RESUMO: O presente estudo analisa a violência doméstica contra a mulher sob a luz da Lei 11.340/2016, denominada popularmente como Lei “Maria da Penha”, e as significativas mudanças que ocorreram nesses mais de dez anos de legislação. De fato, a violência de gênero é uma das formas mais graves e preocupantes de violência, já que, na maioria das vezes, ocorre no seio familiar. A lei veio como resultado de uma denúncia feita à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e leva o nome da biofarmacêutica, Maria da Penha Fernandes, que foi vítima de tentativa de homicídio pelo seu marido à época dos fatos. Busca-se, através do presente artigo verificar se, ao longo dos anos, a referida Lei conseguiu cumprir com seu papel de redutor de criminalização, ou se, por fim, tornou-se mera medida política falaciosa, sem qualquer consequência prática para a vida em sociedade.
Palavras-Chave: Lei Maria da Penha; Violência contra a mulher; Aplicabilidade e Efetividade da Lei Maria da Penha; Dez anos de sua promulgação.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL; 3. DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER; 4. CONTEXTUALIZAÇÃO E EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER; 5. DAS MEDIDAS ELENCADAS NA LEI 11.340/2006; 6. AS PRINCIPAIS MUDANÇAS LEGISLATIVAS; 7. REVITIMIZAÇÃO DA VÍTIMA: A LEI MARUA DA PENHA E A JUSTIÇA RESTAURATIVA; 8. CONCLUSÃO; 9. REFERÊNCIAS
1. INTRODUÇÃO
A violência doméstica contra a mulher está inserida em um contexto social no qual as relações entre homens e mulheres são marcadas pelo poder e submissão. Tal realidade foi construída a partir da atribuição de papéis sociais, na qual o modelo de superioridade é o masculino. Essas relações de poder tornaram-se algo tão inerente à realidade da sociedade que a dominação masculina passou a ser vista como algo natural e inquestionável. Tal realidade, na qual o poder patriarcal, ou ideologia patriarcal, estruturava as relações conjugais e familiares, está presente no Brasil desde os tempos do Brasil Colônia.
Em meados de 1980, destacando a necessidade de uma mudança cultural e, consequentemente, uma mudança na forma de lidar com a realidade da violência de gênero, movimentos feministas impulsionaram a criação de Delegacias da Mulher e promoveram ações políticas que iniciaram o processo de alteração nas legislações relacionadas às mulheres. A primeira Delegacia da Mulher foi criada, por meio de um decreto do então governador Franco Montoro, em 6 de agosto de 1985, em São Paulo, com o propósito de ser uma delegacia de polícia especializada, com pessoas capacitadas para lidar com as vítimas de crimes crimes baseados no gênero e no ambiente doméstico, sob o título de delegacia policial de defesa da mulher (DPDM).
Tais movimentos buscavam, ainda, amparar as mulheres vítimas da violência doméstica e dar voz a elas. Além disso, no campo da política criminal, o movimento, ainda que não uniformemente, buscava a descriminalização de crimes como o aborto e a criminalização de outras condutas, dentre elas a que passou a caracterizar o crime de violência doméstica (Lei 10886/04). É válido ressaltar, que anteriormente a essa lei o Código Penal não fazia sequer menção à violência doméstica.
Anteriormente, a violência doméstica contra a mulher era tratada como crime de menor potencial ofensivo, aplicando-se a Lei 9099/95 (que criou os Juizados Cíveis e Criminais) aos casos existentes, que eram geralmente ameaça e lesão corporal. Tal norma propõe penas pecuniárias e prestações sociais, favorecendo a impunidade entre os agressores. Observa-se que cerca de 90% dos crimes cometidos contra as mulheres em situação de violência doméstica que chegavam aos Juizados resultavam em arquivamento após a audiência de conciliação. Assim, há quem entenda que essa lei teria banalizado a violência doméstica, reforçando a cultura da impunidade e estimulando a desistência das mulheres em denunciar.
Entende-se que apenas com a Constituição Federal de 1988 é que as mulheres foram formalmente equiparadas aos homens. Essa equiparação, no âmbito cível, apenas se deu em 2002, com a promulgação do Código Civil, cujo texto trouxe inovações importantes.
Apenas em 2006 foi promulgada a Lei 11340, conhecida como Lei Maria da Penha, a qual consubstancia uma consolidação das alterações promovidas na legislação desde o início do movimento feminista de 1980 e é marco do movimento feminista no processo de criminalização da violência contra a mulher e sua inserção como crime de violação aos direitos humanos. Essa Lei, que veio como uma homenagem a uma vítima de agressão doméstica, Maria da Penha Maia Fernandes, caracteriza-se pelo rigor com que trata os infratores, pelas medidas de prevenção à prática dos crimes, tais como ações que contribuam para a mudança dos padrões sociais que influenciam esse tipo de violência, pela assistência dispensada às vítimas e pela repressão, propondo alterações no Código de Processo Penal, no Código Penal e na Lei de Execução.
Observa-se que a lei em comento trouxe grande mudança no tratamento dispensado aos crimes cometidos em contexto de violência doméstica e familiar, sobretudo aqueles de menor potencial ofensivo.
