Resumo: O presente artigo abordará algumas incongruências, ou até violações a direitos fundamentais - tão arduamente conquistados -, que a aplicação da Lei dissociada da realidade social pode gerar, trazendo o entendimento moderno da doutrinário e jurisprudencial mais recente dos Tribunais Superiores, que embora ainda minoritário acerca da questão da dispensa de fiança pela autoridade policial, merece uma reflexão crítica sobre a interpretação restritiva e inadequada do artigo 350 do código de processo penal, embasada em uma posição doutrinária mais consentânea com a realidade fática.
Palavras – chave: Direito Processual Penal. Princípio da presunção de inocência. Prisão em flagrante. Fiança. Intervenção mínima. Direito Penal do Equilíbrio.
Sumário: Introdução. 1. Principio da presunção de inocência: análise legal, doutrinária e jurisprudencial. 2. Prisão em flagrante. 3. Dispensa de Fiança 4 Liberdade provisória e natureza jurídica da fiança. 5. Do estado de Pobreza 6. Princípio da intervenção mínima e o Direito Penal do Equilíbrio. Conclusão.
Introdução
Analisando a literalidade do artigo 350 do Código de Processo Penal, verifica-se que a doutrina e jurisprudência majoritária vêm fazendo uma interpretação restritiva e inadequada quanto à dispensa do pagamento de fiança ser de exclusividade do Juiz. O que se busca com o presente trabalho é demonstrar algumas incongruências do sistema penal a fim de evitar violações a direitos e garantias fundamentais, através de uma reflexão crítica, devendo sempre prevalecer o estado de inocência em detrimento do ônus da prova acusatória, respeitando o princípio do devido processo legal, tendo em vista que a prisão deve ser medida excepcional (ultima ratio).
Em razão disso e tendo em vista o princípio da intervenção mínima do direito penal, busca-se defender que, indubitavelmente, o maior interesse é que todos os inocentes, sem exceção, estejam protegidos para que o preço pela prisão prematura e desnecessária de alguém inocente (sem sentença definitiva) não seja muito alto e irreversível. Logo, busca-se, também, demonstrar que o Delegado de Polícia não só pode como deve dispensar o pagamento a título de fiança aos crimes de médio potencial ofensivo cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4(quatro) anos, tão logo o autuado demonstre insuficiência financeira e preencha os demais requisitos do benefício.
1. Princípio da presunção de inocência: análise legal, doutrinária e jurisprudencial.
O princípio da inocência está insculpido no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988, ou como alguns doutrinadores preferem, princípio da não culpabilidade. Segundo Lopes Junior (2012), a origem desse princípio estaria no Direito Romano quando teria surgido a regra do in dubio pro reu, em oposição à inquisição da Idade Média que distorcia e invertia seu fundamento de inocência.
Lopes Júnior acrescenta:
no Directorium Inquisitorum, EYMERICH orientava que “o suspeito que tem uma testemunha contra ele é torturado. Um boato e um depoimento constituem, juntos, uma semi prova e isso é suficiente para uma condenação.” (2012, p. 235).
Para Aury Lopes Jr, (2015, p.588), o principio da inocência impõem um verdadeiro dever de tratamento: interno e externo ao processo.
Internamente, seria um dever de tratamento que se exige que réu seja tratado como inocente, por isso o ônus da prova deve ser do acusador (pois se o réu é inocente, não teria que provar nada), e que a dúvida conduza inexoravelmente à absolvição; ainda nessa mesma dimensão, implica severas restrições ao (ab)uso das prisões cautelares, quando se prende alguém que não foi definitivamente condenado (trânsito em julgado).
Externamente, se busca proteger o réu contra a publicidade abusiva e a estigmatização precoce da mídia, e garantir os princípios constitucionais referentes à imagem, dignidade e privacidade individual, limitando-se, dessa forma, as explorações midiáticas em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial.
