RESUMO: O presente artigo tem por objetivo, através da análise doutrinária da criminologia sociológica e feminista, compreender o estigma de gênero aplicado a mulher frente uma sociedade patriarcal através de uma breve análise do histórico das opressões sofridas pelo gênero feminino, do etiquetamento imposto a mulher e do labeling approach aplicado a situação da mulher no sistema penal. No mais, desde os primórdios da humanidade, do Período Neolítico a introdução da mulher como profissional fora do ámbito do lar, a mulher é colocada, na sociedade, no papel de coadjuvante, e não de protagonista, como ocorre com o homem, devendo manter-se mera acompanhante do gênero masculino. A mulher, apesar da incessante busca pela libertação do estigma de mãe, responsável pelos ócios do lar e esposa devota ao marido, segue com esse estereótipo e, caso não siga esse padrão, é vista e tachada como alguém que apresenta um comportamento fora do comum. Assim, a pesquisa buscou constatar que o estigma do gênero feminino interfere na visão da mulher em uma sociedade patriarcal, uma vez que a mulher não pode fugir do rótulo previamente estabelecido – ou seja, de submissa ao gênero masculino.
Palavras-chave: Mulher. Estigma. Patriarcado. Mãe. Coadjuvante.
ABSTRACT: The objective of this article is to understand the gender stigma applied to women before a patriarchal society through a brief analysis of the history of the oppressions suffered by the female gender, the labeling imposed on women and the labeling approach applied to the situation of women in the penal system. From the earliest days of humanity, from the Neolithic Period to the introduction of women as professionals outside the home, women are placed, in society, in the role of coadjuvant, not protagonist, as is the case with man, and must remain mere companion of the male gender. The woman, despite the incessant search for the liberation of the stigma of mother, responsible for the idleness of the home and wife devoted to her husband, continues with this stereotype and, if she does not follow this pattern, she is seen and branded as someone who behaves out of the ordinary. Thus, the research sought to verify that the stigma of the female gender interferes with the view of the woman in a patriarchal society, since the woman can not escape the label previously established - that is, submissive to the masculine gender.
Keywords: Woman. Stigma. Patriarchate. Mother. Supporting.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. BREVE HISTÓRICO DE OPRESSÕES VIVIDAS PELA MULHER. 3. O ETIQUETAMENTO DO GÊNERO FEMININO. 4. O LABELING APPROACH APLICADO À QUESTÃO DA MULHER NO SISTEMA PENAL. 5. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa visa analisar a temática envolvendo o estigma de gênero aplicado a mulher frente uma sociedade patriarcal através de uma breve análise do histórico das opressões sofridas pelo gênero feminino, do etiquetamento imposto a mulher e do labeling approach aplicado a situação da mulher no sistema penal.
Ademais, observando o decorrer da história, é possível perceber o embate travado pela mulher por querer se libertar de uma sociedade que a oprime e a estereotipa como mãe e dona de casa, responsável por manter a ordem e a organização da família. Em diversos momentos ímpares da história, o gênero feminino tenta manifestar sua necessidade de ser visto como equânime ao homem buscando ter voz e visão em uma sociedade patriarcal.
Outrossim, desde os primórdios da humanidade, a mulher é colocada, diante de uma sociedade patriarcal, no papel de coadjuvante, e não de protagonista, como ocorre com o homem, devendo manter-se mera acompanhante do gênero masculino. O gênero feminino, apesar da incessante busca pela libertação do estigma de mãe, responsável pelos ócios do lar e esposa devota ao marido, segue com esse estereótipo e, caso não siga esse padrão, é vista e tachada como alguém que apresenta um comportamento fora do comum.
No mais, a teoria do etiquetamento aplicada ao gênero feminino pode ser percebida, no sistema penal, principalmente no sistema carcerário, quando a mulher é rotulada pela prática de determinados crimes, sendo afastada como autora de delitos que não costumam ser cometidos por ela, de acordo com o entendimento já estipulado pela sociedade. O estigma influencia na visão da mulher como autora de determinados delitos em detrimento de outros, devido ao rótulo já firmado pelo patriarcado que a cerca, graças à sua vulnerabilidade social e de gênero imposta.