Embora muito já tenha sido feito no combate à violência doméstica, ainda existe um cenário de desconhecimento conceitual e instrumental sobre a questão de gênero e a violência contra a mulher, sobretudo entre as autoridades responsáveis por lidar diretamente com esse tipo de violência. Assim, muitas vezes as mulheres são novamente vitimizadas (vitimização secundária), tendo que enfrentar os preconceitos e a falta da capacitação dos profissionais que deveriam protegê-las.
2. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL
2.1. A Constituição Federal de 88 e a proteção dos direitos dos vulneráveis
A Carta Magna de 1988, além de estabelecer que a família pode ser constituída por outras instituições, além do casamento (CF, art 226), equiparou, no Capítulo VII, homens e mulheres em direitos e obrigações (isonomia), estabelecendo como paradigma o princípio da dignidade da pessoa humana.
A CF adotou, também, no seu artigo 227, a Doutrina de proteção integral relativa à criança e ao adolescente, da qual decorreu a edição da Lei n. 8.069/90 - Estatuto da criança e do adolescente (ECA).
Da mesma maneira, a Constituição também contemplou os direitos e proteções aos idosos e as pessoas com deficiência, garantindo a tutela destes.
Fez-se necessário, então, que o mesmo tratamento fosse dispensado à mulher em situação de violência doméstica e familiar, coroando o legislador a tutela dos vulneráveis com a edição da Lei n. 11.340/2006 - Lei da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
Merece ser ressaltado que o termo vulnerável não tem qualquer conotação de inferioridade, servindo apenas para designar uma categoria de pessoas que por uma condição etária, social, temporária ou duradoura, familiar, física ou mental, são destinatárias de uma proteção estatal mais efetiva, não havendo, portanto, quebra do princípio da igualdade.
2.2. PROTEÇÃO INTERNACIONAL
2.2.1. Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher
Promulgada no Brasil pelo Decreto n. 4.377/2002, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, adotada e aberta à assinatura, ratificação e adesão pela Resolução n. 34/180, da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 18 de dezembro de 1979, foi baseada na constatação de que apesar, da existência de diversos instrumentos internacionais visando a garantia dos direitos humanos e recriminando qualquer forma de discriminação, as mulheres continuaram sendo objeto de grandes discriminações.
Estabeleceu a referida convenção que a discriminação contra a mulher viola os princípio da igualdade de direitos e do respeito à dignidade humana, dificultando a participação da mulher, nas mesmas condições que o homem, na vida política, social, econômica e cultural de seu país, constituindo um obstáculo ao aumento do bem-estar da sociedade e da família, impedindo a mulher de servir o seu país e a Humanidade em toda a sua extensão das suas possibilidades. Em situações de pobreza, a mulher tem um acesso mínimo à alimentação, aos cuidados médicos, à educação, à capacitação e às oportunidades de emprego e à satisfação de outras necessidades, sendo certo que o estabelecimento da nova ordem econômica internacional, baseada na equidade e na justiça, contribuirá de forma significativa para a promoção de igualdade entre homens e mulheres.
Assim é que, para os fins da convenção, a expressão “discriminação contra as mulheres” significa toda distinção, exclusão ou restrição fundada no sexo e que tenha por objeto ou consequência prejudicar ou destruir o reconhecimento, gozo ou exercício pelas mulheres, independentemente do seu estado civil, com base na igualdade dos homens e das mulheres, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.
Os Estados-Partes condenaram a discriminação contra as mulheres sob todas as suas formas, e concordaram em seguir, por todos os meios apropriados e sem tardança, uma política destinada a eliminar a discriminação contra as mulheres.
2.2.2. Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher
Promulgada pelo Decreto n. 1973/96, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, datada de 1994, e denominada “Convenção de Belém do Pará, também previu que se deve entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, no âmbito público como privado”.
Segundo à convenção, a violência contra a mulher inclui violência física, sexual e psicológica:
Estabelecendo, ainda, que toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, tanto no âmbito no âmbito público como no privado, acrescentou a convenção que toda mulher tem direito ao reconhecimento, gozo, exercício e proteção de todos os direitos humanos e às liberdades consagradas pelos instrumentos regionais e internacionais sobre direitos humanos.
Acrescentou, ainda, a dita convenção, que toda mulher poderá exercer livre e plenamente seus direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais e contará com a total proteção desses direitos consagrados nos instrumentos regionais e internacionais sobre direitos humanos.
Foi nesse contexto que os Estados-Partes, dentre eles o Brasil, condenaram todas as formas de violência contra a mulher e concordaram em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas orientadas a prevenir, punir e erradicar a dita violência.
Por fim, estabeleceu a referida convenção que, para a adoção das medidas a que se refere este capítulo, os Estados-Partes terão especialmente em conta a situação de vulnerabilidade à violência que a mulher possa sofrer em consequência, entre outras, de sua raça ou de sua condição étnica, de migrante, refugiada ou desterrada. No mesmo sentido se considerará a mulher submetida à violência quando estiver grávida, for excepcional, menor de idade, anciã ou estiver em situação socioeconômica desfavorável ou afetada por situações de conflitos armados ou de privação de sua liberdade.
3. DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER
3.1 A violência e suas formas de manifestação
Conforme o Mapa da Violência de 2012, uma em cada cinco mulheres já sofreu algum tipo de violência dentro de casa. Dentre esses casos, 80% dos agressores são maridos ou namorados das vítimas.
