RESUMO: O presente artigo discorre sobre a decisão no HC 124306 julgado pelo Supremo Tribunal Federal em que citou uma possível mudança de entendimento da jurisprudência acerca da atipicidade do crime de aborto quando realizado até o 3º mês da gestação.
SUMÁRIO: 1. CONCEITO DE ABORTO 2. ESPÉCIES DE ABORTO 3. EXCEÇÕES A TIPIFICAÇÃO DO ABORTO 4. REQUISITOS PARA A ATIPICIDADE DO ABORTO ATÉ O 3º TRIMESTRE 5. DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS MULHERES 6. STATUS JURÍDICO DO EMBRIÃO DURANTE A FASE INICIAL DA GESTAÇÃO 7. CONCLUSÃO 8. REFERÊNCIAS
Palavras chave: Aborto. Código Penal. Supremo Tribunal Federal. Princípio do impacto desproporcional.
1. CONCEITO DE ABORTO
Aborto é a interrupção da vida intrauterina, com a destruição do produto da concepção. Assim, tem-se como o termo inicial de quem pratica o aborto o início da gravidez. Desta forma, seria a partir da fecundação a partir do ponto de vista biológico. No entanto, na esfera jurídica, prevalece a posição de que a gestação tem inicio com a implantação do óvulo fecundado no endométrio.
Deve-se ressaltar que não tem importância jurídica para a tipificação do crime de aborto, se a gravidez é natural ou não (inseminação artificial).
2. ESPÉCIES DE ABORTO
Com relação às espécies de aborto, segundo Rogério Sanches, existem:
1) Aborto natural: interrupção espontânea da gravidez, normalmente causada por problemas de saúde da gestante.
2) Aborto Acidental: decorrente de acidentes em geral e, por isso, em regra, atípico.
3) Aborto Criminoso: tipificado nos Código Penal (CP)
4) Aborto Legal ou permitido: previsto no art. 128 do CP, incluídas interpretações extensivas.
5) Aborto Miserável ou econômico-social: praticado por razões de miséria, incapacidade financeira de sustentar uma vida futura;
6) Aborto Eugenésio ou eugênico: praticado em face dos riscos comprovados de que o feto nasça com graves anomalias psíquicas ou físicas (exculpante não reconhecida pela nossa lei, exceto no caso dos abortos de fetos anencéfalos que a jurisprudência reconheceu sua possibilidade).
7) Aborto Honoris Causa: praticado para interromper gravidez extraconjugal.
8) Aborto Ovular: realizado até a 8ª semana de gestação.
9) Aborto Embrionário: realizado até a 15ª semana de gestação.
10) Aborto Fetal: praticado após a 15ª semana de gestação.
3. EXCEÇÕES A TIPIFICAÇÃO DO ABORTO
O art. 128 do Código Penal estabelece as possibilidades de aborto em que não há a tipificação do crime:
1) Aborto necessário ou terapêutico: realizado para salvar a vida da gestante;
2) Aborto humanitário, sentimental, ético ou piedoso: gravidez decorrente do crime de estupro e a gestante ou o representante, quando incapaz a gestante, consente com o aborto.
No entanto, o Supremo Tribunal de Justiça recentemente decidiu pela atipicidade de outros dois casos de aborto. São eles:
1) Interrupção da gravidez de feto anencéfalo: através do julgamento da ADPF 54/DF, criou uma nova exceção nos casos de fetos com problemas físicos específicos (Plenário. ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12/4/2012).
2) Interrupção da gravidez no primeiro trimestre da gestação: a 1ª Turma do STF, no julgamento do HC 124306, mencionou a possibilidade de se admitir a interrupção da gravidez no primeiro trimestre da gestação provocado pela própria gestante (art. 124) ou com o seu consentimento (art. 126) também não seria crime (HC 124306/RJ, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgado em 29/11/2016. Info 849).
4. REQUISITOS PARA A ATIPICIDADE DO ABORTO ATÉ O 3º TRIMESTRE
De acordo com o decidido no HC 124306 citado, o Min. Roberto Barroso, decidiu que, para ser compatível com a Constituição, a criminalização do aborto deve se atentar a proteger um bem jurídico relevante, o comportamento incriminado não pode constituir exercício legítimo de um direito, bem como deverá haver proporcionalidade entre a ação praticada e a reação estatal. Desta forma, em não cumprindo qualquer desses requisitos, a tipificação do crime seria inconstitucional.
Assim, a prática do aborto até o 1º trimestre da gravidez pela gestante ou com seu consentimento não poderia ser tipificado como crime, já que o comportamento incriminado seria um exercício legítimo de um direito fundamental e, além disso, não haveria proporcionalidade entre a ação praticada e a reação estatal.
A tipificação do aborto ofende os direitos fundamentais das mulheres, com reflexos sobre a sua dignidade humana. A mulher que realiza um aborto, o faz por se encontrar diante de uma decisão trágica e não precisa que o Estado torne a sua vida ainda pior, processando-a criminalmente.