Ademais, somente em casos excepcionais se poderia admitir a prisão válida de alguém, existindo diversas formas de se conceder a liberdade de uma pessoa, a exemplo, a liberdade provisória como ou sem fiança (art. 5º, LXVI, CF/88), àquele que infringir a lei.
Para adicionar, MARÇÃO (2011, p. 261) defende que a fiança é forma de garantia real que se presta com a finalidade de ter a liberdade de alguém restituída e para que assim permaneça durante o transcurso da investigação policial ou do processo criminal.
Em razão disso, busca-se defender que a Autoridade Policial não só pode, mas deve dispensar o pagamento a título de fiança, em sede de Delegacia, aos crimes cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4(quatro) anos, tão logo o autuado demonstre insuficiência financeira e preencha os demais requisitos, tais como primariedade delitiva, bons antecedentes, residência fixa e trabalho lícito (ainda que ocasionalmente). Isso porque restringir a liberdade de alguém apenas por não ter pago o valor da fiança equivaleria à prisão civil por dívida e portanto, flagrante violação aos princípios constitucionais fundamentais de civilidade e proteção da pessoa, assim como total desrespeito ao principio basilar do direito processual penal: princípio da inocência ou da não culpabilidade.
A jurisprudência dos Tribunais Superiores tem entendido que a manutenção da prisão apenas pelo não pagamento de fiança mostra-se ilegal e constitui evidente constrangimento ilegal ao autuado, vejamos:
HABEAS CORPUS Nº 443.743 - SP (2018/0075810-1) RELATOR : MINISTRO NEFI CORDEIRO IMPETRANTE : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO ADVOGADOS : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO CASSIANO FERNANDES PINTO DE CARVALHO - SP330412 IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO PACIENTE : GUSTAVO MORAES SANTOS (PRESO) DECISÃO Trata-se de habeas corpus, com pedido liminar, impetrado em favor de GUSTAVO MORAES SANTOS, apontando-se como autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Consta dos autos que o paciente foi preso em flagrante pela prática dos crimes tipificados no art. 129, caput, e no art. 147 (por duas vezes), do Código Penal, no contexto de violência doméstica, nos termos da Lei n. 11.340/2006. A autoridade policial fixou a fiança no valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais). E, na audiência de custódia, esse valor foi majorado para R$ 3.500,00 (três mil e quinhentos reais). Impetrou-se habeas corpus no Tribunal de origem objetivando a dispensa da fiança arbitrada, e a ordem foi concedida em parte, para reduzir o valor dessa garantia judicial para R$ 1.000,00 (um mil reais), por acórdão que tem a seguinte ementa (fl. 25): HABEAS CORPUS - Pretensa prática dos delitos de lesão corporal e ameaça, ambos no contexto de violência doméstica e familiar - Fiança - Redução do valor arbitrado para o importe de R$ 1.000,00 (um mil reais) - Imposição de outras medidas de natureza cautelar - Ordem concedida em parte com recomendação. O impetrante sustenta que o paciente encontra-se segregado há mais de 3 (três) meses unicamente em razão do não pagamento da garantia judicial, e que não possui condições financeiras de adimplir com o valor, visto que é pessoa pobre. É o relatório. DECIDO. A concessão de liminar em habeas corpus é medida excepcional, somente cabível quando, em juízo perfunctório, observa-se constrangimento ilegal. A decisão que concedeu liberdade provisória e fixou a fiança, assim dispôs (fls. 43/47): "[...] Sem embargo do judicioso parecer Ministerial, não vislumbro nos autos os pressupostos e condições que autorizem a custódia cautelar do acusado. O fato de o crime ter sido praticado no contexto de violência doméstica não impede que seja concedido ao autuado o benefício da liberdade provisória mediante pagamento de fiança, ainda que a lei permita a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva. Destarte, a prisão preventiva, como custódia cautelar, é medida sempre excepcional. Desta forma, deve se amoldar às hipóteses previstas no artigo 312 do CPP. Sem embargo das condições pessoais do acusado, que, aparentemente ostenta uma periculosidade exacerbada que demonstra não ter desenvolvido freios inibitórios, a ordem pública não