A violência, consoante preceitua a Organização Mundial de Saúde, é o uso intencional de força física ou de poder (real ou por ameaça) contra outro indivíduo ou contra si próprio, que resulte ou possa resultar em lesão, morte, deficiência, etc. Para alguns doutrinadores a violência é o uso de força física, psicológica e intelectual para obrigar a outra pessoa a fazer algo contra a sua vontade.
A violência doméstica praticada contra a mulher consubstancia qualquer ação ou omissão, baseada no gênero, que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. Pode, então, a violência doméstica ser compreendida como uma espécie da violência de gênero. É marcada pela alta carga emocional envolvida e abarca também os crimes cometidos fora do âmbito doméstico, em qualquer relação íntima de afeto. O que ocorre na maioria dos casos é o cometimento do crime por ex-maridos ou ex-companheiros das vítimas. Outra característica desse tipo de crime é a reiteração com que são praticados, já que a maioria das mulheres não se afasta do agressor, pelos mais variados motivos: dependência financeira e/ou afetiva; medo; vergonha; preservação do que entende por estrutura familiar, etc.
Essa violência é manifestada de diversas formas. Pode ser física, quando o agressor ofende a integridade ou a saúde corporal da vítima; sexual, quando a mulher é levada a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; emocional ou psicológica, quando o agressor causa dano emocional e diminuição da auto-estima, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; patrimonial, quando o agressor retém, subtrai, destrói parcial ou total seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos; ou moral, quando há ofensa à honra da vítima.
Tais formas de violência estão previstas na lei em comento, porém consubstanciam o rol meramente exemplificativo.
3.2 Fatores sociais que influenciam na violência doméstica
A violência doméstica contra a mulher traduz a relação de poder e de dominação do homem sobre a mulher historicamente existente. Tal característica induz relações violentas entre os sexos, indicando que a prática desse tipo de violência não é fruto da natureza, mas sim do processo de socialização das pessoas. Sob essa perspectiva, um dos principais fatores de perpetuação da violência de gênero é a nossa cultura, já que consubstancia os hábitos e costumes presentes na consciência coletiva.
Nesse sentido dispõe Marília Montenegro:
A violência doméstica contra a mulher constitui-se de um conflito de gênero, portanto, não se pode deixar de analisar o conflito como uma relação de poder, entre o gênero masculino, representado socialmente como forte, e o gênero feminino, representado socialmente como fraco. Essa relação de poder foi construída ao longo da história do próprio Direito (PESSOA DE MELO, p. 115).
Em razão desse caráter social e cultural atrelado à violência contra a mulher, a denúncia desse tipo de violência e a implantação de medidas preventivas para pôr fim a esse tipo de crime tornam-se atividades complexas que requerem bem mais do que apenas a repressão.
Além disso, o ciclo da violência contra a mulher parece não ter fim quando observa-se, ainda, que existe uma legitimação da sociedade em relação à conduta do agressor, a qual muitas vezes é justificada, levando a vítima a um processo de vitimização terciária.
4. CONTEXTUALIZANDO A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER
Para entendermos as medidas de proteção e prevenção previstas na Lei Maria da Penha, é de suma importância um breve apanhado histórico da evolução dos direitos da mulher na sociedade e especialmente como eram tratados os casos de violência doméstica antes do ano de 2006, quando ainda não tínhamos a lei 11.340.
4.1 Os progressos dos direitos da mulher
Durante o século XX, o poder familiar era alicerçado no modelo de família da época, uma sociedade patriarcal, na qual o homem exercia uma autoridade sobre as mulheres e os filhos no ambiente familiar. Com o advento do Estatuto da Mulher Casada, Lei nº 4.121, de 1962, o Código Civil de 1916 foi modificado, o pátrio poder foi assegurado também a mulher, no entanto, em um papel colaborativo, onde em caso de divergências entre o casal, ainda predominava a vontade do homem.
Nesse contexto, após o Estatuto da Mulher Casada (1962), a Lei nº 6.515 de 1977 – Lei do divórcio e a instituição da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, originou-se com esses dispositivos uma mudança de paradigma na tentativa de igualar os membros da entidade familiar.
O princípio da igualdade, concedido pela Constituição, provocou no direito profundas transformações quanto a igualdade entre homem e mulher. A institucionalização do artigo 226 § 5º, da Constituição Federal de 1988, elucida que: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”, estabelecendo igualdade entre o homem e a mulher na sociedade conjugal.
4.2 A Lei 9.099 - Lei dos Juizados Especiais
Em 1995, a Lei 9.099 - Lei dos Juizados Especiais, trouxe a tona os dados da violência doméstica sofrida pelas mulheres. É evidente, que essa Lei não foi a causa do aumento nos números dos casos de violência doméstica, mas foi responsável por desvendar o volume que estava represado nessas situações.
O volume que chegava a esses Juizados era basicamente de casos de violência doméstica, então se fez necessário a criação de um Juizados só para esses casos. Exemplificadamente, em Recife, esse Juizado especializado, um dos cinco Juizados da capital, era o que mais recebia TCO (Termo Circunstanciado de Ocorrência). Este Termo, substitui o inquérito policial, de forma bem mais simples, para dar celeridade à resolução aos crimes de menor potencial ofensivo.
