O Brasil tem fetiche com o autoritarismo. Vibra com operações policiais violentas e com o uso extremado da força por parte do Estado. Clama por “justiça”, por encarceramento, e pela morte dos criminosos. Embora pesquisa recente [1] indique que 57% dos brasileiros sejam favoráveis à pena de morte (número que já é alarmante), atuais manifestações em redes sociais parecem indicar um índice muito maior de adeptos da pena capital.
A comoção gerada no país no início de 2015 pela execução do brasileiro Marco Archer após condenação por tráfico de drogas pela justiça da Indonésia é exemplo de como se encara a pena capital em terras tupiniquins. Assustadoramente, a maioria dos comentários que se viu era de apoio à execução, com manifestações raivosas de que o mesmo procedimento seria a solução para o Brasil, onde o “homem de bem” é vítima constante de uma criminalidade cruel e pandêmica. Por seu turno, grupo aparentemente minoritário se postou contrariamente à aplicação da pena capital, gerando debates acirrados, sobretudo em redes sociais, e perplexidade naqueles que, investidos de notável senso de “justiça”, defendiam o fuzilamento.
Todavia, ironicamente, pode-se afirmar que os que desejam a implantação da pena capital na verdade devem querer o bem do Brasil, de seus cidadãos, e até mesmo dos réus.
Inicialmente, pode-se tomar por base os Estados Unidos, país que, embora mais rico, também é multicultural, e tem problemas sociais semelhantes aos do Brasil: pobreza, desigualdade social, concentração de renda, e elevados índices de criminalidade.
Como é de conhecimento geral, muitos estados norte-americanos cominam a pena de morte para determinadas condutas, e a pergunta a ser respondida é: quantas pessoas são executadas após aguardar no corredor da morte?
Segundo dados divulgados pelo Centro de Informação sobre a Pena de Morte [2], em 2014 foram executados 35 condenados nos Estados Unidos, sendo que 39 foram mortos em 2013.
Analisando-se o tema em âmbito global, informações da Anistia Internacional [3] indicam cerca de 778 pessoas executadas em 22 nações diferentes no ano de 2013, excluindo-se a China, onde a pena de morte é tratada como segredo de Estado e não há estimativas confiáveis sobre o número de execuções que lá ocorrem. Ainda segundo a Anistia, 80% das execuções contabilizadas se concentraram em três países: Irã, Iraque e Arábia Saudita.
E por que os que desejam a pena de morte na verdade podem estar desejando o bem do Brasil e de seu povo? A resposta é simples: em um plano ideal, morreriam menos pessoas.
Embora não tenha a pena capital instituída, o Estado brasileiro mata mais do que qualquer corredor da morte. E os números são alarmantes.
Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicados pela Folha de São Paulo [4], entre 2009 e 2013 a polícia brasileira matou nada menos do que 11.197 pessoas, número que supera as 11.090 mortes causadas pela polícia norte-americana ao longo de 30 anos – lembrando que os EUA têm 319 milhões de habitantes contra 200 milhões do Brasil. É uma média 06 mortos por dia. Cerca de 2.200 pessoas por ano.
Exemplo perturbador pode ser encontrado no estado São Paulo, onde entre 2005 e 2009 a polícia militar matou mais do que todas as polícias norte-americanas juntas no mesmo período (2.045 contra 1.915 mortos), segundo notícia publicada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais [5]. São índices semelhantes aos do México, país que vive guerra declarada contra o narcotráfico, e que em 2011 registrou 1,37 mortes por 100 mil habitantes, contra 1,13 em São Paulo no mesmo ano. E aos que pensam que esta postura violenta reduziu a criminalidade, a verdade decepciona: embora em 2014 a polícia militar paulista tenha batido recorde da década (foram 816 mortes), os índices de criminalidade não diminuíram [6].
