RESUMO: O presente artigo tem como objetivo realizar uma análise do panorama sociopolítico contemporâneo à luz das postulações de Hanna Arendt, Giorgio Agamben e Michel Foucault. A ideia é analisar eventos emblemáticos da contemporaneidade, como a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro e a realização de eventos esportivos de grande porte, como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, em cotejo com os ensinamentos dos referidos autores.
PALAVRAS-CHAVE: Hanna Arendt. Giorgio Agamben. Michel Foucault. Panorama sociopolítico contemporâneo. Unidades de Polícia Pacificadora. Copa do Mundo de 2014. Jogos Olímpicos de 2016.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A aproximação entre o totalitarismo e os regimes contemporâneos. 3. As transformações do agente político. 4. Conclusão. 5. Referências Bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
Para o sucesso da promoção de uma análise do panorama sociopolítico contemporâneo, é pertinente abordar de forma introdutória um aspecto clássico do tradicional pensamento político e filosófico ocidental: a relação, ou equivalência, entre o poder e a violência.
Usualmente, as relações de poder entre os homens são traduzidas através da linguagem da dominação, do mando e da obediência. Essa dinâmica funda-se no dissuasivo emprego das práticas de coerção e da violência, instrumentos garantidores do universo do comando. Desse modo, a grande questão que circunda o universo da teoria política seria acerca de “quem domina quem?”.
A respeito de tal reducionismo, são objeto de destaque as vigorosas críticas realizadas pela filósofa judia Hanna Arendt. Esta faz uma ponderação no sentido que quanto mais poderoso um determinado regime venha a ser, menor será o emprego da violência por este, e, em contrapartida, quanto maior for este, maior também será sua impotência. Em outras palavras, quanto menor for sua capacidade de se legitimar, de se manter e multiplicar por meio da obediência consentida, menor será o seu real fator de poder.
A intimidade entre o poder e a violência constitui uma tradição do pensamento político ocidental, e em sua consequência deriva-se o ofuscamento da ideia de um regime originado da não violência, por meio da ação coletiva e concertada.
A obra de Hanna Arendt ilumina as principais crises políticas que permearam o globo ao longo do que chamam de modernidade tardia. Foram eventos em que experimentamos a política sob a perspectiva das diferentes modalidades da violência, seja ela a violência extraordinária, característica do totalitarismo, ou a violência ordinária engendrada por meios burocrático-policiais, comum às democracias contemporâneas.
A exemplo da mesma, este artigo objetiva confeccionar um panorama das relações sociopolíticas atuais, permeando episódios contemporâneos com os conceitos e postulações doutrinárias de Arendt, Agamben e Foucault.
2 A APROXIMAÇÃO ENTRE O TOTALITARISMO E OS REGIMES CONTEMPORÂNEOS
Um traço bem característico da política moderna desde o século XIX é a crescente desvalorização da vida humana, acompanhada do paradoxo biopolítico da transformação da “vida nua” em bem supremo. O que por mais de mais de dois séculos tem se verificado é a galopante redução dos cidadãos ao estatuto da “vida nua”, conforme entendeu Agamben[1]. É vivificada a politização da vida, consistente na dicotomia formada pela “vida protegida” e a “vida excluída”, abandonada e entregue à morte. Através da redução do ser humano à categoria da “vida nua”, este passa a ser descartável pelos atos administrativos sem que se cometa qualquer crime.
A desvalorização do ser humano é só o princípio da perigosa consonância verificada entre os inúmeros elementos políticos que se condensaram nas principais formas de dominação totalitária (o nazismo e stalinismo) e práticas amplamente ativas e vigentes no âmbito político contemporâneo. Pode ser mencionado como exemplo o “racismo, a xenofobia, a apatia política, o imperialismo econômico, o emprego da mentira e da violência como meios de ‘resolução’ conflitos, a multiplicação dos apátridas e refugiados, a crescente superfluidade de massas humanas desprovidas de cidadania e de ocupação social digna etc.”[2] Então, como se pode verificar, é frequente a presença ativa de elementos totalitários nos democráticos regimes modernos. Tal evento foi previamente enunciado por Hanna Arendt[3] em sua obra:
“As soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda dos regimes totalitários sob a forma de forte tentação que surgirá sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo digno do homem.”