Os crimes de ameaça, lesão corporal leve e crimes contra a honra (como injúria e difamação) sao considerados crimes de menor potencial ofensivo, e assim, julgados nesses Juizados, onde sao propostas penas alternativas, pecuniárias e de prestações sociais. Dessa forma, esses crimes cometidos contra as mulheres em situação de violência doméstica eram julgados como crimes de menor potencial ofensivo, e resultavam na maioria dos casos em arquivamento após a audiência de conciliação.
5. DAS MEDIDAS ELENCADAS NA LEI 11.340/2006
Com o advento da Lei 11.340 de 2006, a Lei Maria da Penha, foi retirado o conceito de menor potencial quando envolve violência doméstica contra uma mulher, não podendo ser tratados pela Lei 9099/95 - dos Juizados Especiais. Conforme exposto no seu artigo 41: "Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1965".
5.1 Medidas integradas de proteção
A Lei da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher estabeleceu um conjunto articulado de ações da União, dos Estados e dos Municípios, além de ações não governamentais, como forma de uma política pública que visa coibir esse tipo de violência, tendo como base as seguintes medidas estabelecidas no seu art.8:
a) a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação;
b) a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às causas, às conseqüências e à freqüência da violência doméstica e familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas;
c) o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com o estabelecido no inciso III do art. 1o, no inciso IV do art. 3o e no inciso IV do art. 221 da Constituição Federal ;
d) a implementação de atendimento policial especializado para as mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher;
e) a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres;
f) a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre estes e entidades não-governamentais, tendo por objetivo a implementação de programas de erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher;
g) a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos e às áreas enunciados no inciso I quanto às questões de gênero e de raça ou etnia;
h) a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia; (grifo nosso)
i) o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.(grifo nosso)
Essas medidas citadas sao formas preventivas da violência doméstica e familiar contra as mulheres, tratando a lei também, conforme veremos a seguir, das medidas de natureza policial, judicial e protetivas de urgência.
5.2 Medidas de natureza policial
A mulher vítima de uma situação de violência doméstica e familiar tem a necessidade de um atendimento em sede policial, pronto e eficaz, visto que, a delegacia de polícia geralmente é onde se tem o primeiro contato.
Desta forma, a Lei Maria da Penha, no seu artigo 11, elencou diversas medidas que devem ser tomadas pela autoridade policial no momento do atendimento à mulher vítima de violência doméstica e familiar. Nas quais estão as seguintes providências:
a) garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário;
b) encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal;
c) fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida;
d) se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;
e) informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis.
5.3 Medidas protetivas de urgência à ofendida
A lei de violência doméstica e familiar contra a mulher estabeleceu diversas medidas protetivas de urgência, que devem ser tomadas pelo juiz, assim que receba o expediente com o pedido da ofendida ou a requerimento do Ministério Público.
Desse modo, recebido o expediente com o pedido da ofendida, deve o juiz, no prazo de 48 horas, de acordo com o que dispõe o art. 18 da lei:
a) conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência;
b) determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso;
c) comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis.
As medidas protetivas de urgência podem ser aplicadas isolada ou cumuladas, e também, ser substituída por outra de maior eficácia, a qualquer tempo, sempre que houver ameaça ou violação dos direitos reconhecidos na lei.
No âmbito das medidas protetivas de urgência, a lei arrolou outras providências que dizem respeito especificamente à integridade física e ao patrimônio da vítima e de seus dependentes. Nesse sentido, o art. 23 da referida lei, dispõe que poderá o Juiz:
a) encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;
b) determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;
c) determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;
d) determinar a separação de corpos.
No que tange a proteção do patrimônio dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, pode o juiz liminarmente, determinar: a restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; a proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; a suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; e a prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
6. AS PRINCIPAIS MUDANÇAS LEGISLATIVAS
Conforme analisado alhures, a violência contra a mulher não é algo novo a ser tratado pela sociedade ou pelo campo jurídico. Sendo assim, após a realização de diversas pesquisas, constatou-se que o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking de atos violentos contra as mulheres. Nesta toada, pode-se dizer que a estimativa é de que 13 mulheres sejam assassinadas por dia.
Diante dessa situação calamitosa, a criação da Lei Maria da Penha veio como uma medida necessária, ainda que infeliz, visto que o fato de ferramentas legais serem imprescindíveis para garantir direitos fundamentais a uma parcela da sociedade, deveria ser algo natural da vida em comunidade e não imposição do Estado. Porém, não se pode olvidar que as mudanças trazidas foram significantes para a forma de atuar do Poder Público, podendo combater com mais ênfase os referidos crimes.
6.1 Juizados de violência Doméstica e Familiar
Por conta do Princípio da Especialidade, o artigo 14 da Lei de Violência doméstica e familiar contra a mulher determina a confecção, por meio de todos os Entes Políticos do princípio da especialização, com ressalva dos Municípios de Juizados específicos para tratar do assunto. Estes, por sua vez, terão competência cível e penal para solucionar os impasses originários dessas condutas delituosas praticadas no seio familiar e doméstico contra as mulheres.
Outro instituto criado pela mesma lei, concerne na implementação de curadorias necessárias e do serviço de assistência judiciária que integrarão os juizados de violência. Entre as competências, destacam-se:
Essas competências, enquanto não for possível a implementação integral e nacional dos juizados pela extensão do país, serão conjuntas com varas criminais, podendo o juiz, no mesmo momento, não só aplicar as medidas protetivas previstas na legislação, mas também medidas que pertinem à ofendida.