se mostrou abalada pelo fato praticado. Pelo total da pena aplicada em abstrato aos crimes imputados, conforme prescreve a lei processual, mas sem prejuízo de reavaliação, após a escorreita apuração das circunstâncias fáticas no decorrer da instrução, da tipicidade penal, neste momento sumário de cognição, mostra-se cabível aplicar as medidas cautelares diversas da prisão. Malgrado as evidentes condições econômicas desfavoráveis do acusado, mas diante dos seus péssimos antecedentes elevo a fiança arbitrada pelo I. Delegado de Polícia para o valor de R$ 3.500,00. Considera-se, ainda, para justificar a elevação, a presença da sua periculosidade, conforme bem destacou o DD. Representante do Ministério Público, e, considera-se, também, a natureza das infrações praticadas em núcleo doméstico e decorrente de relações familiares e, por último, a vida pregressa do acusado que tem, repita-se, péssimos antecedentes relacionados à crime contra a vida e condenação por crime hediondo, ficando condicionado a expedição do alvará ao pagamento da fiança ora arbitrada, sem prejuízo das outras medidas abaixo impostas. Assim, diante de todo o exposto, concedo ao acusado o benefício da liberdade provisória, nos termos do art. 350 do Código de Processo Penal, devendo o acusado comparecer no primeiro dia útil seguinte cartório à soltura para informar endereço e para trazer documento original com foto e ser submetido às medidas cautelares do artigo 319 do CPP em seus incisos: I - comparecimento a cada dois meses em juízo; II - proibição de acesso a bocas de fumo, pontos de tráfico e similiares, bares, lupanares, e similiares; III - proibição de manter contato com as vítimas e testemunhas do processo; IV - proibição de ausentar-se da comarca sem comunicar o juízo, podendo ausentar-se mediante prévia autorização judicial; V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga 4; VIII - pagamento de fiança no valor acima arbitrado, sob pena de, no descumprimento ser-lhe decretada prisão preventiva à luz do artigo 312 do mesmo diploma legal. Quanto ás vitimas e à testemunha, concedo desde já as medidas protetivas constantes da Lei 11.340/06, artigo 22, II e III, alíneas a, b e c. Não havendo óbice na utilização de sistema de gravação audiovisual em audiência, todas as ocorrências, manifestações, declarações entrevistas foram captados em áudio e vídeo, conforme identificado, anexado e autenticado pelos presentes neste termo. Nada mais. Eu Eduardo Aparecido Pimentel, digitei." Como se vê, ainda que tenha sido reconhecida a condição financeira desfavorável do paciente, foi elevado o valor da fiança fixada pela autoridade policial para R$ 3.500,00 (três mil e quinhentos reais), e, mesmo havendo a redução desse valor para R$ 1.000,00 (um mil reais) pelo Tribunal de origem, o paciente não pagou a garantia judicial. O tempo de prisão concretamente cumprido desde o dia 27/12/2017, ou seja, mais de 3 (três) meses, evidencia a hipossuficiência do réu, sendo pacífica a jurisprudência desta Corte no sentido de que o inadimplemento da fiança arbitrada não pode, por si só, legitimar a custódia do paciente, devendo ser observada a disciplina estatuída no art. 350 do CPP . A propósito do tema, confiram-se os seguintes precedentes: HC 113.276/PI, Relatora Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Sexta Turma, Dje 21/02/2011; HC 44000/RS, Relator Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, Sexta Turma, DJe 05/02/2005; HC 383053/RS, Relator Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, Sexta Turma, DJe 02/03/2017; RHC 76689/DF, Relatora Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Sexta Turma, Dje 07/12/2016. Ante o exposto, defiro a liminar, para a soltura do paciente, GUSTAVO MORAES SANTOS, isentando-o do pagamento da fiança, com fundamento no art. 350 do CPP, sem prejuízo de decisão fundamentada de outras medidas cautelares penais diversas de prisão. Comunique-se, com urgência, enviando cópia desta decisão e solicitando informações. Após, ao Ministério Público Federal, para manifestação. Publique-se. Intimem-se. Brasília, 13 de abril de 2018. MINISTRO NEFI CORDEIRO Relator
(STJ - HC: 443743 SP 2018/0075810-1, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Publicação: DJ 19/04/2018).