Em suma, é indubitável que a mulher é vista e etiquetada como passiva e submissa ao homem, em decorrência de anos de exclusão do gênero feminino da participação social graças ao patriarcado, no qual as mulheres foram reconhecidas e rotuladas como responsáveis pela prole e pelo lar. Logo, a mulher apesar de ser tratada e entendida pela sociedade como responsável pelo papel de mãe e encarregada dos ofícios do lar, tomou consciência de si e do poder de se libertar do casamento e das funções maternas pelo trabalho, não mais se sujeitando com docilidade aos mandos e desmandos do homem e do pensamento patriarcal.
2 BREVE HISTÓRICO DE OPRESSÕES VIVIDAS PELA MULHER
Analisando o decorrer da história, é possível vislumbrar o embate travado pela mulher por querer se libertar de uma sociedade que a oprime e a estereotipa como mãe e dona de casa, responsável por manter a ordem e a organização da família. Em diversos momentos ímpares da história, a mulher tenta manifestar sua necessidade de ser vista como equânime ao gênero masculino, podendo ter voz e visão em uma sociedade patriarcal.
A exclusão do gênero feminino da construção dos registros durante a história reforça a aceitação da ideologia patriarcal, consequência dos mais de 2.500 anos em que as mulheres estiveram privadas de voz e conhecimento. O patriarcado pode ser entendido como uma maneira de organização social aderente apenas à metade masculina da espécie humana, caracterizado pela dominância dos homens e a subordinação das mulheres, que ocorre através do controle do homem sobre os interesses e perspectivas do mundo.[1]
A mulher, desde os primórdios do surgimento da humanidade, sempre foi subordinada ao homem, pois, já na época da Pré-História, no período Neolítico, quando acontece o surgimento da agricultura e, consequentemente, da sedentarização dos seres humanos, a mulher acaba exercendo os trabalhos domésticos, porque só eles eram conciliáveis com os encargos da maternidade. Assim, na horda primitiva, os indivíduos se instalavam em um território e se apropriavam dele, vivendo de forma coletiva.[2] Na Grécia, a mulher ocupava uma posição semelhante à do escravo, tendo, novamente, como função primordial, a reprodução da espécie humana, bem como a produção daquilo que era ligado à subsistência dos sujeitos, como, por exemplo, a alimentação através da agricultura.[3]
Ademais, é importante destacar que, na Idade Média, houve um marco importante para o retrocesso da visão da mulher em sociedade, o Malleus Maleficarum, conhecido como Martelo das Feiticeiras – o primeiro discurso criminológico, de acordo com o entendimento de Eugênio Raúl Zaffaroni. A obra, amplamente conhecida por ser um manual de caça às bruxas, que recorria aos textos do Antigo Testamento, da Antiguidade Clássica e de demais autores medievais para comprovar a inferioridade feminina, traz à tona formas cruéis de tortura, ensinando como martirizar mulheres que eram vistas como bruxas.[4] No mais, Soraia da Rosa Mendes destaca:
Embora o Martelo das Feiticeiras tenha tido seus antecessores, é nesse texto que se estabelece uma relação direta entre a feitiçaria e a mulher a partir de textos do Antigo Testamento, dos textos da Antiguidade Clássica e de autores medievais. Nele constam afirmações relativas à perversidade, à malícia, à fraqueza física e mental, à pouca fé das mulheres e, até mesmo, à classe de homens que seriam imunes aos seus feitiços.[5]
Foi com o Martelo das Feiticeiras e com os ensinamentos disseminados por Heinrich Kramer e James Sprenger, inquisidores e autores da obra, que as mulheres ficaram ainda mais estereotipadas como sendo inferiores aos homens, tanto na mente quanto no corpo. Nesse contexto, o período histórico conhecido como “caça às bruxas” ficou marcado como uma prática misógina de perseguição aos indivíduos, mas, principalmente, às mulheres.[6]