6.2 Impossibilidades de aplicação da Lei 9.099/95
Em razão de dispositivo expresso da Lei nº 13.340/2006, qual seja, o seu artigo 41, não se usa esta lei no âmbito dos Juizados Especiais. Logo, em caso de lesão corporal, mesmo que leve, ou outro ilícito penal que se enquadre nos tipos penais da referida lei, nunca será possível o uso dos institutos da transação e da suspensão condicional do processo, de acordo com o posicionamento pacificado do Supremo Tribunal Federal (HC 106.212/MS, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 24-3-2011).
Logo, o rito aplicado é o ordinário ou o sumário, conforme artigo 394 e seguintes do Código de Processo Penal, ressaltando-se que, sempre será possível a aplicação de medidas protetivas de urgência, bem como o uso da prisão preventiva, se o caso se amoldar aos parâmetros do art.312 do CPP. Curial salientar que não há empecilhos para o uso da prisão em flagrante do agressor no caso de crime que envolve a violência doméstica e familiar, inclusive se for caso de reporte da denunciada à autoridade policial.
6.3 Ação Penal
Seguindo a regra geral, a ação penal nos crimes de violência contra a mulher é pública incondicionada, sendo necessária, portanto, iniciativa do Ministério Público. entretanto, esse entendimento nem sempre foi pacífico nos tribunais. em 2012, o plenário do STF votou pela procedência da ADI dando interpretação conforme a constituição aos artigos. 12, I, 16 e 41 da Lei maria da Penha, entendendo que não se aplica a lei dos juizados especiais nesses casos, donde independe, mesmo que seja lesão corporal leve, de representação da vítima.
Entretanto, ainda é possível a ocorrência de delitos que envolvam a violência doméstica ou familiar contra a mulher que também dependem de representação, como é o caso dos crimes contra a honra e também do crime de ameaça.
Mesmo nesses casos, onde é necessária a representação ou apresentação da queixa-crime, a renúncia ao direito de representação ou sua retratação só pode ocorrer perante o juiz em audiência específica.
Essa medida tem por objetivo evitar que a mulher, sem compreender as consequências de seus atos, tornem efetivas as medidas de urgência e volte a colocar-se em situação de risco.
6.4 Prisão Preventiva do agressor
No que tange a este aspecto, o artigo 20 da Lei 11.340/06 determina que, em qualquer fase do processo ou até mesmo do inquérito, será possível a aplicação da prisão preventiva ao criminoso, seja de ofício pelo Magistrado, a requerimento do Parquet ou representação da autoridade policial.
Como dito alhures, as condicionantes para tanto são o preenchimento dos requisitos previstos no dispositivo específico do Código de Processo Penal, acrescidos da real necessidade de se garantir as medidas protetivas de urgência, podendo-se falar também em sua revogação, quando não mais conveniente e oportuna, visto que a liberdade do ser humano é um direito fundamental que apenas deve ser limitado quando houver razões claras para tanto.
6.5 Atuação do Ministério Público
Insta salientar que essa inovação legal trouxe o Ministério Público como um dos seus protagonistas, visto que, de acordo com o art. 25, sua atuação como custos legis é obrigatória, quando não for parte. Assim, segundo o art. 26, é da alçada desta Entidade, sem prejuízo de outras atribuições:
6.6 Assistência Judiciária
Seguindo a orientação de proteção integral à mulher em situação de vulnerabilidade, dispõe o art. 27 da legislação estudada, que em todos os atos processuais, cíveis e criminais, deverá a mulher estar acompanhada de advogado, ressalvado o caso de aplicação das medidas protetivas de urgência.
Foi garantido também o acesso à defensoria pública ou a serviços de Assistência judiciária Gratuita, nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico humanizado.
6.7 Serviços públicos de apoio
Com o advento da lei, o Estado teve que aprimorar os serviços públicos oferecidos às vítimas do sexo feminino, tornando-se, portanto, uma real falha estrutural no âmbito público, visto que o Poder Público não estava preparado para tal situação. Contudo, uma vez que tal assunto não é mais restrito à esfera individual, falando-se em verdadeiro problema social, medidas de assistência e prevenção tiveram de ser adotas pelo Estado, de modo a suprir as necessidades da sociedade. Assim, como exemplo, pode-se falar das Delegacias de Atendimento à Mulher e dos inovadores serviços de assistência, como a Casa da Mulher Brasileira.
7. REVITIMIZAÇÃO DA VÍTIMA: A LEI MARIA DA PENHA E A JUSTIÇA RESTAURATIVA
O estudo da vítima toma, na criminologia um papel importante. A ciência se baseia em basicamente quatro objetos principais: o delito, o deliquente, a vítima e o controle social.
Ora, diferente das outras vítimas, a vítima da violência doméstica conhece o delinquente e acompanhou vários momentos da vida dele, o que torna o processo de coisificação do conflito, conforme palavras de Zaffaroni (1996), muito mais brutal.
De fato o Direito Penal tende a despersonalizar o conflito, faltando o espaço para a vítima, a qual acaba se tornando figura de pouca relevância na relação entre o Estado e o réu, isso porque, tradicionalmente o Direito Penal volta-se a punição de crimes que não atingiram apenas a espera pessoal da vítima, mas também interesses públicos.