Ainda nesse mesmo sentido,
HABEAS CORPUS Nº 369.449 - TO (2016/0229745-6) RELATOR : MINISTRO RIBEIRO DANTAS IMPETRANTE : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE TOCANTINS ADVOGADO : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE TOCANTINS IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO TOCANTINS PACIENTE : JÚLIO CESAR GANÇALVES VIEIRA (PRESO) DECISÃO Trata-se de habeas corpus com pedido liminar impetrado pela Defensoria Pública em favor de JÚLIO CESAR GANÇALVES VIEIRA, em que se aponta como autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Estado de Tocantins. Consta dos autos que o paciente foi preso em flagrante no dia 18/7/2016, pela prática, em tese, de crime previsto no art. 155, § 4º, I e IV, c/c art. 14, II, do Código Penal. Discorre a impetrante que a autoridade policial condicionou a liberdade do acusado ao pagamento de fiança arbitrada em R$ 880,00 (oitocentos e oitenta reais), a qual não fora paga em razão da hipossuficiência financeira do acusado. Posteriormente, fora requerida isenção do pagamento da referida fiança, e ao proferir seu decisum, o Juízo da 1º Vara Criminal da Comarca de Tocantinópolis/TO, tão somente, reduziu o valor pela metade, fixando-a em R$ 440,00 (quatrocentos e quarenta reais). Sem condições de arcar com a fiança, o paciente impetrou habeas corpus na origem, o qual teve a ordem denegada (e-STJ, fls. 47/51). Daí o presente mandamus, em que a Defensoria Pública alega que é "inconcebível que o paciente, sem antecedentes criminais, acusado de suposto furto tentado, crime considerado pelo atual ordenamento jurídico como delito de pouca gravidade, permaneça preso em razão de sua condição financeira". Aduz que "a liberdade do paciente está condicionada ao pagamento da fiança, mesmo sendo juridicamente pobre, assistido pela Defensoria Pública do Estado do Tocantins, cuja verificação comprova-se no fato de ter sido a fiança arbitrada há mais de um mês e ainda permanece sem o devido pagamento por absoluta impossibilidade financeira, pois, obviamente, se tivesse condições financeiras, já estaria em liberdade" (e-STJ, fls. 1-11). Requer, em liminar, a imediata expedição do alvará de soltura em favor do acusado. É o relatório. Decido. Esta Corte e o Supremo Tribunal Federal pacificaram orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do recurso legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado. No caso, verifica-se que o pedido formulado reveste-se de plausibilidade jurídica, sendo o caso de deferir a medida de urgência. Com efeito, embora tenha sido reconhecida a desnecessidade da custódia cautelar do paciente, ele continua custodiado em razão do não pagamento da fiança arbitrada no valor de R$ 440,00 (quatrocentos e quarenta reais). Em um juízo de cognição sumária, entendo não ser razoável manter o paciente preso cautelarmente apenas em razão do não pagamento de fiança, especialmente quando se alega impossibilidade de o fazer e estão ausentes os requisitos exigidos no art. 312 do Código de Processo Penal. Note-se que o paciente é assistido pela Defensoria Pública, portanto, presumivelmente pobre, sendo o caso de aplicação do disposto no art. 350 do Código de Processo Penal. Sobre o tema: "HABEAS CORPUS SUBSTITUTO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. RECEPTAÇÃO SIMPLES. LIBERDADE PROVISÓRIA DEFERIDA COM ARBITRAMENTO DE FIANÇA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DA SEGREGAÇÃO CAUTELAR. APLICAÇÃO DO ART. 350 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. ORDEM CONCEDIDA. LIMINAR RATIFICADA. [...] 2. Ausentes os requisitos autorizadores da segregação preventiva, configura constrangimento ilegal a prisão do paciente com base unicamente no não pagamento da fiança. Precedentes. 