A respeito da presença de elementos totalitários nos ambientes democráticos da contemporaneidade, é possível estabelecer um diálogo entre este fenômeno e as políticas de segurança pública implementadas nos últimos anos no estado do Rio de Janeiro. De forma quase que profética, Hanna Arendt faz menção ao renascimento das práticas totalitárias como tentativa de solucionar a miséria política, social ou econômica. E é exatamente isto que é vivificado no Rio de Janeiro. O caos social, protagonizado pela extrema pobreza e a consequente criminalidade, alcançou um nível tão elevado que concebeu a aplicação de um plano governamental que muito se identifica com os encabeçados por Stalin e Hitler. O medo e o pânico subjetivado pela população são tão extremos, que se pode dizer que há certa legitimação de tais práticas. Aplaudimos de pé seres humanos serem assassinados a sangue frio com a ilusão de que com isso estamos mais seguros. Imaginamos nos situar na posição da “vida protegida”, delegando aos marginalizados a condição de “vida nua”, abandonada, reservada ao assassinato. Afinal, quem não se lembra do êxtase popular com o televisionado horripilante espetáculo de bandidos fugindo da favela sitiada enquanto eram alvejados pela polícia? É frequente o que Beccaria há muito dissera[4]:
“O assassinato que nos é apresentado como um crime horrível, vemo-lo sendo cometido friamente, sem remorsos.”
A brutalidade empregada pelas Unidades de Polícia Pacificadora não só não nos choca, como motiva. Legitimamos a atuação das mãos que renegam o direito a liberdade de ser humanos, que podem ser as mesmas que posteriormente nos incumbe o status de “vida nua”. São mãos que não encontram limites nem mesmo na lei, e muitas vezes possuem nesta o pretexto de sua atuação. Cabe aqui pertinente citação de Foucault[5]:
“Toda a campanha sobre a segurança pública deve estar apoiada – para ter credibilidade e ser rentável politicamente – por medidas espetaculares que provem que o governo pode agir, rapidamente e firmemente, acima da legalidade. Agora, a segurança está acima da lei.”
3 AS TRANSFORMAÇÕES DO AGENTE POLÍTICO
Um dos principais pontos das reflexões arendtianas condensam-se na ideia de que, a partir do século XIX, a política é envolvida pelo processo de um “crescimento não natural do natural”. Hanna Arendt disserta a respeito da crescente naturalização do homem e das relações políticas, potencializadas com o advento da Revolução Industrial. O trabalho industrial como forma de produção da riqueza promoveu a conversão, e por que não redução, do homem no animal laborans, o ser vivo cujas atividades fundamentam-se no trabalho e o consumo. A ascensão desse modelo de homem fez com que o estatuto de valor e ideal político inquestionável fosse a promoção da vida e da felicidade do animal laborans. Nas palavras de Arendt[6]:
“A Revolução industrial se fez possível pela exploração e proletarização, isto é, pelo desarraigamento e pelo fato de que muitos homens se tornaram supérfluos. No lugar da propriedade, que assinalava ao homem seu lugar no mundo, se introduziu o posto de trabalho e o puro funcionar no processo de trabalho.”
Hanna Arendt postula que o advento da Revolução Industrial, ao promover o império da produção e do consumo, engendrou a transformação do homo faber, o tipo do homem moderno concebido como fabricante artesanal de obras duráveis, no animal laborans, trabalhador constantemente empenhado na manutenção do ciclo vital da espécie e da própria sociedade em que vive.
Desse processo, temos como resultado a perda do espaço da liberdade para o domínio da necessidade, a perda do comportamento livre e espontâneo, para o repetitivo e previsível, o pensamento único em detrimento da pluralidade, a submissão da capacidade de consentir e dissentir pela força da obrigação. Enfim, há o ofuscamento da novidade e da criatividade pelo igual sentimento de que não há vida além do trabalho e do consumo. Cria-se um universo em que estar privado do direito ao trabalho, é estar privado do direito à própria existência.
A redução do ser humano em um animal que trabalha ensejou a conversão política da gestão administrativa no sentido de proteger os dois grandes interesses privados, produzir e consumir, o que acabou trazendo a violência para o meio sociopolítico de muitas maneiras. É justamente a fartura, a opulência, e o consumismo que irão justificar inúmeras práticas políticas violentas, tornando-as permitidas e até mesmo necessárias. Cabe aqui uma esclarecedora passagem da obra de Agamben[7]:
“Até a pura e simples disposição de todas as tarefas históricas (reduzidas a simples funções de polícia interior ou internacional) em nome do triunfo da economia assume hoje, frequentemente, uma ênfase em que a própria vida natural e seu bem-estar parecem apresentar-se como a última tarefa histórica da humanidade, se se admitir que faz sentido falar aqui de uma tarefa.”