Enquanto parte negligenciada, a vítima acaba sofrendo novos danos, um processo chamado de vitimização, que na criminologia contemporânea, podemos dividir em quatro fases:
Quer dizer, como se não bastasse o sofrimento decorrente do crime, no modelo tradicional de justiça criminal, a vítima é “revitimizada” ao longo do próprio processo penal, dentre outras razões, porque: tem sua participação no processo limitada às funções de informante; segue aflita por desconhecer sobre o andamento do “seu” caso, e sobre os seus direitos enquanto vítima; raramente é atendida nas suas expectativas de reparação de danos; dentre outras situações de desprezo vividas pela vítima que, vale lembrar, também é protagonista na ocorrência criminosa (OLIVEIRA, 1999).
Pois bem. A revitimização da vítima de violência doméstica, a qual classificamos como vitimização secundária, é muito superior do que em outros casos de violência, como por exemplo, em crime contra o patrimônio. conforme aponta Calhou (2004, p.60):
Ao contrário do aspecto racional, que seria o fim do sofrimento ou amenização da situação em face da ação do sistema repressivo estatal, a vítima sofre danos psíquicos, físicos, sociais e econômicos adicionais, em consequência da reação formal e informal derivada do fato.
Quando se trata de alguém que se quer bem, ou que já se quis bem algum dia, o fato praticado por aquela pessoa, que a lei define como crime, não pode nunca ser visto isoladamente, fora do contexto de uma história de vida, muitas vezes construída conjuntamente durante anos (MELLO, 2015).
Nesse aspecto, a justiça criminal tradicional só é capaz de oferecer uma condenação ou uma absolvição, sem diálogo nem possibilidade de perdão ou reconciliação, e nenhuma dessas situações minorará as dificuldades enfrentadas pelas partes.
À parte de tudo isso, o direito penal surge como última e melhor solução: é preciso penalizar, tipificar e inserir a figura da violência doméstica como objeto do direito penal para que haja fim a impunidade. Entretanto, muitas vezes a tipificação de certas condutas apenas aparecem como “remendo” de certas mazelas sociais.
Ocorre que ao apresentar como solução para os conflitos que envolvem a violência doméstica, a pena restritiva de liberdade, o Direito acaba não só prejudicando o agressor como também a vítima. Há a diminuição da renda familiar, e falta suporte para a mulher muitas vezes cuidar dos filhos.
Além dos gastos normais com despesas diárias, muitas ´parceiras acabam indo à prisão visitar os companheiros que estão presos, o que gera mais um custo econômico com deslocamento e um custo psico-social com a situação de retornar ao relacionamento. As mulheres por vezes são taxadas como aquelas que “gostam de apanhar” e que não “sabem o que querem” (MELLO, 2015).
Pesquisas americanas demonstram:
[...] os efeitos desintegradores-integradores do aprisionamento podem operar de forma distinta nos diversos domínios da vida da mulher, agravando-lhe fortemente a situação econômica ao mesmo tempo em que a protege de um parceiro agressivo (COMFORT, 2007, p. 234).
Com efeito, não será através da criminalização, nem muito menos da penalização do homem, aqui os maridos, os companheiros, os filhos, os irmãos, que se terá a resolução de um problema tão arraigado no inconsciente coletivo brasileiro quanto o da busca do papel da mulher na sociedade, que deixou de ser “a mulher de senhor de engenho e de fazenda e mesmo a iaiá do sobrado, no Brasil, um ser artificial, mórbido. Uma doente, deformada no corpo para ser a serva do homem e a boneca de carne do marido” (FREYRE, 2000, p. 126). Para ser o sexo que luta pelos espaços, pela dignidade e pela divisão do poder.
Ainda leciona Christie (2004, p. 118-119):
A lei penal é um instrumento perfeito para certos propósitos, porém grosseiros para outros. Deixa de lado muitas questões relevantes, e está baseado em dicotomias do tipo tudo ou nada, culpável ou inocente. Em muitas situações somos meio culpáveis. Se esta culpabilidade média é vista à luz de anteriores transgressões da outra parte ou de seus associados, abre-se uma porta para se chegar a um acordo. As soluções civis são mais integrativas, se esforçam para preservar os sistemas sociais como corpos de indivíduos em interação.
No Direito Penal comum, a “mulher agredida” denuncia o “homem agressor” e esse fato é tipificado como crime e, existindo indícios de autoria e materialidade, deve ser iniciado o processo para impor uma pena justa ao violador da lei. Assim:
[...] o sistema coloca o acontecimento sob o ângulo extremamente limitado do desforço físico, vendo apenas uma parte dele. Mas para o casal que viveu o fato, o que verdadeiramente importa – este desforço físico ou tudo aquilo que houve na sua vida em comum? (HULSMAN; CELIS, 1993, p. 82).
Com base nesses contrapontos, é de se perguntar até que ponto a Lei Maria da Penha ajudou ou diminuiu o índice de violência doméstica contra a mulher, tendo em vista o grande viés negativo que trás consigo, no que se referem, pelo menos na revitimização da vítima.