3. A teor do art. 350 do Código de Processo Penal, nos casos em que couber fiança, o juiz, verificando a situação econômica do preso, poderá conceder-lhe liberdade provisória, sujeitando-o às obrigações constantes dos arts. 327 e 328 daquele diploma e a outras medidas cautelares, se for o caso. 4. Ordem concedida para, ratificando a liminar, garantir ao paciente a liberdade provisória, independentemente do recolhimento da fiança, salvo se preso por outro motivo, e sem prejuízo das demais medidas cautelares impostas."(HC 348.146/DF, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 05/04/2016, DJe 13/04/2016)"PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. FURTO. FIANÇA NÃO PAGA. MANUTENÇÃO DA CUSTÓDIA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PREVISTOS NO ART. 312 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. FLAGRANTE ILEGALIDADE. OCORRÊNCIA. ORDEM CONCEDIDA. 1. Com o advento da Lei n.º 12.403/11, externaram-se os comandos constitucionais que identificam na prisão provisória o caráter de ultima ratio. 2. In casu, existe manifesta ilegalidade, na medida em que o paciente permanece custodiado única e exclusivamente em razão do não pagamento da fiança arbitrada no valor de R$ 1.500,00 (um mil e quinhentos reais). 3. Afigura-se irrazoável manter o réu preso cautelarmente apenas em razão do não pagamento de fiança, especialmente quando se alega impossibilidade de fazê-lo e o juízo não apontou qualquer dado concreto que demonstre a necessidade da medida extrema. 4. Note-se que o paciente é presumivelmente pobre, sendo caso de aplicação do disposto no art. 350 do Código de Processo Penal. 5. Ordem concedida, confirmando a liminar deferida, a fim de garantir a liberdade provisória ao paciente, independentemente do pagamento de fiança, se por outro motivo não estiver preso, sem prejuízo de que o Juízo a quo, de maneira fundamentada, examine se é o caso de aplicar uma das medidas cautelares implementadas pela Lei n.º 12.403/11, ressalvada, inclusive, a possibilidade de decretação de nova prisão, caso demonstrada sua necessidade."(HC 353.167/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 07/06/2016, DJe 21/06/2016) À vista do exposto, defiro a liminar para conceder, até o julgamento definitivo deste habeas corpus, liberdade provisória ao paciente, sem pagamento de fiança, sujeitando-o às obrigações constantes dos arts. 327 e 328 do Código de Processo Penal e a outras medidas cautelares, a critério do Juízo de Primeiro Grau, salvo, evidentemente, se por outro motivo estiver preso. Ressalvo a possibilidade de nova decretação da prisão, caso demonstrada, de forma fundamentada, sua necessidade. Comunique-se, com urgência, ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e ao Juízo da 1ª Vara Criminal da Comarca de Tocantinópolis/TO. Posteriormente, remetam-se os autos ao Ministério Público Federal. Publique-se. Intimem-se. Brasília, 24 de agosto de 2016. Ministro RIBEIRO DANTAS Relator
(STJ - HC: 369449 TO 2016/0229745-6, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Publicação: DJ 29/08/2016)
2. Da Prisão em Flagrante
O artigo 5º, inciso LXI, da Constituição Federal, afirma: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. A primeira parte desse inciso, trata-se da prisão em flagrante, regulamentada nos artigos 301 e seguintes do CPP.
Para o processualista Aury Lopes Jr, a prisão em flagrante é uma medida pré-cautelar, uma precária detenção, que pode ser feita por qualquer pessoa do povo ou autoridade policial (2015, p. 607), que não está dirigida a garantir o resultado final do processo.
Nesse caso, o controle jurisdicional se dá em momento imediatamente posterior com a homologação da prisão ou seu relaxamento.