Desta forma, a mulher que pratica o aborto age de forma legítima, sendo também, por via de consequência, legítima a conduta do profissional de saúde que a viabiliza. Se assim não fosse entendido, a mulher teria que fazer o eventual aborto em clínicas clandestinas onde a salubridade é bem duvidosa ou, pior ainda, realizar o autoaborto através de medicamentos que tem um alto grau de risco à sua própria saúde, como por exemplo, pelo uso de Misoprostol, o qual originalmente foi criado para a prevenção e tratamento de úlceras por inibir a secreção gástrica, no entanto, o medicamento passou a ser usado como abortivo.
Dentre os efeitos colaterais do aborto por uso de Misoprostol estão: hemorragias, dores abdominais, sangramentos, distúrbios menstruais, náusea e vômitos, podendo ocorrer perda de fertilidade e até a morte da gestante. Caso o feto sobreviva, são grandes as chances de ele desenvolver lesões neurológicas ou malformações graves, como a Síndrome de Moebius.
5. DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS MULHERES
De acordo com o Min. Roberto Barroso em seu voto, “os direitos fundamentais vinculam todos os Poderes estatais, representam uma abertura do sistema jurídico perante o sistema moral e funcionam como uma reserva mínima de justiça assegurada a todas as pessoas. Deles resultam certos deveres abstenção e de atuação por parte do Estado e da sociedade”.
No entanto, os direitos fundamentais estão sujeitos a limites imanentes e a restrições expressas. Além disso, é possível que entrem em conflito entre si, que deve ser resolvido através dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
Com relação especificamente à criminalização do aborto, tal fato atinge gravemente diversos direitos fundamentais das mulheres com reflexos inevitáveis da gestação sobre a dignidade humana.
Dentre os direitos garantidos ao ser humano pela Constituição da República, está o direito a liberdade e a privacidade. Dele podemos destacar a autonomia que engloba a liberdade de escolhas básicas e decisões morais sem influência do Estado e da Sociedade a que, especialmente as mulheres gozam com relação ao seu corpo.
Todo indivíduo deve ter assegurado um espaço legítimo de privacidade dentro do qual lhe caberá viver seus valores, interesses e desejos. Em se tratando do caso da criminalização do aborto, a mulher tem suprimida a autonomia de controlar o próprio corpo e de tomar as decisões a ele relacionadas, inclusive a de cessar ou não uma gravidez.
Não é razoável que o Estado imponha a uma mulher com poucas semanas de gravidez que leve a gestação até o fim contra sua vontade. Segundo o voto do Min. Luís Roberto Barroso: “Isso significaria considerar como se este útero estivesse a serviço da sociedade, e não de uma pessoa autônoma, no gozo de plena capacidade de ser, pensar e viver a própria vida.”.
A criminalização do aborto afeta tanto a integridade física quando psíquica da mulher. Com relação à primeira, o corpo da mulher naturalmente passará pelas transformações, riscos e consequências da gravidez. Já a integridade psíquica da mulher é afetada por ser obrigada a fazer renúncias, assumir obrigações para a vida toda e dedicação a um outro ser. Ter um filho por determinação do direito penal constitui grave violação à integridade física e psíquica de uma mulher, e é justamente por conta disso que muitas mulheres preferem se submeter ao risco de responder criminalmente pelo crime de aborto do que gerar um filho não desejado.
Destaca-se que o aborto também viola os direitos sexuais e reprodutivos da mulher tendo em vista que, após anos de opressão, a mulher finalmente conquistou a liberdade de decidir quando deseja ter filhos e se quer ter filhos, sem discriminação, coerção e violência.
Desta forma, entendeu o Min. Luís Roberto Barroso no voto que “a criminalização do aborto afeta a capacidade de autodeterminação reprodutiva da mulher, ao retirar dela a possibilidade de decidir, sem coerção, sobre a maternidade, sendo obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada.”.
Ademais, além de todos os direitos violados citados, há a violação da igualdade de gênero. Isso porque é a mulher que suporta o ônus integral da gravidez, tendo em vista que o homem não engravida, somente haveria igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca da sua manutenção ou não.
Ressalta-se que a criminalização do aborto atinge com mais gravidade as mulheres de camadas mais pobres, pois não têm acesso a médicos e clínicas particulares, nem podem se valer do sistema público de saúde para realizar o procedimento abortivo. Desta forma, há um impacto desproporcional sobre as mulheres pobres.
Assim, o Estado retira da mulher a possibilidade de procedimentos médicos seguros. Não raro, mulheres pobres precisam recorrer a clínicas clandestinas sem qualquer infraestrutura que lhes oferecem elevados riscos de lesões, mutilações e óbito. Ademais, essas mesmas mulheres pobres são as principais vítimas de autoabortos fracassados que trazem sérios riscos a suas vidas.
