qualquer estranho ao lar, raramente aparecendo aos hóspedes quando estes necessitavam de abrigo na casa do pater famílias e limitavam-se dentro do próprio espaço em que residiam.
Evidencia-se, portanto, o principal objetivo da sociedade patriarcal para homens e mulheres: a diferença entre os sexos. O homem representava a figura viril, a razão, mantinha o dever de manter a si mesmo e a prole, e o fato de cometer adultério era naturalmente aceitável socialmente.
Já a mulher representava a figura frágil, ingênua, possuidora da emoção e seu adultério deveria ser punido, pois jamais permitia-se que uma mulher tivesse comportamento semelhante ao do homem.
Além das diferenças, criou-se, também no século XIX, um estereótipo de mulher ideal a ser seguido. Quando nova, deveria ser frágil, discreta, pura e virgem; quando adulta, deveria ser maternal, ter coxas grossa, seios fartos, quadris largos, características que serviam para os interesses essenciais do homem: a procriação e os cuidados do lar.
Ademais, as relações sexuais baseavam-se apenas em padrões machistas e religiosos, onde apenas o homem tinha direito ao prazer sexual, mas a mulher não, pois a relação sexual feminina servia apenas para fins de procriação. A mulher jamais devia invocar desejos sexuais ou sequer convidar o marido para ter relações, visto que apenas ao marido cabia o direito de sentir prazer com o sexo, e o qual buscava na amante ou prostituta um meio de satisfazer suas perversidades sexuais. À mulher esposa cabia apenas o dever de satisfazer ao marido sexualmente, procriar, conceber e educar a prole, e o marido apenas deveria suportar economicamente.
Além dos estereótipos e deveres impostos rigidamente para diferenciar os sexos, o comportamento também se fazia necessário para manter a divisão homem-mulher dentro dos limites aceitáveis da época. Homens deveriam agir de forma máscula e ter características que correspondessem ao sexo masculino: andar, falar, se vestir que nem homem. Para tanto, eram habituados desde seus primeiros dias de vida a existirem segundo um padrão social da época, com características distintas que evidenciassem seu sexo masculino, e logo seriam educados para manter um comportamento naturalmente aceitável, e também o mais machista possível, para que assim se reproduzisse a tradição arraigada no seio familiar e na sociedade na qual vivia à época.
Desde a infância já dividiam-se claramente os papeis, para que meninos brincassem de maneira rude, não chorassem, não demonstrassem suas emoções, se mantivessem sempre corajosos e honrassem sua condição de homem com orgulho.
Já as meninas deveriam comportar-se de maneira sensível, tímida e frágil, além de aprender, através das brincadeiras com bonecas e observando a própria mãe, os afazeres domésticos básicos e essenciais para que assim mantivesse a tradição destinada às mulheres da época, bem como alcançasse sua realização máxima: o casamento.
Para as mulheres da época, o casamento era o nível mais alto de suas vidas, um objetivo a ser alcançado e no qual a maioria das meninas eram preparadas desde a infância para tal ato.
O casamento não era visto como um ato de amor e afeto, no qual duas pessoas uniam-se por desejo de compartilharem suas vidas, e sim como uma missão dada às mulheres para que alcançassem seu objetivo de vida, na verdade o único objetivo destinado às mulheres da época.
Portanto, a mãe, juntamente com as outras mulheres do lar, encarregava-se de criar meninas dentro dos mais altos padrões estéticos da época, com pés pequenos, cintura fina, traços delicados, características essas que as tornariam atraentes para alcançar o objetivo final.
Além dos padrões estéticos em que deveriam se enquadrar, as roupas também deveriam cobrir o máximo possível do corpo feminino, deixando aparecer no máximo seu rosto, pescoço e mãos. Atrelada à cultura europeia, esse traje também demonstrava o alcance do poder masculino sobre o corpo feminino, no qual apenas o marido poderia ver o corpo da esposa descoberto, evidenciando que aquele corpo era sua propriedade e apenas ele próprio poderia usufruí-lo para fins sexuais.
A missão da mulher, ainda no século XIX, era devotar-se, tudo aceitar e saber resignar-se, enquanto que o homem era tido, por definição, como fogoso, impetuoso e transbordante de energia física e sexual. Se a mulher tenta sair dessa posição, mecanismos sociais buscam corrigir a sua direção.
Do ponto de vista histórico brasileiro, a violência contra a mulher é ainda herdeira de uma cultura com raízes em uma sociedade escravocrata, construída a partir do modelo colonizador que aqui se instalou (MARCONDES FILHO, 2001). O pater famílias expressava o poder indiscutível de vida e morte do homem sobre todos os membros da família, da qual ele era a única pessoa plena de direitos, de acordo com a lei. Essa ideia prevaleceu rigorosamente por alguns séculos.
No Brasil, até recentemente, mas especificamente no ano de 2002, quando o novo Código Civil Brasileiro foi sancionado e publicado, ainda estava escrito que o homem era o chefe da sociedade conjugal: Art. 233, cap. II, “o marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos”.
Sobressai-se, portanto, a teoria de que, até os dias atuais, a mulher é vista como sujeito social autônomo, porém historicamente vitimada pelo controle social masculino. É justamente pela possibilidade do conceito patriarcado ser utilizado de forma abrangente, abarcando todos os níveis da organização social, que seu sentido substantivo é tão frutífero para analisar as diversas situações de dominação e exploração das mulheres. O uso de patriarcado enquanto um sistema de dominação dos homens sobre as mulheres permite visualizar que a dominação não está presente somente na esfera familiar, tampouco apenas no âmbito trabalhista, na mídia ou na política.
Portanto, o patriarcado é utilizado como forma de naturalizar um sistema que legitima e naturaliza o exercício da dominação e exploração das mulheres por um indivíduo, na maioria das vezes, do sexo masculino, e que apesar de já ser superado como organização social que tem o patriarca como figura central de uma comunidade familiar ou econômica, ainda possui grandes reflexos na estrutura social do século XXI.
No decorrer do atual século, a sociedade vem reproduzindo a subordinação da mulher perante o sexo masculino através da tradição e costumes, e desse modo, banaliza e naturaliza um opressão sofrida por décadas e que até hoje reflete em diversos setores sociais dos quais o sexo feminino esteja presente.
Portanto, há que se falar que o patriarcalismo compõe a dinâmica social como um todo até mesmo nos dias atuais, estando inclusive, arraigado no inconsciente de homens e mulheres individualmente e no coletivo enquanto categorias sociais.
1.2 A busca das mulheres por novos direitos
A partir da última metade do século XIX, as mulheres iniciaram a edição de jornais que salientavam a importância dos direitos femininos no Brasil, ilustrando a posição de inferioridade ocupada na época e o descaso com relação aos direitos a elas conferidos. Através destes jornais, evidenciou-se a necessidade da educação feminina em prol delas mesmas e da emancipação política pelo direito de votarem e de serem votadas. Destarte, por volta do final do século XIX esses direitos reivindicados foram sendo obtidos, mesmo que de forma lenta, através da inserção da mulher no mercado de trabalho.