A rigor, cotejando os princípios da jurisdicionalidade e da presunção de inocência, a prisão de qualquer pessoa deve ser apresentada imediatamente ao Delegado de Polícia, o qual, analisando as circunstâncias do fato, sua materialidade e autoria, decidirá se é caso ou não de prisão em flagrante, podendo instaurar o inquérito policial pelo auto de prisão em flagrante ou instaurá-lo mediante portaria, ou ainda relaxar a prisão por atipicidade ou quando houve infundada justificativa de autoria e materialidade.
Por isso, a autoridade policial deve servir, também, de filtro processual sendo o primeiro garantidor da legalidade e de justiça na função de assegurar os direitos fundamentais da pessoa humana, além de conter excessos do poder punitivo estatal, seja contendo extrapolações seja em proteger a injustiça.
Nesse mesmo pensamento, Cleopas I. Santos, afirma que “o respeito aos direitos fundamentais do cidadão é dever de toda autoridade e seus agentes”.
Partindo dessa premissa, não haveria qualquer razão, lógica ou jurídica, para que o Delegado de Polícia fosse impedido de dispensar a fiança, quando a situação econômica do autuado assim recomendasse, mas estivesse autorizado a aumenta-la e reduzi-la. Além disso, o art. 350 pode ser aplicado por analogia ou interpretação extensiva, como autorizado pelo art. 3º do CPP, tudo com o fim de dar maior eficácia aos direitos fundamentais do imputado.
3. Dispensa de Fiança
A doutrina majoritária entende que a autoridade policial pode reduzir o valor da fiança de 1/3 a 2/3 ou ainda, aumenta-la de 1 (um) a 100 (cem) salários mínimos (art. 325, I, CPP); além de ter que considerar a natureza da infração, as condições pessoais de fortuna e vida pregressa do acusado, as circunstâncias indicativas de sua periculosidade... (art. 326, CPP), mas estaria proibido de dispensar o pagamento de fiança, mesmo nos casos em que o autuado seja hipossuficiente economicamente e preencha os requisitos da dispensa, em razão do artigo 350 do código de processo penal de 1941, cuja redação restringe que só caberia a dispensa pelo juiz.
É mister lembra, ainda, que o atual artigo 325 do CPP, alterado pela redação da Lei nº 12.403/2011, não faz nenhuma restrição ao delegado de polícia sobre a possibilidade de também poder dispensa a fiança do preso pobre, ao contrário, ampliou ainda mais, tendo em vista que praticamente todos os incisos e parágrafos do art. 325 é comumente aplicado pela autoridade policial, com exceção apenas do § 1º, I, pois o referido inciso busca a redação desatualizada do artigo 350 do CPP, em total desarmonia com a moderna sistematização do Direito Penal, apresentando incongruência em relação ao garantismo penal (no sentido de Estado Democrático de Direito). (Ferrajoli, 2001, p. 132).
Vejamos o entendimento de MONTEIRO (2011):
No que tange à dispensa da fiança pelo delegado, apesar de entendermos que não há óbice lógico ou finalista que a obstaculize, verifica-se que a dispensa poderia ter sido permitida pela nova redação do art. 350 do CPP, todavia, ao se reportar tão só ao juiz, tecnicamente está impedida a autoridade policial em promovê-la. A crítica que fica é que não há razão jurídica para tanto. Não há nada de sobrenatural na avaliação da capacidade econômica de uma pessoa poder ou não pagar para responder ao processo em liberdade. Fazendo jus à fiança e constatada a miserabilidade, deve-se por o preso pobre o mais rápido possível em liberdade, sob pena de afrontar o art. 5º LVI, CF. Qualquer defesa em contrário fere a ordem constitucional e soa mais como capricho ou vaidade que como qualquer razão juridicamente plausível para justificar a impossibilidade da dispensa da fiança pela autoridade policial, ainda que com espeque na competência exclusivamente judicial para impor os deveres dos arts. 327 ou 328 CPP (que muitos delegados já impõem quando da concessão da fiança).