Atualmente, com o mundo globalizado, a mulher segue travando batalhas e tentando ser aceita como equânime aos homens, mesmo essa vontade não sendo efetivamente reconhecida. A mulher que busca sua independência no trabalho tem muito menos possibilidades do que seus concorrentes homens; em muitos locais, as tarefas atribuídas a elas são menos especializadas, por isso, seu salário é inferior ao de um operário qualificado.[7]
A supremacia masculina se encontra em todas as classes sociais de uma sociedade e, mesmo que uma mulher assuma uma posição superior à de um homem, ela não será eximida de se sujeitar ao julgamento de outro homem – seja ele pai ou companheiro, por exemplo. A mulher, apesar de estar encontrando cada dia mais autonomia perante a questão de gênero, ainda segue sendo estereotipada até os dias atuais como mãe e responsável pelo bom andamento das atividades que ocorrem no lar, de acordo com o entendimento de uma sociedade patriarcal, não podendo se ausentar por completo dessas questões, que são essencialmente suas.[8] Assim sendo, Simone de Beauvoir realça:
O privilégio econômico detido pelos homens, seu valor social, o prestígio do casamento, a utilidade de um apoio masculino, tudo impele as mulheres a desejarem ardorosamente agradar aos homens. Em conjunto, elas ainda se encontram em situação de vassalas. Disso decorre que a mulher se conhece e se escolhe, não tal como existe para si, mas tal qual o homem a define. Cumpre-nos, portanto descrevê-la primeiramente como os homens a sonham, desde que seu ser-para-os-homens é um dos elementos essenciais de sua condição concreta.[9]
Em suma, com os ensinamentos dos episódios históricos vividos, a mulher se torna mais autônoma em relação ao homem e aos filhos na busca por seus anseios. Apesar de ser tratada e vista pela sociedade como mãe e responsável pelo lar, a mulher tomou consciência de si e do poder de se libertar do casamento e das funções maternas por meio do trabalho, não mais se sujeitando com docilidade aos mandos e desmandos de uma sociedade patriarcal.
3 O ETIQUETAMENTO DO GÊNERO FEMININO
Desde os primórdios, a mulher é colocada, na sociedade, no papel de coadjuvante, e não de protagonista, como ocorre com o homem, devendo manter-se mera acompanhante do gênero masculino. O gênero feminino, apesar da incessante busca pela libertação do estigma de mãe, responsável pelos ócios do lar e esposa devota ao marido, segue com esse estereótipo e, caso não siga esse padrão, a mulher é vista e tachada como alguém que apresenta um comportamento fora do comum.
Tinha razão Simone de Beauvoir ao afirmar que “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”[10], pois o corpo e a mente feminina devem ser instrumentos de liberdade, e não uma essência definidora e limitadora, assumindo algum outro quando necessário for.[11] As mudanças a partir da noção de gênero produziram novas formas de ver o mundo, desconstruindo a base biológica dos comportamentos femininos e masculinos, possibilitando uma nova dialética dos costumes sociais, com novos comportamentos e, consequentemente, mudanças relativas à condição da existência de homens e mulheres e da relação entre eles, reciprocamente.[12]
Assim, a articulação feminista se propõe a ser um catalisador de mudanças sociais para o gênero feminino e, também, para a sociedade, buscando evidenciar a presença da mulher e seus anseios diante o patriarcado que tanto a reprime.[13] O retrato da mulher questionado pelas feministas reflete a dominação masculina, negligenciando a mulher e, dessa maneira, contribuindo para sua invisibilidade como sujeito de conhecimento e de direito.[14]
A diferenciação entre homem e mulher pressupõe uma definição do que são as características que formam a identidade do masculino e do feminino. Não apenas as mulheres aprendem a ser femininas e submissas, e são controladas pelo outro gênero por causa disso, mas também os homens são vigiados na manutenção de sua masculinidade.[15] Ademais, compartilha do mesmo entendimento Linda Nicholson ao explicar que:
Em resumo, não se trata apenas dizer que certas ideias específicas sobre mulheres e homens – “as mulheres são cuidadosas em suas relações, capazes de alimentar, proteger e cuidar, enquanto os homens são agressivos e combativos” – estão sendo generalizadas equivocadamente; quero dizer que também estão sendo generalizadas equivocadamente, e possibilitando generalizações adicionais sobre o caráter, certos pressupostos sobre o corpo e sobre sua relação com o caráter – “existem aspectos comuns nos dados diferenciadores do corpo que geram aspectos comuns nas classificações do humano através de diferentes culturas e nas reações dos outros diante daqueles que assim são classificados”.[16]
Esse simbolismo estereotipado e estigmatizante referente ao gênero feminino, o qual homens e mulheres reproduzem, apresenta a polaridade de valores históricos e culturais como se fossem diferenças naturais. Nessa perspectiva, as mulheres são vistas como representantes de um gênero que é subordinado a outro (o masculino), na medida em que determinadas qualidades, bem como o acesso a certos papéis e cargos profissionais, são entendidos como naturalmente ligados a um indivíduo em detrimento de outro.[17] Assim, os papéis de gênero são responsáveis pela consolidação de um discurso que constrói a identidade do homem e da mulher, e acabam encarcerando ambos em seus limites – dos quais o decorrer da história deve libertá-los.[18]
Como já explicitado, a mulher, durante seu convívio social, foi encarregada dos trabalhos domésticos, pois só eles eram conciliáveis com os encargos da maternidade, encerrando-a na repetição e na iminência da rotina. Essas atribuições se reproduzem dia após dia, da mesma maneira, perpetuando a rotina de conciliação da maternidade com o papel de mãe através dos séculos, apesar de a gestação ser um trabalho cansativo que não traz efetivamente nenhum benefício individual à mulher, exigindo dela, no entanto, numerosos sacrifícios.[19]
O gênero feminino e o masculino são criações culturais e, portanto, comportamentos adquiridos através do processo de socialização, que condiciona diferentemente cada indivíduo para cumprir funções específicas e diversas de acordo com o seu papel em sociedade.[20] Assim, sobre o comportamento imposto à mulher como responsável pelo lar e por prover a prole, Simone de Beauvoir esclarece: “Cumpre-nos ver, portanto, como se vive concretamente essa condição essencialmente definida pelo ‘serviço’ da cama e o ‘serviço’ da casa e na qual a mulher só encontra sua dignidade aceitando sua vassalidade”.[21]
Assim, a condição de ser mulher pode ser vista como um resultado do conjunto articulado de uma civilização, que elabora o que se qualifica e, de forma ainda mais insultuosa, como deve se expressar o feminino frente à sociedade. As atribuições de papéis sociais diferentes para o gênero feminino e para o masculino, constituídas a partir de ocorridos históricos, permitem a perpetuação de uma assimetria entre os gêneros, cujo complexo de fenômenos opressivos articula a inferioridade, a discriminação, a dependência e a subordinação das mulheres, tornando-as reféns em decorrência da sua condição submissa.[22]
A realidade já não cede à teoria. Apesar da opressão do patriarcado, as mulheres estão indo em busca de novas realizações e conquistas, desvencilhando-se da sombra do homem, marido e companheiro que tanto as ofuscou. Enfim, parece que já não há mais dúvidas de que as mulheres sabem inovar na reorganização dos espaços físicos, sociais, culturais, intelectuais e científicos, construindo, assim, novas formas de pensar e de viver, não mais baseadas no pensamento machista e rotulado que lhe foi imposto.[23]
Em síntese, apesar de a nossa sociedade ser patriarcal em seu âmago, tratando o gênero feminino como submisso ao masculino e rotulando a mulher como a figura sensível, materna e cuidadosa da relação, essa imagem está se tornando defasada diante da busca pela quebra dos paradigmas e pela independência feminina. A mulher precisa ser vista e respeitada da forma como ela desejar, livre de estigmas sociais, buscando a sua autonomia após anos vivendo na sombra da figura masculina que a cercava.