A partir de 1962, as mulheres brasileiras adquiriram liberdade para preencher não só o espaço que lhes cabia por direito à época – privado, restringindo-se ao lar e à família -, mas também o espaço público, tornando-se relativamente capazes e responsáveis pelos atos da vida civil, bem como tornarem-se parte do mercado de trabalho. No dizer de Maria Berenice Dias:
O modelo familiar da época era hierarquizado pelo homem, sendo que desenvolvia um papel paternalista de mando e poder, exigindo uma postura de submissão da mulher e dos filhos. Esse modelo veio à sofrer modificações a partir da Revolução Industrial, quando as mulheres foram chamadas ao mercado de trabalho, descobrindo assim, a partir de então, o direito à liberdade, passando a almejar a igualdade e a questionar a discriminação de que sempre foram alvos. Com essas alterações, a mulher passou a participar, com o fruto de seu trabalho, da mantença da família, o que lhe conferiu certa independência. Começou ela a cobrar uma participação do homem no ambiente doméstico, impondo a necessidade de assumir responsabilidade dentro de casa e partilhar cuidado com os filhos. (DIAS, 2004, p. 22-24)
Por volta de 1918, iniciou-se no Brasil o movimento sufragista, movimento este que reivindicava o direito ao voto feminino, liderado pela classe média brasileira e que acabou contribuindo para a aprovação do Código Eleitoral, em 1932, o que garantiu à mulher o direito de se eleger e poder votar. Ademais, em 1936, Bertha Lutz, uma das mais importantes líderes sufragistas, colaborou para a criação do Estatuto da Mulher.
Em 1934, a Constituição Federal consagrou finalmente a igualdade entre os sexos. Em 1970 foi criado o movimento feminino pela Anistia e em 1975 foi instituído pela ONU o Ano Internacional da Mulher. Em 1977 foi promulgada a lei do divórcio em nosso ordenamento jurídico, garantindo na prática a liberdade feminina de pôr fim à sociedade conjugal em casos de violência doméstica.
Apesar de todas as limitações sofridas pelas mulheres ao desempenharem suas tarefas domésticas, elas adentraram no mercado de trabalho na busca pela liberdade e independência financeira, passando a desempenhar dupla jornada e auxiliar no sustento da casa. No entanto, essa evolução nos direitos das mulheres acabou distorcendo os papeis de cada gênero que são impostos socialmente desde os primórdios, criando um clima propício para conflitos, visto que, no momento em que a mulher integra-se no mercado de trabalho, impondo e redefinindo todo o modelo ideal de família até então estabelecido, a ideologia patriarcal cai por terra e perde sua eficácia na prática.
Diante das falhas nos papeis já preestabelecidos para cada gênero, surge a violência como meio de reprimir a mulher a ocupar o lugar que é seu historicamente: no lar, desempenhando seu papel de mãe e esposa.
Com a evolução das conquistas femininas obtidas historicamente, tais como o direito de votar, os direitos femininos garantiram-se de forma a integrar a mulher no mercado de trabalho e trata-la como ser autônomo, não mais como propriedade masculina ou como indivíduo não considerado como sujeito.
No entanto, a violência doméstica, que antes era vista como natural e legitimada pelos padrões sociais da época, atualmente se arrasta com o passar dos anos e ganhou evidência apenas com a imposição da vontade feminina diante da opressão sofrida dentro do ambiente doméstico.
Ademais, a violência doméstica ainda é naturalizada socialmente, de diversas formas e em diversos ambientes, através da sujeição da mulher à inferioridade dentro do próprio ambiente doméstico ou de trabalho e ao tratar o corpo feminino como objeto sexual, como acontece diariamente quando a grande maioria das mulheres sofre assédio, tanto na rua como no ambiente de trabalho.
Tais situações se estabelecem como agravantes no atual contexto histórico em que vivemos, visto que as alterações nos papéis preestabelecidos para os gêneros não garantiram a adequação e aceitação social diante dessas mudanças ocorridas, motivo que colabora para a legitimação da violência sofrida pelas mulheres com o intuito de devolvê-las ao lugar e aos papeis que desempenhavam no século passado.
2. A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER
2.1 Conceituando violência
O termo violência é um vocábulo que deriva do latim violentia, que por sua vez deriva do prefixo vis e quer dizer força, vigor, potência ou impulso. Portanto, segundo Saffioti (2015, p.18), trata-se de qualquer comportamento que vise a ruptura de qualquer forma de integridade da vítima, seja física, psíquica, sexual ou moral, através do uso da força, caracteriza-se como violência. Pode-se dizer, portanto, que qualquer tipo de violência é uma violação dos direitos essenciais do ser humano.
A violência, segundo a análise de Stela Valéria Soares de Farias Cavalcanti,
“é um ato de brutalidade, abuso, constrangimento, desrespeito, discriminação, impedimento, imposição, invasão, ofensa, proibição, sevícia, agressão física, psíquica, moral ou patrimonial contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela ofensa e intimidação pelo medo e terror” (2007, p.29).
De diferentes agentes surge a violência, assim como abrange todas as esferas sociais. Na análise de Maria Berenice Dias (2015, p. 24),
“a sociedade ainda cultiva valores que incentivam a violência, o que impõe a necessidade de se tomar consciência de que a culpa é de todos. O fundamento é cultural e decorre da desigualdade no exercício do poder, o qual gera uma relação de dominante e dominado”.
Diante deste fato, situações até então inaceitáveis são vistas como naturais pelo viés estatal e social por meio de “pactos sociais informalmente estabelecidos e sustentados” (BRAUNER e CARLOS, 2006, p. 648), sendo portando reforçadas e multiplicadas ao longo dos anos.
Denota-se que, mesmo que a Constituição Federal tenha enfatizado em seus artigos 5º e inc. I e art. 226, § 5º a equiparação entre homem e mulher, a ideologia patriarcal continua subsistindo na esfera social, de modo que ainda hoje dentro dos lares a mulher é vista como aquela que deve servir ao lar e família, mesmo que também labore fora do ambiente doméstico. Ao longo dos anos o patriarcado tem sido aceito e incontestado, e, portanto, a desintegração dos papeis destinados a cada gênero afetou também a estrutura basilar desse sistema de apropriação do corpo e da vontade feminina.
Nesse contexto é que surge a violência doméstica e familiar contra a mulher, justificada como forma de compensar possíveis falhas no cumprimento ideal dos papeis de gênero. A ruptura desse parâmetro preestabelecido através das conquistas femininas ocorridas mundialmente, em parte, retirou dos homens a capacidade de dominar e decidir sobre seu lar e sua esposa, advindo daí a necessidade de usar a força bruta para impor suas vontades ou desestabilizar sua companheira para torna-la mais frágil e suscetível à opressão.