Desta forma, é evidentemente que a criminalização do aborto atinge o núcleo essencial dos direitos fundamentais das mulheres, bem como, viola a proporcionalidade já que ultrapassa os limites constitucionais toleráveis quanto à proteção da vida desse embrião. Ademais, como dito, as principais vítimas da criminalização do aborto são as gestantes pobres, caracterizando-se verdadeira discriminação social velada através de lei proposta pelo próprio Poder Legislativo.
6. STATUS JURÍDICO DO EMBRIÃO DURANTE A FASE INICIAL DA GESTAÇÃO
A doutrina diverge, de forma que de um lado está quem sustenta que existe vida desde a concepção, desde que o espermatozoide fecunde o óvulo, dando origem à multiplicação das células. De outro lado, estão os que sustentam que antes da formação do sistema nervoso central e da presença de rudimentos de consciência – o que geralmente se dá após o terceiro mês da gestação – não é possível ainda falar-se em vida em sentido pleno.
Não há juridicamente uma solução para tal divergência dependendo sempre da religião ou escolha filosófica do intérprete.
No entanto, há consenso no que tange a necessidade do corpo da gestante para a subsistência do feto. Isso porque exista ou não vida a ser protegida independendo da corrente a ser seguida, não há duvidas de que esse embrião só subexiste dentro do corpo da gestante, eis que não é capaz de sobreviver autonomamente, pois não está integralmente formado.
7. CONCLUSÃO
O direito penal deve ser utilizado apenas quando estritamente necessário, de modo que sua intervenção fique condicionada ao fracasso das demais esferas de controle de acordo com o princípio da intervenção mínima. Já de acordo com o princípio da lesividade, exige-se que do fato praticado ocorra lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado.
O Supremo Tribunal Federal no habeas corpus 124.306 analisado entendeu que antes da formação do sistema nervoso central e da presença de rudimentos de consciência não há que se falar em vida em sentido pleno. Assim, não haveria bem jurídico a ser tutelado, já que não se trataria de uma vida até os três meses.
DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA SUA DECRETAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL DO ABORTO NO CASO DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO NO PRIMEIRO TRIMESTRE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. O habeas corpus não é cabível na hipótese. Todavia, é o caso de concessão da ordem de ofício, para o fim de desconstituir a prisão preventiva, com base em duas ordens de fundamentos. 2. Em primeiro lugar, não estão presentes os requisitos que legitimam a prisão cautelar, a saber: risco para a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (CPP, art. 312). Os acusados são primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na hipótese de condenação. 3. Em segundo lugar, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. 4. A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria. 5. A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos. 6. A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios. 7. Anote-se, por derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália. 8. Deferimento da ordem de ofício, para afastar a prisão preventiva dos pacientes, estendendo-se a decisão aos corréus.
Em que pese a decisão ter sido muito importante para o progresso do direito penal brasileiro e mostrar uma tendência de descriminalizar o aborto em geral até o 3º mês, deve-se ressaltar que o STF, através da sua 1ª Turma, a tomou através do controle difuso de constitucionalidade e, portanto, por ter sido analisada no caso concreto, não tem caráter vinculante para os demais órgãos do Poder Judiciário.
Além disso, não houve a análise do mérito e o trancamento da ação penal por conta do aborto, mas tão somente a apreciação acerca da possibilidade de afastamento da prisão preventiva dos réus.
Desta forma, o Supremo Tribunal Federal agiu corretamente já que como a religião, as escolhas filosóficas ou as escolhas por razões pessoais do legislador interferem tão somente na sua própria esfera de coerção moral. Não há que se dizer em criminalização de condutas tão somente amorais. Embora o aborto possa ter caráter amoral para alguns, não seria suficiente para torná-lo criminoso. Deve imperar uma proporcionalidade entre os direitos fundamentais da mulher e do feto ainda sem sistema nervoso.
8. REFERÊNCIAS
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. São Paulo: Atlas, 24ª ed., 2006.
Machado, Fabio. Os muitos riscos dos medicamentos abortivos, Disponível em: . Acesso em: 24/07/17.
SANCHES, Rogério Cunha. Manual de direito penal: parte especial. Bahia: JusPodivm, 2ª Ed.,2014
Barroso, Luis Roberto, Grandes transformações do direito contemporâneo e o pensamento de Robert Alexy, 2015. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/palestra-barroso-alexy.pdf. Acesso em 25/07/17
Advogada formada pela Universidade Cândido Mendes.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NOGUEIRA, Ana Luiza Rangel. A atipicidade do aborto até o 1º trimestre da gestação e a posição do supremo tribunal federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jul 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50540/a-atipicidade-do-aborto-ate-o-1o-trimestre-da-gestacao-e-a-posicao-do-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 22 nov 2024.
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