4 O LABELING APPROACH APLICADO À QUESTÃO DA MULHER NO SISTEMA PENAL
A teoria do etiquetamento aplicada ao gênero feminino pode ser vista, no sistema penal, principalmente no sistema carcerário, quando a mulher é rotulada pela prática de determinados crimes, sendo afastada como autora de delitos que não costumam ser cometidos por elas, de acordo com o entendimento já estipulado pela sociedade. O estigma influencia na visão da mulher como autora de determinados delitos em detrimento de outros, devido ao rótulo já firmado pelo patriarcado que a cerca, graças à sua vulnerabilidade social e de gênero.
A função real do sistema jurídico criminal não é de combater, reduzir ou eliminar a criminalidade, protegendo o bem comum e gerando segurança pública e jurídica, mas, ao contrário, a de construir uma sociedade com uma visão seletiva e estigmatizante, reproduzindo as desigualdades e assimetrias sociais, de classe e de gênero. Esse entendimento é chamado de eficácia invertida, em que o sistema criminal acaba criando mais conflitos do que efetivamente resolvendo os já existentes, gerando mais discórdia através da rotulação dos indivíduos.[24]
A seletividade é a função verdadeira e lógica estrutural do sistema penal, comum às sociedades patriarcais, e não há nada mais eficaz para simbolizar essa seletividade do que analisar a população carcerária.[25] A reprodução da violência, a criação de condições para condutas ainda mais lesivas, a corrupção institucional, a concentração do poder nas mãos de poucos indivíduos, a verticalização social e a destruição das relações horizontais são características estruturais do exercício do poder dos sistemas penais.[26]
Os modos de inserção feminina e sua seleção pelo poder punitivo estão relacionados diretamente à sua vulnerabilidade social e de gênero, a partir do perfil homogêneo de mulheres que possuem sua liberdade privada, assim como dos relatos de sua trajetória até culminar no cometimento de um delito. Os relatos de vida das mulheres autoras de crimes indicam a necessidade de se observar fatores que abarcam as configurações emotivas socialmente construídas no marco das relações e representações de gênero ao longo da história da mulher em sociedade.[27]
O crime de maior ocorrência entre as mulheres é o tráfico de entorpecentes, representando cerca de 57% do total de mulheres encarceradas em nosso país. Em sua maioria, essas mulheres tinham funções subordinadas e marginalizadas, dificilmente atuavam como chefes da quadrilha.[28] Em geral, a mulher ocupa as posições mais subalternas do tráfico de drogras, atuando, por exemplo, como “mula”, “avião”, “bucha”, “fogueteira” e “vapor”, funções que demandam contato direto com a droga, ocasionando maior risco de ser presa.[29] No mais, acerca das mulheres reclusas em nosso sistema penal, Camila Belinaso de Oliveira enfatiza:
Ainda, dados do mês de julho de 2015 do Departamento de Segurança e Execução Penal do Rio Grande do Sul (DESEP) mostram um total de 1.716 mulheres em situação de cárcere, representando uma maioria de reclusas jovens, 55,87% com 34 anos ou menos; com instrução escolar precária (analfabeta, alfabetizada ou ensino fundamental incompleto), totalizando 61,23%. Quanto ao motivo pelo qual estão presas, 96,95% são acusadas e/ou condenadas por distintos delitos relacionados ao tráfico de drogas, com alto índice de reincidência, 52,50%.[30]
Assim, a imensa maioria das mulheres em situação de cárcere se encontra detida pelo delito de tráfico de drogas por serem esposas, mães ou amantes dos traficantes, tendo a sua relação com esses homens como base da transgressão e do cometimento do delito, novamente reforçando a ideia da mulher vista como mera acompanhante. Normalmente, as mulheres que cometem o delito do tráfico de entorpecentes cometem esse crime ao lado dos homens, sendo detidas e apreendidas juntamente com eles, ou são pressionadas a cometerem o delito no lugar do homem preso, normalmente através da visita conjugal, que representa uma das obrigações com o companheiro e que deve ser cumprida.[31]
Ao delinquir, a mulher rompe não só com a lei penal, mas também com o seu papel cultural em sociedade – com o estigma de mulher honesta –, violando duplamente a norma, razão pela qual é também duplamente punida quando adentra as esferas formais de controle do sistema penal.[32] Já afirmava Simone Brandão de Souza: “Fecha-se, assim, um circuito perverso de exclusão social”[33], demonstrando que, com a prisão, há o desfecho da supressão da mulher da vida em sociedade, pois, uma vez já sofrendo os estigmas de gênero, sendo diminuída em vários âmbitos sociais, como, por exemplo, o salarial, agora a mulher é de fato excluída, já que, ao adentrar o mundo prisional, anteriormente ocupado pelos homens, quebra a ideia de ser dócil, passiva e menos suscetível à prática de comportamentos violentos.