A violência doméstica, portanto, pode ser considerada a soma de um processo histórico que legitima a diminuição social da mulher, juntamente com a incapacidade masculina de adequar-se a uma nova esfera social na qual as mulheres detém o poder sobre si mesmas. É possível que boa parte da violência que os homens praticam hoje contra a mulher, não seja apenas a persistência do velho sistema, e, sim, uma incapacidade ou recusa de adaptar-se ao novo. Ou seja, não é apenas a continuação do patriarcado tradicional, mas também um modo de reagir contra a sua derrocada. (GIDDENS, 2000, p. 92)
Na análise de Maria Amélia de Almeida Teles,
a violência de gênero tem sua origem na discriminação histórica contra as mulheres, ou seja, num longo processo de construção e consolidação de medidas e ações explícitas e implícitas que visam a submissão da população feminina, que tem ocorrido durante o desenvolvimento da sociedade humana (TELES, p. 27).
Por meio da força bruta, inicialmente, forjou-se o controle masculino sobre as mulheres. Gradativamente, foram introduzidos novos métodos e novas formas de dominação masculina: as leis, a cultura, a religião, a filosofia, a ciência, a política.
Violência, portanto, exprime conflito, ideia de interesses em choque.
“De um lado, o interesse do dominador: o desejo de mando e a montagem de um sistema que permita que ele se efetive e se perpetue; de outro, o interesse da mulher, que não é claramente definido, uma vez que as mulheres estão sujeitas à uma violência simbólica que anula a possibilidade de definirem seu destino e interesses” (GREGORI, 1993, p. 126).
Essa violência simbólica equivale à ideologia machista, a qual constitui uma visão de mundo formulada pelo dominador com fins de produzir uma mistificação que garanta a complacência do dominado. Existe, portanto, uma intenção masculina de ferir a integridade física das mulheres, vontade essa que seria fruto de uma disposição individual apoiada na ideologia e no processo global de dominação de um sexo sobre o outro.
Segundo Marilena Chauí, a violência e a força são a ausência do poder. São conceitos nos quais a autonomia e a expressão do desejo da autonomia estão ausentes, e são operadas sob o domínio da heteronomia, o lugar em que cabe a relação entre o que sujeita e é sujeitado. Portanto, cabe dizer que as mulheres são constituídas com uma subjetividade em que falta algo essencial para serem consideradas como sujeito: autonomia do falar, do pensar e do agir (Chauí, 1985, p.46). Além do mais, essa subjetividade coloca a mulher em uma posição de dependência, constituindo um ser feito para os outros e não como seres com os outros.
Ademais, na visão de Maria José Arthur, o discurso social utilizado atualmente reforça a violência como algo natural e existente dentro do âmbito familiar, de modo que
[....] este fenômeno não se esgota com a ocorrência de episódios violentos, físicos ou psicológicos, mas tem também expressão discursiva, que vai no sentido de: I) legitimar a ordem patriarcal e as suas instituições; II) justificar a violência contra as mulheres como expressão legítima do poder masculino. Assim, estes discursos são também discursos sobre normas, que nos revelam um modelo de normalidade quanto ao funcionamento da família e das instituições e no que concerne aos papéis respectivos que cabem a homens e a mulheres. (ARTHUR, 2005)
Denota-se, portanto, que a violência de gênero consiste em uma afronta a todas as gerações de Direitos Humanos, pois visa tolher a liberdade, a igualdade e a solidariedade feminina. A liberdade é violada no momento em que o homem submete a mulher ao seu domínio, vindo a constrangê-la e impedi-la de manifestar a própria vontade. Deste modo, a mulher vê seu direito de ir, vir e pensar a seu modo desaparecer, já que encontra-se submissa aos poderes e vontades de outrem. O direito à igualdade torna-se restrito a partir do momento em que, culturalmente, o poder físico, econômico, psicológico, social, e, sobretudo, emocional, centram-se a figura do homem.
Os espaços públicos e privados ainda hoje impem uma disputa de poder entre os sexos e marcam a inferioridade do feminino em relação ao masculino (ROCHA, 2012, p.185). Ademais, ao debater a questão gênero no âmbito social durante os tempos atuais, nitidamente enxerga-se uma afronta à terceira geração dos Direitos Humanos: a solidariedade, visto que a mulher, mesmo com todas as estatísticas atuais, nunca é vista socialmente como vítima e não recebe a devida atenção estatal da mesma maneira que o homem recebe e sempre recebeu. A violência de gênero, portanto, atinge a cidadania das mulheres e suas liberdades essenciais, impedindo-as de tomar decisões de maneira autônoma e livre e restringindo direitos inerentes a qualquer ser humano.
Em sentido estrito, a violência pode ser classificada em três modalidades, segundo a Organização Mundial da Saúde: violência interpessoal, violência contra si mesmo e violência coletiva.
Na violência interpessoal, englobam-se tanto a violência física como a psicológica, e geralmente ocorrem em ambientes tanto públicos como privados. Como exemplos de violência interpessoal, tem-se a violência doméstica, violência sexual e a violência praticada contra crianças e adolescentes.
A violência contra si mesmo, como o próprio nome já diz, é uma tentativa de se auto infligir, englobando, portanto o suicídio, as tentativas e as automutilações.
Já a violência coletiva abarca mais duas espécies: a violência social e a violência urbana, sendo portanto, um tipo de violência decorrente das desigualdades sociais existentes.
Ademais, se faz necessário compreender o conceito de violência de gênero, também entendida como violência contra a mulher, antes de adentrar no assunto violência doméstica e suas definições. Segundo Maria Amélia de Almeida Teles (2012, p.14),
a sociologia, a antropologia e outras ciências humanas lançaram mão da categoria gênero para demonstrar e sistematizar as desigualdades socioculturais existentes entre homens e mulheres, que repercutem na esfera da vida pública e privada de ambos os sexos, impondo a eles papéis sociais diferenciados que foram construídos historicamente, e criaram polos de dominação e submissão. Impõe-se o poder masculino em detrimento dos direitos das mulheres, subordinando-as às necessidades pessoais e políticas dos homens, tornando-as dependentes.
Portanto, o termo gênero é empregado para demonstrar de forma clara as desigualdades sociais e econômicas entre mulheres e homens, devido à opressão e discriminação historicamente vividas pelas mulheres. Possui como ponto de partida a posição de inferioridade feminina em relação aos homens, que por sua vez é inserida na vida da mulher desde o seu nascimento através dos parâmetros sociais ainda arraigados a um sistema familiar patriarcal.