Sobre isso, “quem pode o mais pode o menos”, se o delegado tem o poder de autuar uma pessoa por infração penal ou deixar de autuá-la, podendo, ainda, aumentar ou diminuir o valor da fiança, muito mais pode dispensa o pagamento de fiança do hipossuficiente que preencha os requisitos da liberdade provisória, e ausentes os requisitos da prisão preventiva; Bastando para isso a aplicação do artigo 3º do próprio código de processo penal (interpretação extensiva e analogia), ou ainda, uma simples alteração do artigo 350 do CPP, onde se lê juiz, deveria se ler autoridade (policial ou judicial), como o fez a Lei nº 12.403/2011, sobre as medidas cautelares diversas à prisão.
Vale salientar que se busca que a autoridade policial possa cumprir os requisitos legais de interesse do preso, previamente regulamentados no CPP, minimizando os abusos e violações ao princípio mais importante do direito processual penal e da própria carta Magna federal, a saber, o Princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade, haja vista o requisito ser um direito subjetivo do autuado, não estando o delegado de polícia violando a sistemática jurídica.
4. Liberdade Provisória e natureza jurídica da fiança
A Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, inciso LXVI, afirma que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”; no artigo 304 do CPP, quando apresentado o preso a autoridade competente, esta deverá, entre outras medidas, mandar recolhê-lo à prisão, exceto no caso de livra-se solto ou de prestar fiança... (art. 304, caput e § 1º, CPP).
Nota-se que a doutrina classifica a fiança de formas semelhantes, ainda que com outras conotações. Para Fernando da Costa Tourinho Filho, é uma espécie de garantia real ou caução com o objetivo de deixar o indiciado ou réu em liberdade mediante caução (TOURINHO FILHO, 2009, p. 655)
Para Guilherme de Souza Nucci, espécie do gênero caução, que significa garantia ou segurança – caução jidejussória – para assegurar que o réu vai acompanhar a instrução e apresentar-se em caso de condenação, seria a autêntica fiança (NUCCI, 2008, p. 624-625).
Nesse contexto, um dos principais objetivos da fiança é de restituição da liberdade em caso de prisão, exercendo uma função de contracautela, ou ainda, espécie de liberdade provisória substituta da prisão em flagrante (OLIVEIRA, 2011, p. 514).
Para atender ainda mais os parâmetros de garantismo do sistema penal, bem como reduzir o número de encarceramento no país, foi criada a Lei 12.403/11, a qual ampliou o rol de medidas cautelares diversas à prisão e estendeu a aplicabilidade da fiança em várias hipóteses, tornando a fiança medida de natureza híbrida, como entende a maioria da doutrina, não sendo mais apenas uma contracautela à prisão em flagrante, mas também uma medida caultelar alternativa autônoma à prisão na forma do artigo 319, VIII, CPP.
5. Do estado de pobreza
Por fim, é correto afirmar que a avaliação do estado de pobreza do autuado pode ser perfeitamente atestado pela autoridade policial, é o entendimento da melhor doutrina e o que declara o artigo 32, §§ 1º e 2º do CPP.
Nesse diapasão, veja o comentário de QUEIROZ (1993):
Ora, se o CPP considera pobre, consoante o § 1º do artigo 32" a pessoa que não puder prover às despesas do processo, nem privar-se dos recursos, indispensáveis ao próprio sustento ou da família", sendo "prova suficiente da pobreza o atestado da autoridade policial em cuja circunscrição reside o ofendido", nos exatos termos do § 2º do mesmo artigo, ninguém melhor que o Delegado do Polícia para dispensar o pagamento de fiança em casos de evidente injustiça econômica, posto que em parte destinada ao pagamento das custas.