Pode-se problematizar essa ideia com a questão das remoções de incontáveis domicílios de famílias carentes objetivando fins econômicos. As desapropriações de miseráveis para a efetivação das obras relativas à Copa do Mundo de 2014 e aos Jogos Olímpicos de 2016 ilustram bem o que é aqui debatido. O que significa a Copa do Mundo sendo realizada no Brasil? Sem dúvidas, para os padrões atuais, se trata de um sinônimo de desenvolvimento, de crescimento, de fartura e riqueza. Então, em privilégio daquilo que é sinônimo de abundância, viram-se as costas para direitos fundamentais de seres humanos necessitados. As desapropriações nada mais são do que uma violência ordinária burocrática realizada em prol dos interesses do animal laborans, a produção e o consumo.
Ainda a respeito do maior evento esportivo do mundo, podemos identificar na lei reguladora da competição, a Lei Geral da Copa, dispositivos que enunciam de forma clara a proteção das grandezas do homem resumido ao trabalho, em detrimento do suporte necessário aos indefesos do meio social. Podem-se citar como exemplo as cláusulas que vedam a atuação de comerciantes ambulantes nas imediações dos estádios que sediarão as partidas. Qual a grande teleologia que podemos inferir em função de tal norma? Tem-se aqui a evidente proteção dos interesses, da fortuna, da abundância, da produção das grandes empresas, em prejuízo da salvaguarda daqueles que tem, naquela oportunidade, o principal meio de seu sustento. Negando o direito ao trabalho a tais indivíduos, nega-se consigo o próprio direito a vida, combinação que constitui um dos princípios do animal laborans.
A lógica econômico-vitalista, ilustrada pelos casos concretos acima, enseja paradoxos como o crescimento econômico aliado ao desemprego galopante, a existência de poucos com tanto, e muitos com pouco. É exatamente a perpetuidade de tais incongruências que conduz os seres humanos à miséria e a violência, que por sua vez requer o uso de mais violência estatal para controlar o caos, como o caso das UPPs, já exposto nesse artigo. Faz-se pertinente uma nova citação de Agamben[8]:
“Os ideias do homo faber, fabricante do mundo, que são a permanência, a estabilidade e a durabilidade, foram sacrificados em benefício da abundância, que é o ideal do animal laborans.”
Em nome da produção da abundância para alguns, delega-se a uma ampla parcela de homens a figura da “vida nua”, que pode ser morta e descartada sem que sua eliminação constitua crime. Este é o homo sacer, o homem abandonado ao mínimo elemento comum natural, ao nada, deixado a mercê das consequências de uma política voltada para a preservação dos pilares do animal laborans.
4 CONCLUSÃO
Enfim, seja em regimes totalitários, seja nas sociedades democráticas de massa e mercado, o animal laborans é sempre o fim e o foco central das políticas vitalistas que levam a sua promoção e ao seu extermínio. Este se dá através da conversão do animal laborans no homo sacer, figura supérflua e descartável. Tal transformação se dá de tal maneira, que qualquer ser humano pode, a qualquer momento, converter-se nessa figura de “vida nua”. Tal redução do ser humano é maquiavelicamente entendida como uma necessidade para a manutenção do metabolismo vital da sociedade.
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
DUARTE, André. Vidas Em Risco: Crítica do Presente Em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
ARENDT, Hanna. Sobre a violência. Tradução André Duarte. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2001.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.
NOTAS:
[1] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
[2] DUARTE, André. Vidas Em Risco: Crítica do Presente Em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
[3] ARENDT, Hanna. Sobre a violência. Tradução André Duarte. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2001.
[4] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.
[5] FOUCAULT, Michel. Op cit.
[6] ARENDT, Hanna. Op cit.
[7] AGAMBEN, Giorgio. Op cit.
[8]AGAMBEN, Giorgio. Op cit.
Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Analista Judiciário - Área Judiciária do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAMOS, Caio César Alves Ferreira. Uma análise do panorama sociopolítico contemporâneo sob a ótica de Hanna Arendt, Giorgio Agamben e Michel Foucault Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 maio 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51618/uma-analise-do-panorama-sociopolitico-contemporaneo-sob-a-otica-de-hanna-arendt-giorgio-agamben-e-michel-foucault. Acesso em: 22 nov 2024.
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