Diante disso, o conceito de violência de gênero é entendido como “uma relação de poder do homem e de submissão da mulher” (TELES, 2012, p.16). A concretização dessa violência não é de todo modo natural e instintiva do ser humano, mas sim de padrões impostos aos homens e às mulheres que visam determinar o comportamento de cada um, para tanto, determina que homens devem ser agressivos e mulheres devem dóceis e submissas.
A expressão “violência contra a mulher”, portanto, é o alvo principal da violência de gênero, e “foi assim concebida por ser praticada contra pessoa do sexo feminino apenas e simplesmente pela sua condição de mulher” (TELES, 2012, p.17).
No entanto, o termo gênero não pode ser confundido com sexo, visto que este descreve características e diferenças biológicas, relacionadas à anatomia e fisiologia dos organismos que pertencem ao sexo feminino e masculino. Freud, ao efetuar uma verdadeira ruptura epistemológica com a sexologia, distinguiu os dois campos da sexualidade: a determinação anatômica e biológica, portanto a determinação sexual, e a representação social e psíquica, constituindo, portanto, a identidade sexual do outro e consequentemente, seu gênero. Conclui-se que, naturalmente, é possível a não concordância entre o psíquico e o anatômico.
Como bem preceitua Maria Berenice Dias (2015, p.48), “foi a absoluta falta de consciência social do que seja violência doméstica acabou condenando essa prática tão recorrente à invisibilidade”, tendo em vista que as agressões contra a mulher sequer estavam no rol de violações aos direitos humanos.
Apenas no ano de 1993, durante a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos das Nações Unidas, que ocorreu em Viena, ficou reconhecido que a violência contra as mulheres era um obstáculo ao desenvolvimento, à paz e aos ideais de igualdade entre os seres humanos, sendo proclamado em 1994, pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica. Destarte, também considerou que a violência contra as mulheres é uma violação aos direitos humanos, a qual se baseia no fato de a pessoa agredida ser do sexo feminino.
Essa Convenção, a qual foi ratificada pelo Brasil em 1995 e é mencionada na ementa da Lei Maria da Penha, evidencia o propósito de preservar os direitos humanos das mulheres, visto que no art. 6º, quando diz que “A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”, demonstra que se faz necessário ressaltar essa referência, mesmo que fosse considerada desnecessária. Mesmo que tenha havido reiteração em norma infraconstitucional daquilo que a Constituição já prevê, a prática indica que não é o que costuma ser cumprido (SOUZA, p. 42).
2.2 A violência contra a mulher nos dias atuais
Quando se trata de violência contra a mulher, deve-se salientar que seu início é silencioso e não recebe a devida atenção quando começa a se manifestar no ambiente doméstico ou familiar. Geralmente, esse tipo de violência faz parte do cotidiano das cidades, do país e do mundo, e é por demais banalizado, sendo tratado como algo que faz parte da vida. A violência contra a mulher está de tal forma arraigada na cultura humana que se dá de forma cíclica, como um processo regular com formas bem definidas: tensão relacional, violência aberta, arrependimento e lua de mel. Os espaços de convívio sem violência vão se tornando cada vez mais restritos, insuportáveis, o que pode levar a um desfecho trágico e fatal (TELES, p.23)
Em geral, as vítimas só costumam procurar as unidades de saúde quando a violência já atingiu um nível crítico, que se iniciou com violências psicológicas, agressões verbais e morais até atingirem o aspecto físico. Em razão disso, as estatísticas relacionadas à violência de gênero não demonstram a realidade social, já que ainda é pequeno o número de mulheres que buscam o auxílio das instituições públicas.
O fundamento é cultural e decorre da desigualdade no exercício do poder, o qual gera uma relação de dominante e dominado. O processo de naturalização é feito a partir da dissimulação, utilizada com o intuito de tornar invisível a violação conjugal. A partir daí, esse fenômeno é ocultado e naturalizado por meio de um pacto tradicionalmente estabelecido, que também é referendado pelo Estado.
Acostumada a realizar-se exclusivamente com o sucesso do par e o desenvolvimento dos filhos, a mulher não consegue encontrar, em si, um centro de gratificação própria. O medo, a dependência econômica, o sentimento de inferioridade, de menos valia, decorrentes da ausência de espaços de realização pessoal, impuseram-lhe a lei do silêncio. Nem sempre é por necessidade de sustento ou por não ter condições de prover sozinha a própria subsistência que ela se submete e não noticia as agressões de que é vítima. Em seu íntimo, se acha merecedora da punição por ter deixado de cumprir as tarefas que acredita serem de sua exclusiva responsabilidade. O sentimento de medo e culpa a impedem de usar a queixa como forma de fazer cessar a agressão. Por isso, ainda é insignificante o número de denúncias da violência ocorrida dentro do lar.
Antes mesmo de o relacionamento tornar-se abusivo, há sinais indicativos que merecem cuidado: apego rápido, ciúme excessivo, controle do tempo, isolamento da família e dos amigos, uso de linguagem derrogatória, culpabilização da mulher e minimização dos abusos. A própria vulnerabilidade do enamoramento e do apaixonamento converte-se em cegueira.
O ciclo da violência tem como marco inicial o silêncio, seguido da indiferença. Após, surgem reprovações, reprimendas, reclamações. Em seguida, começam os castigos e as punições. A violência psicológica transforma-se em violência física. As agressões se limitam à pessoa da vítima. O companheiro destrói objetos da vítima, a ofende diante dos filhos e os ameaça, usando-os como “massa de manobra”, pois sabe que estes são pontos fracos da companheira.
Facilmente a vítima encontra explicações a justificativas para o comportamento do companheiro. Acredita que é uma fase e que irá passar, e que tal comportamento é causado pelo estresse, pelo trabalho ou pela má situação econômica no lar.
Para evitar conflitos, afasta-se dos amigos, submete-se à vontade do agressor, passando a abdicar de roupas, maquiagens e abrindo mão da própria vaidade para não desagrada-lo. Fica em constante estado de insegurança e medo de desapontar o companheiro, e por isso tenta a todo o momento agradá-lo, tornando-se dependente do mesmo. Passa a anular-se e abdicar de seus desejos, da sua realização pessoal e objetivos de vida, virando a partir daí um alvo fácil para o agressor, que satisfaz plenamente seu desejo de dominação resultante de um comportamento controlador.
A necessidade de dominação da vítima se manifesta através do isolamento da vítima do mundo exterior, afastando-a da família, dos amigos, impedindo-a de trabalhar sob a justificativa de conseguir manter os gastos da família sozinho. A partir daí, a mulher distancia-se das pessoas junto às quais poderia buscar apoio. Perde a possibilidade de contato com quem poderia incentivá-la a romper com a escalada da violência (DIAS, p. 27).