Pesquisa feita pela PNS - Pesquisa Nacional de Saúde, em parceira com o Ministério da Saúde e o IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2013, mostra como a violência, praticada principalmente em âmbito familiar, afeta a sociedade brasileira. Sendo assim, restou demonstrado que, dentre as vítimas de violência no país, 3,1% das mulheres são violentadas por alguém conhecido, como seus parceiros ou ex-parceiros, havendo especial concentração na faixa jovial, isto é, 43,1%.
Dentre as agressões mais frequentes e graves, está a violência psicológica, seguida da física. Ocorre que há níveis de preponderância, uma vez que, entre os jovens, prevalece a agressão física, já entre pessoas mais adultas, acentua-se a violência psicológica.
Diante dessas circunstâncias, verifica-se que a criação da lei foi essencial para proteção de alguns pontos, sem embargo, não conseguiu acobertar totalmente os anseios da sociedade, visto que há parcela de vítimas que continuam expostas à situação de risco constante. Ou seja, pode-se concluir que o processo penal é incapaz de, por si só, resolver esses impasses que já se encontram enraizados na vida em sociedade. Logo, em composição com as soluções trazidas pelo direito penal e processual penal, é necessária a busca por formas alternativas de resolução de conflitos, superando-se por sua vez, a técnica retributivo-penal tradicional.
Logo, no padrão restaurativo de justiça criminal, “o Estado não tem mais o monopólio sobre a tomada de decisões” e “os principais tomadores de decisão são as próprias partes” (MORRIS; YOUNG, 2000, p. 14). Ou seja, os embates retornam a quem pertence (agredidos, criminosos e sociedade), e o cerne da justiça criminal acaba sendo adotada de forma inversa: em vez de haver uma repreenda contra o criminoso, busca-se por respostas mais valiosas para reparação, bem como uma possível reconciliação.
Nesse diapasão, a justiça restaurativa agrega um procedimento o qual permite uma efetiva relação de troca entre os participantes, visto que todos auxiliam a sedimentar o mal provocado e um meio de reparar os efeitos negativos dessa conduta. Ademais, quanto mais pessoas forem abarcadas por este processo, mais proveitoso será. É precipuamente por este motivo que o padrão ideal ou “purista” (MCCOLD, 2000) de justiça restaurativa é um caminho em que seus envolvidos se encontram “cara-a-cara”. Ou seja, afastando-se da mera teoria, os referidos programas da justiça restaurativa devem trazer, quando possível for, um ou alguns encontros “ao vivo” entre aqueles atingidos pelo crime, de sorte que seja uma via de mão dupla para todos os envolvidos, isto é, todos terão a oportunidade de expressar suas opiniões e valores, bem como meios para enfrentar as consequências do crime (MORRIS; YOUNG, 2000; ZINSSTAG, 2012).
Ressalte- se que este processo restaurativo também é visto como meio de “empoderamento” (empowerment) das vítimas, criminosos e sociedade, com o fim de que unam seus ideais e experiências com o escopo de superar os danos causados, sejam psicológicos, materiais ou relacionais (BRAITHWAITE, 2002; JOHNSTONE, 2011; ZEHR, 1990). Sendo assim, para desfazer a ideia de que o campo técnico seria o dotado de pessoas mais qualificadas para decidir como é que as pessoas afetadas por ilícitos devem ser tratadas, as vítimas, ou seja, aqueles que foram de alguma forma agredidos, precisam de empoderamento para superar o seu próprio conflito, e assim emitir sua própria opinião acerca do destino ideal para sua situação.
No mesmo sentido, não se pode olvidar do criminoso. Em vez desse apenas receber uma punição pelo seu comportamento, eles também devem ser dotados do referido empoderamento para que assumam ter agido sob a égide de um comportamento desviante e, assim, enfrentem de forma efetiva as consequências de suas ações, reparando os danos causados às vítimas e à sociedade como um todo. Logo, têm essa oportunidade como meio de mostrar sua mudança e busca pela reintegração na vida em sociedade.
Por derradeiro, os membros da comunidade vitimizada (incluindo os familiares e amigos afetados) devem ser empoderados para solucionar os seus próprios embates comunitários, e para estabelecer uma agenda através da qual os criminosos arrependidos consigam ser reinseridos na vida em comunidade.
Mister destacar que o movimento restaurativo não está apenas relacionado com o movimento de reconhecimento do direito das vítimas de crimes, indo muito além disso. Assim o é, pois a referida justiça restaurativa está intrinsecamente ligada ao pensamento criminológico crítico (WALGRAVE, 2008), a qual consegue se distanciar do “jogo de soma-zero” – tão típico dos movimentos vitimológicos (GARLAND, 2001) – através do qual, qualquer relevo aos direitos ou interesses do agressor é tido como algo negativo (HOYLE, 2012; STRANG, 2002). Na verdade, como elucida HUDSON (2003, p. 178), a justiça restaurativa deve ser analisada “como uma forma construtiva de lidar com ambos, vítimas e infratores, ficando de fora do, ao invés de se prendendo ao, movimento populista que acredita que o que ajuda a vítima deve, necessariamente, machucar [ou prejudicar] o infrator”.
8. CONCLUSÃO
Ante o exposto, observa-se que com o advento da Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha), as mulheres passaram a ser destinatárias de uma proteção estatal mais efetiva, haja vista a posição de vulnerabilidade que é imposta pela sociedade, tomando como base o grande histórico de violência doméstica e familiar.