Como se vê, a pena capital na prática já existe no Brasil, e é executada com mais frequência do que em qualquer outro país, com uma peculiaridade: não há chances de defesa. Não há devido processo legal. Não há um procedimento regularmente instaurado em que a pessoa possa produzir provas a seu favor, e onde seu destino será definido por um órgão judicial imparcial, tendo direito a recurso contra eventual condenação. Não. A morte vem de forma violenta, repentina e inevitável.
Por tais razões, pergunta-se: pode-se então concluir que o brasileiro honesto e pagador de impostos, ciente de tais números, vê na “regulamentação” da pena de morte um benefício, uma forma de controle ao massacre ora instalado, e só por isso a defende? Ledo engano: o brasileiro não só quer a pena capital institucionalizada, como também não se opõe às execuções que já ocorrem criminosamente, havendo inclusive considerável parcela da população que inacreditavelmente as apoia.
Resta saber: é possível que a pena de morte seja formalmente instituída no Brasil?
Primeiro, do ponto de vista jurídico, a resposta é negativa. O atual ordenamento constitucional veda a imposição da pena capital em tempos de paz, apenas autorizando sua aplicação em casos de guerra declarada (artigo 5º, XLVII, da Constituição Federal), havendo a previsão da pena de morte para determinados delitos no Código Penal Militar. Em sendo uma garantia individual, expressamente consagrada no artigo 5º da Constituição, a vedação à pena de morte por delitos em tempos de paz jamais poderá ser derrubada, por se tratar de cláusula pétrea, protegida pelo artigo 60, §4º, IV, da própria Constituição, que dispõe que sequer será objeto de deliberação proposta tendente a abolir direitos e garantias individuais. Como se não bastasse, o Estado brasileiro é signatário de tratados internacionais em que se compromete a não instituir pena de morte em tempos de paz. Logo, qualquer movimento legislativo no sentido de instituir a pena capital estaria fadado ao insucesso.
De um ponto de vista prático, ainda que uma violenta revolução derrubasse o atual regime democrático, outorgasse uma nova constituição, denunciasse os tratados dos quais o Brasil é signatário (sujeitando o país a inevitáveis sanções internacionais), e instituísse a pena de morte em tempos de paz, a sua eficácia na área da segurança pública também seria duvidosa.
Segundo a Anistia Internacional [7], não há em âmbito mundial qualquer prova de que a pena de morte tenha efeito de inibição da criminalidade, muito pelo contrário. Estudos realizados nos Estados Unidos em 2004 indicavam taxa média de homicídios nos estados que aplicavam a pena de morte no patamar de 5,71 por 100.000 habitantes, sendo que os estados que não a aplicavam apresentavam índices de 4,02 homicídios por 100.000 habitantes. Por seu turno, no Canadá, constatou-se em 2003, passados 27 anos da abolição da pena de morte naquele país, que a taxa de homicídio decresceu 44% em relação ao período em que a pena capital ainda era aplicada. No entendimento da Anistia, ao invés de tornar mais segura a sociedade, a pena de morte só serve para legitimar a violência estatal, perpetuando um ciclo de violência.
Assim, que a educação em direitos e o acesso a informações e estatísticas fidedignas possam ajudar o brasileiro a superar tão odioso fetiche.
NOTAS:
[1] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/01/1948659-apoio-a-pena-de-morte-bate-recorde-entre-brasileiros-aponta-o-datafolha.shtml
[2] http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2014/12/1564703-eua-tem-menor-numero-de-execucoes-de-pena-de-morte-em-20-anos.shtml
[4] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/11/1545847-em-5-anos-policia-brasileira-matou-em-media-6-pessoas-por-dia-diz-estudo.shtml
[6] http://noticias.r7.com/sao-paulo/pm-bate-recorde-de-mortes-em-sp-e-nao-reduz-crimes-12012015
Defensor Público do Estado de São Paulo. Colaborador do Núcleo Especializado de Combate à Discriminação, Racismo e Preconceito da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) - Campus Franca. Especialista em Ciências Penais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BAGHIM, Bruno Bortolucci. Pena de morte: um fetiche brasileiro. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 jan 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51289/pena-de-morte-um-fetiche-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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