O homem sempre atribui a culpa à mulher, justificando seu descontrole na conduta dela: gastos em excesso, falta de responsabilidade com as tarefas domésticas e com os filhos. Justifica que a vítima não age da maneira como deveria, da maneira correta, e diante disso, a vítima reconhece que em parte a culpa é sua e perdoa seu agressor.
Para evitar novos conflitos, acaba acatando a todas as ordens e recua, abrindo ainda mais brecha para que a violência se manifeste. Agora que está sozinha, o medo da solidão a torna dependente e insegura, bem como a mantém refém do abuso psicológico que tem sofrido e virá a sofrer do seu companheiro.
Após a agressão, geralmente o companheiro tende a se mostrar arrependido, e demonstra sinais de arrependimento ao pedir perdão, lamentar-se pelo ocorrido, chorar, dar flores à sua companheira e prometer não repetir o feito. Justifica seu ciúme excessivo e sua dominação como sendo excesso de amor pela vítima, o que acaba ludibriando a mesma, que passa a acreditar que a cena não se repetirá e o companheiro se tornará alguém melhor.
A relação do casal tende a melhorar e a vítima realiza-se ao acreditar que fatos violentos não irão mais ocorrer em sua vida. Até que novamente, o companheiro passa a manifestar sua dominação, e o ciclo violento torna-se um espiral, já que o agressor mostra-se arrependido com o intuito de que sua companheira submeta-se novamente à sua dominação.
A ideia da família como uma entidade inviolável, não sujeita à interferência do Estado e da Justiça, sempre fez com que a violência se tornasse invisível, pois é protegida pelo segredo. Agressor e agredida firmam um verdadeiro pacto de silêncio, que o livra da punição. Estabelece-se um círculo vicioso: a mulher não se sente vítima, o que faz desaparecer a figura do agressor. Mas o silêncio não impõe nenhuma barreira. A falta de um basta faz a violência aumentar. O homem testa seus limites de dominação. Como a ação não gera reação, exacerba a agressividade. Para consegui dominar, para manter a submissão, as formas de violência só aumentam. (TELES, p. 28)
De maneira geral, o agressor tem um comportamento social considerado “normal”, mostrando-se um companheiro agradável quando junto de sua companheira em ambientes públicos, não deixando nenhum vestígio de dominação da sua parte para que outras pessoas percebam. Além do mais, quando indagada sobre algum tipo de mau trato sofrido pelo companheiro, a vítima tende a minimizar o fato, e, por vezes, até nega, para que não se sinta pressionada pela opinião alheia a fazer o que ela mesma já sabe que deveria fazer: abandonar o relacionamento e desvincular-se do agressor.
O agressor, durante a prática de atos violentos, precisa ter controle total da situação, de modo que não restam chances à vítima para que dele desprenda-se. Também a impotência da vítima, que não consegue ver o agressor punido, a impede de reagir ou desvincular-se da relação, gerando portanto, feridas internas e externas que obrigam a vítima a aceitar a situação sem nenhuma alternativa que vise erradicar esse tipo de situação do cotidiano familiar.
Apesar deste tipo de violência derivar de um longo processo histórico, apenas no ano de 1980 iniciou-se um levantamento do número de homicídios femininos. Foram assassinadas mais de 92 mil mulheres nos últimos 30 anos, sendo 43 mil só na última década. No entanto, com o advento da lei Maria da Penha no ano de 2006, 10% da taxa de homicídios dentro das residências foi reduzida, indicando que a lei contribuiu para evitar que vários casos de homicídio viesse a se concretizar.
Entre 1980 e 2013, num ritmo crescente ao longo do tempo, tanto em número quanto em taxas, morreu um total de 106.093 mulheres, vítimas de homicídio. Efetivamente, o número de vítimas passou de 1.353 mulheres em 1980, para 4.762 em 2013, um aumento de 252%. A taxa, que em 1980 era de 2,3 vítimas por 100 mil, passa para 4,8 em 2013, um aumento de 111,1%.
O Brasil, num grupo de 83 países com dados homogêneos, fornecidos pela Organização Mundial da Saúde, e com taxa de 4,8 homicídios por 100 mil mulheres, ocupa a 5ª posição, evidenciando que os índices locais excedem, em muito, os encontrados na maior parte dos países do mundo.
No ano de 2014, através dos atendimentos por violência doméstica, sexual e/ou outras violências registrados no SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), que fornece os registros de atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS) por violência doméstica contra crianças, mulheres e idosos, cujos dados coletados constam no Mapa da Violência de 2015, foram atendidas 223.796 vítimas de diversos tipos de violência.
Duas em cada três dessas vítimas de violência (147.691) foram mulheres que precisaram de atenção médica por violências domésticas, sexuais e/ou outras. Portanto, a cada dia de 2014, 405 mulheres demandaram atendimento em uma unidade de saúde, pelo fato de terem sofrido algum tipo de violência (Mapa da violência, 2015).
Também no ano de 2014 foram registrados 52.957 relatos de violência pelo Disque 180. Destes registros, 27.369 corresponderam a relatos de violência física (51,68%), 16.846 de violência psicológica (31,81%), 5.126 de violência moral (9,68%), 1.028 de violência patrimonial (1,94%), 1.517 de violência sexual (2,86%), 931 de cárcere privado (1,76%) e 140 de tráfico de pessoas (0,26%), segundo dados do Balanço 2014 da Secretaria de Política para as mulheres.
Ademais, a partir dos registros do SINAN, no conjunto de todas as faixas etárias, prepondera largamente a violência doméstica. Parentes imediatos ou parceiros e ex-parceiros são responsáveis por 67,2% do total de atendimentos. Os registros do SINAN também levantam o tipo de violência sofrida pela vítima.
A violência física é, de longe, a mais frequente, presente em 48,7% dos atendimentos, com especial incidência nas etapas jovem e adulta da vida da mulher, quando chega a representar perto de 60% do total de atendimentos. Em segundo lugar, a violência psicológica, presente em 23,0% dos atendimentos em todas as etapas, principalmente da jovem em diante. Em terceiro lugar, a violência sexual, objeto de 11,9% dos atendimentos, com maior incidência entre as crianças até 11 anos de idade (29,0% dos atendimentos) e as adolescentes (24,3%), segundo dados do Mapa da violência 2015.
A continuidade de vínculo marital é mais alta hipótese de violência psíquica (de 29%a 43% dos casos). Atinge 20% em casos de espancamento, e mais de 30% nas diferentes formas de controle e cerceamento. Os pedidos de ajuda são mais frequentes (de metade a 2/3 dos casos) após ameaças ou violências físicas, com destaque para as mulheres que recorrem às mães, irmãs e outros parentes. Mas em nenhuma das modalidades as denúncias ultrapassam 1/3 dos casos.