6. Princípio da intervenção mínima e o Direito Penal do Equilíbrio
Nas palavras de Muñoz, o Direito Penal deve se preocupar com os bens mais importantes e necessários à vida em sociedade, o poder punitivo do Estado deve estar regido e limitado pela intervenção mínima para somente intervir em casos de ataques muito graves aos bens jurídicos, devendo as perturbações mais leves do ordenamento jurídico ser objeto de outros ramos do direito. (Muñoz Conde, Francisco. Introducción al derecho penal, p. 59-60).
Daí o caráter fragmentário e subsidiário do Direito Penal que tem relação direta com o princípio da intervenção mínima (ultima ratio) que orienta e limita o poder incriminador do Estado sendo as duas faces de uma mesma moeda. De um lado, orientando o legislador na seleção dos bens mais importantes e necessários ao convívio em sociedade; de outro, também servindo de norte ao legislador para retirar a proteção do Direito Penal sobre aqueles bens que, no passado, gozavam de especial importância, mas que hoje, com a evolução da sociedade, já podem ser satisfatoriamente protegidos pelos demais ramos do ordenamento jurídico.
(GREGO, 2017, p. 99)
Em suma, a teoria do Direito Penal Do Equilíbrio busca uma posição intermediária entre dois pontos extremos: o abolicionismo penal (extinção do Direito Penal) e rigoroso e exacerbado do poder punitivo da lei em sentido amplo (aplicação de um Direito Penal máximo).
Por fim, a doutrina ressalta que para a plena aplicação do Direito Penal do Equilíbrio, devem ser observados os princípios: da intervenção mínima, lesividade, adequação social à medida, insignificância, proporcionalidade, responsabilidade pessoal, limitação das penas, culpabilidade e legalidade.
Conclusão
O art. 350 do Código de Processo Penal traz a hipótese de liberdade provisória, a partir da dispensa de fiança aos crimes cuja pena máxima privativa de liberdade não seja superior a 4 (quatro) anos, quando se verificar que o preso hipossuficiente economicamente preencha os requisitos para concessão do benefício e estejam ausentes os pressupostos da prisão preventiva.
Não obstante os Tribunais Superiores e grande parte da Doutrina entendam que a manutenção da prisão simplesmente pelo não recolhimento do pagamento da fiança constitui abuso e constrangimento ilegal, não sendo aceito o pretexto de que é para garantia da ordem pública, tendo em vista que se deve respeitar, além do estado de inocência o devido processo legal.
Trata-se, portanto, de princípios orientadores do direito processual penal moderno aliado ao atual sistema garantista, tudo com o fito de se evitar a intervenção desnecessária e desproporcional do direito penal, tendo em vista que a prisão deve ser a ultima ratio, conduzindo, dessa forma, a coibir severas incongruências e injustiças.
Defende-se, dessa forma, que se tratando de liberdade e garantias individuais se busque o entendimento que seja mais favorável ao autuado, por isso o Delegado de Polícia não somente pode como deve dispensar o pagamento de fiança ao hipossuficiente economicamente que atenda os requisitos da dispensa, através de interpretação extensiva do artigo 350 do CPP, ou ainda simples alteração do referido artigo para atender a finalidade do moderno sistema penal brasileiro, retirando-se da exclusividade da aplicação apenas do Juiz, pois o que está em jogo é o direito subjetivo do autuado.
Assim, deve o aplicador do Direito, como já é entendimento de uma boa doutrina, ante os pressupostos da liberdade provisória sem fiança, reconhecer que a autoridade policial é parte legítima para agir como garantidor do artigo 350 e restituir a liberdade do autuado.
Referências
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Bacharelando em Direito pela Faculdade de Ciências Sociais e Aplicada de Petrolina - FACAPE. Policial Civil do Estado de Pernambuco, chefe de investigação.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Antonio Jose Nunes dos. Dispensa de Fiança pela Autoridade Policial: (in)eficácia do princípio da presunção de inocência, base fundamental do Direito Processual Penal. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jul 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52074/dispensa-de-fianca-pela-autoridade-policial-in-eficacia-do-principio-da-presuncao-de-inocencia-base-fundamental-do-direito-processual-penal. Acesso em: 22 nov 2024.
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