Também é importante ressaltar que inúmeras medidas foram incluídas no ordenamento jurídico brasileiro com a finalidade de coibir esse tipo de violência e proporcionar uma maior proteção às mulheres.
Acontece que esse controle penal intervém, na verdade, sobre os efeitos e não sobre as causas da violência e sobre pessoas e não sobre situações; agindo de maneira reativa, quando as consequências das infrações já se produziram, e não de forma preventiva (PESSOA DE MELLO, p. 187-188).
O posicionamento político-ideológico que apoiou a criminalização da violência no seio doméstico e familiar contra a mulher com o avanço de normas penais e processuais punitivas acabou afastando o uso de medidas despenalizadoras por considerarem sinônimo de impunidade. O principal ponto argumentado para tal alegação é a de que há uma banalização dessa prática criminosa contra a mulher, em virtude da punição branda proposta pela Lei 9.099/95, de sorte que além de inexistir prevenção ou punição, também não há qualquer contribuição para sua erradicação (CUNHA, 2009, p. 116).
A Lei 11.340/2006 se origina através dessa discussão envolvendo críticas a Lei dos Juizados Especiais na forma de tratar os conflitos familiares e domésticos. Todavia, resta o questionamento: os anseios da emancipação das mulheres têm sido alcançados através do meio criminalizador? Houve, de fato, uma redução nos crimes desde o advento da referida Lei? Ou teriam as situações de violência ganhado força?
Com efeito, as soluções atuais conferidas aos crimes são dotadas de nova moldura bastante paradoxal, uma vez que no intuito de se proteger bens jurídicos, garantir a segurança da população e educar a moral da comunidade, são usadas leis penais. Sem embargo, tais atos normativos são meramente simbólicos, pois não conseguem cumprir, ainda que em patamar mínimo, as funções que lhes são atribuídas, colocando em risco, muitas vezes, os próprios bens que visam a proteger (FAYET JÚNIOR; MARINHO JÚNIOR, 2009, p. 86-89).
É bem verdade que o conceito de direito penal simbólico não guarda nenhuma sistematicidade e significado preciso, mas não se pode olvidar que representa, pelo menos do ponto de vista crítico, a oposição entre o explícito e o implícito, entre realidade e aparência, entre manifesto e latente, entre o verdadeiramente querido e o que de outra forma é aplicado (HASSEMER, 1991, p.103).
Em razão do compadecimento da sociedade com a história vivenciada por Maria da Penha, bem como da fácil inclusão por todos nas causas feministas, o Estado, através de seus discursos populistas e demagogos, acabou por não inovar através de políticas públicas reais e que conseguissem alcançar de fato os anseios das vítimas, decidindo, então, governar por meio de legislação simbólica, que promete uma atuação eficaz e segura, mas na realidade não cumpre, sequer minimamente com seus objetivos.
Nesta toada, pode-se dizer que a Lei Maria da Penha, no âmbito das legislações emergenciais trouxe muitas novidades punitivas para o mundo jurídico, de sorte que foi muito bem recebida pelos militantes em favor dos direitos das mulheres, sendo considerada um marco para a autonomia e empoderamento feminino. Porém, pode-se dizer que suas pretensões são ineficazes e falaciosas.
Nesse sentido, Marília Montenegro assegura:
O uso simbólico do direito penal foi sem dúvida um forte argumento do movimento feminista para justificar a sua demanda criminalizadora. É certo que as normas penais simbólicas causam, pelo menos de forma imediata, uma sensação de segurança e tranquilidade iludindo os seus destinatários por meio de uma fantasia de segurança jurídica sem trabalhar as verdadeiras causas dos conflitos. Daí a afirmação que mais leis penais, mais juízes, mais prisões, significam mais presos, mas não menos delitos. O direito penal não constitui meio idôneo para fazer política social, as mulheres não podem buscar a sua emancipação através do poder punitivo e sua carga simbólica (MELLO, 2010b, p. 940).
Fala-se também que a extinção da tentativa de conciliação apresenta também um lado ruim, já que retira-se a possibilidade de diálogo entre os envolvidos e impõe-se a aplicação do Direito Penal. Acontece que a lei penal é, muitas vezes, instrumento grosseiro para tratar de um assunto tão delicado, sobretudo porque não leva em consideração o envolvimento emocional entre as partes.
Observa-se que nos casos de violência doméstica a vítima é novamente vítima, pois muitas vezes a mulher passa a se sentir culpada pela prisão do companheiro, além de ser diretamente atingida por isso, seja emocionalmente, seja financeiramente. Nesses casos, algumas passam a defender o seu agressor e são novamente vitimizadas quando taxadas de mulher que “gosta de apanhar” (PESSOA DE MELLO, p. 190).
Portanto, apesar das boas conquistas que vieram com a nova lei, a violência doméstica contra a mulher ainda é tópico recorrente nos problemas sociais brasileiros e só poderá vir a mudar quando o legislador assumir papel mais próximo da sociedade, entendendo as mazelas e tentando abarcá-las da melhor forma possível dentro do contexto legislativo.
REFERÊNCIAS
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Graduada em direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), advogada especialista em Direito Administrativo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Kamille Neves Filgueiras Cabral de. Violência Doméstica: Os Dez Anos da Lei Maria da Penha Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 nov 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50977/violencia-domestica-os-dez-anos-da-lei-maria-da-penha. Acesso em: 22 nov 2024.
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