Tanto mulheres agredidas como homens agressores confessos apontam o controle da fidelidade como razão principal para a manifestação da violência (46% e 50%). As mulheres também destacam predisposição psicológica dos parceiros (23%, como alcoolismo, desequilíbrio, etc) e busca de autonomia (19%), não sendo esta última muito bem aceita ou respeitada por eles.
Tais dados revelam o quanto a violência é subnotificada: ela existe, no entanto não costuma ultrapassar as barreiras de onde nasce e se mantém. A crença na impunidade, no temor, faz com que as mulheres não busquem a denúncia como meio de coibir a violência sofrida. Por este motivo, somente 10% da violência sofrida pelas mulheres é levada ao conhecimento policial, já que se torna difícil denunciar e ver punido quem reside sob o mesmo teto e se tem um vínculo familiar e afetivo. Essas mulheres ficam, em média, convivendo um período não inferior a 10 anos com o seu agressor (ROVINSKI, p.8).
O que se busca através da queixa é a certeza da punição para que o agressor não volte a cometer os mesmos atos, e não o agravamento da pena, já que a vítima busca um modo de estabelecer uma relação mais harmoniosa com seu parceiro, de tal forma que a punição não afete negativamente o convívio familiar ou a relação conjugal.
A conduta feminina torna-se ambígua diante de um caso de violência, e tais características relatadas a seguir demonstram esse fato. Primeiramente, a relação entre vítima e agressor constitui-se com base no afeto, e por isso possui diversas dependências recíprocas. Em segundo lugar, são raras as mulheres que constroem sua própria independência ou que pertencem a grupos dominantes. O grupo feminino não constitui uma categoria social dominante. Dizer que há independência não é o mesmo que dizer que há autonomia.
Pessoas, sobretudo as que são vinculadas por laços afetivos, dependem umas das outras. Portanto, não há que se falar em total independência para as partes.
De acordo com Allan Johnson (1997, p.147),
Grupos dominantes são geralmente autônomos no sentido de que não são responsáveis por aqueles que lhes estão abaixo e não têm que pedir permissão para fazer o que desejam. Entretanto, isto não torna os grupos dominantes independentes, (...) porém, eles têm a vantagem de ter muito mais controle sobre o modo como a realidade é definida e podem usar isso para mascarar os acontecimentos
Sendo assim, na maioria das vezes, é o homem o único provedor do sustento familiar, portanto, sendo este preso, deixará de sê-lo, configurando um problema sem alternativas, quando a prole compõe-se de filhos pequenos e a vítima fica impedida de trabalhar fora. Ademais, a pressão externa que a família extensa, os amigos, a Igreja e a sociedade como um todo fazem no sentido de preservação da sagrada família também cria um empecilho diante da tentativa de buscar ajuda erradicar a violência existente dentro do ambiente doméstico. Socialmente, importa mais a preservação como instituição do que o que realmente se passa no seio familiar.
A ideia de inviolabilidade do domicílio e da sacralidade da família desde muito tempo serviu de justificativa para evitar qualquer tentativa de coibir o que ocorria e ainda ocorre dentro do ambiente doméstico e familiar. Por esse motivo, a violência que as mulheres são vítimas nestes ambientes nunca mereceu a devida atenção, nem da sociedade, do legislador e muito menos do Judiciário (TELES, p.31). Embora a violência doméstica tenha seu ciclo, isto apenas gera a possibilidade de descrição, não colaborando para que existam atitudes preventivas. Denota-se que a violência contra as mulheres desenvolve-se em escalada, e, portanto, através desta análise se faz necessária a formulação e implementação de políticas públicas que visem a extinção desse tipo de violência.
Segundo as projeções da Fundação Perseu Abramo no ano de 2014, entre os tipos de violência sofrida, a lesão corporal dolosa é o crime prevalente contra as mulheres. Tais dados mostram que 20% das mulheres sofrem lesão corporal dolosa considera leve, em particular quando vivem no mesmo domicílio. Não é necessário que se trate de casais, portanto, as brigas podem ocorrer entre irmãos, em detrimento da mulher. No entanto, na maioria das vezes, os agentes dessa violência são os próprios companheiros. O crime de ameaça também costuma acompanhar outras modalidades de violência ou substituir a violência física. Entre suas vítimas, 32 % afirmaram ter este fato ocorrido apenas uma vez, e 20% delas apontaram para duas ou três vezes. Entre as vítimas de lesão corporal dolosa, 11% admitiram sua ocorrência por mais de dez vezes. Há também aquelas que já perderam a conta do número de espancamentos que sofreram, preferindo mencionar o tempo em que sofreram esse tipo de violência, sendo que a maioria se manteve exposta a esse tipo de violência por dez anos, e 4% das vítimas mencionaram mais de dez anos ou toda a vida.
Nos casos de ameaça à integridade física da companheira com armas, o marido agressor comparece com 53%, vindo a subir essa porcentagem para 70% quando se tomam todas as modalidades de violência investigada, exceto o assédio sexual.
Denota-se, portanto, a esmagadora maioria dos agressores são os homens amados das vítimas, pessoas que fazem parte do convívio diário, mantém uma relação de afeto e dependência recíproca dentro da relação estabelecida.
A Constituição Federal, no art. 226, impôs ao Estado o dever de assegurar a assistência à família e criar mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. No entanto, no momento em que o poder público passou a reconhecer alguns crimes como de menor potencial ofensivo, esqueceu-se de excluir a violência doméstica. Tais crimes passaram a ser julgados de maneira sumária por juizados especiais, admitindo a aplicação de transação penal e a aplicação de medidas despenalizadoras.
A Lei dos Juizados Especiais – Lei 9.099/95, ao possibilitar a aplicação da pena antes mesmo do oferecimento da denúncia, sem discussão da culpabilidade, veio a desafogara justiça, no entanto, significou um grave retrocesso no combate à violência doméstica, já que não se comporta a violência sofrida pela mulher no conceito de delito de menor lesividade.
São considerados como crime de menor potencial ofensivo os crimes com pena de até dois anos, segundo consta no art. 61 da Lei 9.099/95, e a grande maioria dos delitos cometidos contra as mulheres, como por exemplo a lesão corporal leve, ameaça, injúria e calúnia, se enquadram nesta categoria. Portanto, os crimes contra a integridade física, psicológica e que atentem contra a dignidade feminina, eram encaminhados para os JECRIMs – Juizados Especiais Criminais.
No entanto, na tentativa de desafogar o judiciário e coibir a impunidade, deixou o legislador de priorizar a vida e a pessoa humana, bem como de garantir sua integridade física, ao condicionar à representação os delitos de lesão corporal leve e lesão culposa. Ademais, o Estado omitiu-se de sua obrigação de punir, transferindo para a vítima a iniciativa de buscar a penalização do seu agressor.
No desespero de agilizar o judiciário, a lei criou uma lacuna ao condicionar a ação penal à iniciativa da vítima, pois existe uma relação hierarquizada de poder entre a vítima e o agressor.
Não há como exigir que o desprotegido, o hipossuficiente, o subalterno, formalize queixa contra o seu agressor. Esse desequilíbrio também ocorre no âmbitos das relações familiares, já que, em sua maioria, a violência é perpetrada por maridos, companheiros ou pais, contra mulheres, crianças e idosos. É secular a discriminação que coloca a mulher em posição de inferioridade e subordinação ao homem. A desproporção, quer física, quer de valoração social, que ainda existe entre os gêneros masculino e feminino não pode ser desconsiderada. Ou seja, nas relações familiares, a violação da integridade física e psicológica da mulher nunca poderia ser classificada como de pequeno potencial ofensiva. A submissão que lhe é imposta e o sentimento de menos valia a deixa cheia de medo e vergonha. Aliás, esse é o motivo de não denunciar a primeira agressão. (DIAS, pag. 32)
Portanto, denota-se a falta de percepção do legislador de que a violência contra a mulher merecia um tratamento diferenciado e com maior facilidade da vítima para recorrer ao judiciário, visto que condicionou a mulher à representação no delito de lesões corporais, fato que obviamente torna-se dificultoso quando há uma relação de afeto e dependência entre agressor e agredida.
Na maioria das vezes, a vítima não busca a separação do agressor no momento em que realiza a queixa, nem deseja sua prisão, apenas quer que as agressões sofridas cessem. A mulher só recorre ao judiciário após todas as tentativas anteriores demonstrarem falha, pois a crença na mudança e melhora de comportamento do agressor já não sustenta mais sua submissão a tal violência. Após ter perdoado o agressor por diversas vezes acreditando em um potencial melhoramento, após diversas tentativas de melhorar a relação tentando agrada-lo, quando a violência chega em um nível quase trágico, a mulher percebe que jamais conseguirá mudar o companheiro sozinha, e então busca ajuda externa, fora da relação conjugal.
Segundo o entendimento da autora Heleieth Saffioti (2015, p. 71),
as pessoas envolvidas na relação violenta devem ter o desejo de mudar. É por esse motivo que não se acredita numa mudança radical de uma relação violenta, quando se trabalha exclusivamente com a vítima. Sofrendo esta algumas mudanças, enquanto a outra parte permanece o que sempre foi, mantendo seu habitus, a relação pode, inclusive, tornar-se mais violenta.
Por isso, a mulher, quando toma a iniciativa de buscar auxílio, já sofreu e apanhou muito e se vê completamente impotente diante de toda violência sofrida e submissão em que se encontra na relação.
Somente após a criação das delegacias especializadas no atendimento à mulher a violência doméstica recebeu tratamento diferenciado, sendo a primeira delegacia implementada em São Paulo, em 1985. No entanto, apenas no ano de 1994, foi aprovada a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, que é o documento em vigor no Brasil que trata especificamente da violência contra a mulher, considerado também como mais importante neste tema. Tal Covenção foi ratificada no ano de 1995, tornando-se exigível por qualquer mulher brasileira que se encontre em situação de risco.
Antes da edição da Convenção de Belém do Pará, foram feitos alguns documentos a respeito da violência contra a mulher, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA). São eles: a Consulta Interamericana Sobre a Mulher e a Violência de 1990, a Declaração Sobre a Erradicação da Violência contra a mulher, também aprovada em 1990 pela 25ª Assembleia de Delegadas, e a Resolução AGIRES 1128 (XXXI-O/91), e Proteção da Mulher Contra a Violência, sendo eles, portando, documentos com marco inicial na área da violência de gênero.
A Convenção de Belém do Pará inicia reconhecendo que a violência contra a mulher constitui violação dos direitos humanos e liberdades fundamentais, e define essa violência como sendo qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada, e acaba por reconhecer expressamente que a violência é um fenômeno que afeta todas as esferas da vida da mulher: família, escola, trabalho e comunidade.
A Convenção de Belém do Pará preocupou-se em demonstrar que a violência contra a mulher, mesmo que ocorra no âmbito da família ou da unidade doméstica, também interessa à sociedade e ao Estado, e constituindo uma violação dos direitos humanos femininos principalmente na esfera privada, na qual os agressores são geralmente parentes ou pessoas próximas. Tal Convenção também definiu de forma ampla a distinção entre violência doméstica e violência intrafamiliar.
A violência doméstica caracteriza-se por atos praticados tanto dentro como fora da residência familiar, sendo portanto o território algo simbólico. No caso de uma separação, na maioria das vezes o homem passa a perseguir a mulher para que a relação continue existindo, pelo menos de maneira simbólica, levando a praticar atos considerados como violência doméstica.
Já a violência intrafamiliar pode ocorrer fora do território considerado como simbólico e também não ser caracterizada como violência doméstica, pois se dá em razões das relações de parentesco consaguíneo e/ou afins.
A Convenção de Belém do Pará conferiu importantes responsabilidades ao Estado, com o intuito de conferir proteção à mulher, tanto no âmbito privado como no ambiente público. Tem como objetivo a prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher, conferindo aos Estados a responsabilidade de tomar medidas que previnam a violência e assegurar para as vítimas a existência de recursos adequados e efetivos que compensem as violações sofridas, bem como responsabilizar os violadores.
Também no âmbito da proteção internacional às mulheres, cabe destacar a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, mais conhecida como Convenção da Mulher, que foi adotada pela Assembleia Geral da ONU no ano de 1979, e entrou em vigor em setembro de 1981. Essa Convenção abarca áreas como trabalho, saúde, educação, direitos civis e políticos, estereótipos sexuais, prostituição e família, prevendo possibilidades de ações afirmativas nessas áreas.
A Convenção da Mulher foi o primeiro instrumento internacional que dispôs amplamente sobre os direitos humanos da mulher, tendo como propósito a promoção dos direitos da mulher na busca da igualdade de gênero e a repreensão de quaisquer discriminações contra ela. Mas somente em 1984 o Brasil veio a subscrever essa Convenção, passando a considerar o “mínimo ético irredutível”, revelando uma consciência ética que traduz o consenso internacional acerca dos parâmetros protetivos.
No entanto, apenas em 1994 tal Convenção foi ratificada integralmente, e foi promulgada somente em 2002 pelo Presidente da República, sendo encaminhado neste mesmo ano ao comitê da convenção o primeiro relatório de ações brasileiras referente aos anos 1985, 1989, 1993, 1997 e 2001.
Denota-se, através de breve análise das datas citadas, o atraso da legislação brasileira em relação às mulheres, particularmente à violação dos direitos humanos femininos. Tais direitos são vistos pelo poder público e pela sociedade conservadora como algo que deve ficar restrito ao âmbito privado, dentro do lar e sem a intervenção de terceiros, evidenciando o lugar onde a mulher deve permanecer e a quais tratamentos deve ser submetida.
Ademais, uma lei específica brasileira no combate à violência contra a mulher só foi criada no ano de 2006, de forma que o Brasil cumprisse com os compromissos assumidos internacionalmente. A referida lei denominou-se Lei Maria da Penha, ou Lei 11.340/2006. A mesma passou a regulamentar os direitos assegurados a nível internacional, ratificados pelo Brasil por meio de tratados sobre direitos humanos, e possui natureza constitucional, encontrando-se portanto, no topo da pirâmide normativa, o que constituiu um grande avanço no âmbito legislativo quando se trata de uma lei que visa beneficiar as mulheres.
A Lei Maria da Penha está adequada à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém de Pará, OEA, 1994), à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW, ONU, de 1979) e à Constituição Federal (Brasil, 1988).
No entanto, mesmo que tal lei proclame que a violência doméstica constitua uma violação dos direitos humanos, não visou transferir para a Justiça Federal a responsabilização dos agressores. São, portanto, de responsabilidade da Justiça Estadual os crimes praticados contra as mulheres. Sendo assim, mesmo que ocorra grave violação dos direitos humanos, o Procurador-Geral da República não pode suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.
A Lei Maria da Penha também impôs a adoção de políticas públicas para resguardar os direitos humanos das mulheres, fato esse que demonstra imenso avanço social quando se trata de prevenir e erradicar esse tipo de violência. Apenas a responsabilização do agressor não garante que o mesmo fato não vá ocorrer novamente com outras mulheres. Sendo assim, se faz necessária uma reeducação social com relação aos papeis estabelecidos socialmente para cada gênero, de modo que a diversificação dos papeis hoje em dia desempenhados sejam de todo modo aceitos e não gerem conflitos, seja no âmbito público como no âmbito privado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fruto de um fenômeno histórico e cultural da sociedade moderna, a violência contra a mulher tem se arrastado ao longo dos anos mesmo com grandes avanços no âmbito legislativo.
No entanto, denota-se que a intervenção estatal no modelo patriarcal de família ainda é inexistente, de forma que esse modelo ainda carrega consigo o lastro de poder e violência de todo o contexto histórico que o envolve.
Dessa forma, o que observa-se mesmo dias atuais, são modelos familiares que repercutem uma hierarquia entre seus membros, de maneira que o homem é o provedor do lar e “chefe” da casa, e a mulher mantém seu papel de dona de casa e educadora dos filhos, ainda que trabalhe fora e tenha renda própria.
Partindo dessa premissa, ao analisar o viés social e cultural no qual estamos inseridos, denota-se que a violência contra a mulher ainda é vista como algo natural e banalizado socialmente, seja no ambiente doméstico ou qualquer outro. Apesar das evoluções sociais e jurídicas, não há uma desconstrução concreta dos papeis impostos para cada gênero outras épocas.
Dessa forma, ao abster-se de buscar uma conscientização social como meio de prevenção da violência, o Estado permite que a mesma continue se propagando ao longo dos anos e assim fazendo mais vítimas diária e silenciosamente.
Outrossim, mesmo com o advento da Lei Maria da Penha e seu aspecto punitivo, apenas a aplicação de penas corretivas ou medidas de afastamento não são garantias de que a violência não volte a ocorrer. Enquanto não houver uma reeducação imposta a ambos os gêneros, seja no contexto familiar ou educacional, tal violência continuará sendo repercutida e violando os direitos humanos femininos.
Em contrapartida ao amparo punitivo dado pela Lei Maria da Penha, a carência de um amparo assistencial que se concretize após a denúncia faz com que muitas vítimas voltem atrás na decisão de denunciar o agressor. Sabem que a sociedade, em diversos setores (delegacias, trabalho, família) ainda é machista e ainda a trata como a culpada por todas as atrocidades da qual a vítima, e por isso na grande maioria das vezes não ganha o conforto e apoio daqueles que estão por perto.
Sendo assim, ao analisar o contexto histórico do papel imposto ao gênero feminino, percebe-se que esse padrão continua enraizado de tal forma no contexto social que, mesmo com os avanços e as grandes conquistas femininas, sua liberdade e sua autonomia financeira, ainda assim a mulher não é vista como sujeito autônomo e detentora de direitos humanos, sendo submetida diariamente a situações que violam sua vida e dignidade.
Cabe ao Estado, portanto, a obrigação de delinear políticas públicas que busquem uma desintegração social de um contexto histórico deveras ultrapassado. É uma obrigação estatal desmistificar a ideia de que homens e mulheres nasceram com papeis impostos ao seu gênero, de forma que a família não seja mais um ambiente intocada pelo sistema, pois é nela que as bases humanas consolidam-se.
Sendo assim, a violência contra a mulher que se perpetua com o passar dos anos, é um problema de Estado e uma violação aos direitos humanos. Mesmo ganhando notoriedade e atenção jurídica e social, os números registrados ainda são alarmantes, sendo que grande parte dos casos sequer chegam a ser registrados.
Mais do que uma lei punitiva, é preciso ensinar e conscientizar uma sociedade que ainda existe nos moldes de um século passado. Mais do que isso, é preciso desconstruir um sistema patriarcal fundado na ideia de que homens são sujeitos de direitos, e mulheres de deveres. É fundamental trazer o gênero ao debate, não só nas famílias como nas escolas, por meio da mídia e onde mais for possível para que a informação chegue ao alcance de todos.
Somente quando as bases estruturais de uma sociedade puderem inserir uma educação familiar e educacional com equidade entre os gêneros e o Estado enxergar que é seu esse papel, é que mulheres receberão o respeito a que fazem jus e terão o mínimo de dignidade em todos os ambientes em que se encontrarem. Não é preciso fazer mais vítimas para que, consequentemente, exista punição como meio de correção.
Dessa forma, ressalta-se a importância das políticas públicas como modo de prevenção à violência contra a mulher e a necessidade de atenção estatal para uma reeducação social que vise ressocializar homens e mulheres, para que convivam com igualdade, de forma que a punibilidade não seja a única alternativa para a prevenção a esse tipo de violência.
É preciso formar uma base sólida em todo e qualquer ser humano de somos todos detentores de direitos e deveres, inseridos no mesmo contexto social e merecedores de respeito e igualdade.
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Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Aluna especial do Mestrado em Direito e Justiça Social - FURG e Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ESSY, Daniela Benevides. A evolução histórica da violência contra a mulher no cenário brasileiro: do patriarcado à busca pela efetivação dos direitos humanos femininos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jul 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50534/a-evolucao-historica-da-violencia-contra-a-mulher-no-cenario-brasileiro-do-patriarcado-a-busca-pela-efetivacao-dos-direitos-humanos-femininos. Acesso em: 22 dez 2024.
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