Outro rótulo que é de suma importância ser mencionado é o que coloca a mulher criminosa como aquela que, mesmo inconscientemente, se rebela contra o papel social a ela destinado. Esse rótulo traz a ideia de que a mulher delinquente é aquela que não consegue cumprir o seu papel previamente estipulado pela sociedade, recorrendo ao mundo do crime, com o entendimento de que o crime praticado por uma mulher seria uma ação masculinizante dela.[34] Outrossim, Simone Martins assegura:
Na busca por identificações físicas das criminosas natas para melhor proteger a sociedade delas, a figura da mulher masculinizada, viril, tão agressiva quanto o homem, também é condenada. A atávica, tão semelhante ao selvagem, que não apresentaria amor materno seria capaz de matar o próprio filho, também é considerada perigosa. Mas essas figuras de mulher criminosa que são enunciadas pelo discurso criminológico positivista não o são por oferecerem um perigo às outras pessoas, mas por oferecerem risco à sociedade em sua moralidade e costumes. Desta forma, a neutralização desses sujeitos se fez, também historicamente, necessária.[35]
Assim, o mito de que a mulher não comete delitos não é relacionado a questões biológicas que a diferem do homem, mas à sua repressão diferenciada no tempo e no espaço, causada por códigos que se preocupam em neutralizar aquela que colocaria em risco a família para além da segurança pública.[36] Isto é, as estatísticas de que o gênero feminino delinque menos que o gênero masculino não são meramente relacionadas à causalidade de gênero, mas ao modo de vida doméstico, privado, em que as relações vitais e o conjunto de obstinações obrigam as mulheres a serem boas e obedientes, perpetuando sua passividade e submissão.[37]
A figura da mulher delinquente acaba, por vezes, não sendo mencionada pelo discurso criminológico, pois oferece riscos ao bem comum, aos costumes e à moralidade impostos por uma sociedade patriarcal, que carrega a ideia de uma mulher submissa, jamais cometedora de crimes perigosos, que, no máximo, atua como cúmplice do companheiro/marido no cometimento de delitos. Portanto, a análise da mulher criminosa deve ser investigada e exposta apesar dos estigmas estipulados ao gênero feminino, que o classificam como dócil, passivo e honesto. Contrariando o proposto pelo patriarcado de que não deveria haver criminosas, a mulher é tão capaz do cometimento de delitos quanto o homem – sejam esses delitos cometidos em cumplicidade com o homem ou não –, e esses crimes devem ser discutidos e analisados pelo sistema jurídico criminal da mesma forma como ocorre no caso do gênero masculino.
5 CONCLUSÃO
O presente artigo tem como escopo demonstrar ao leitor uma análise sobre o estigma de gênero aplicado a mulher frente uma sociedade patriarcal. Ainda, a pesquisa trouxe uma breve análise do histórico de opressões sofridas pelo gênero feminino, do etiquetamento imposto a mulher e do labeling approach aplicado a situação da mulher no sistema penal.
Diante disso, explanou-se a respeito das opressões sofridas pela mulher no decorrer da história, percebendo o embate travado pela mulher para se libertar de uma sociedade que a oprime e a estereotipa como mãe e dona de casa, responsável por manter a ordem e a organização da família. Em diversos momentos ímpares da história, o gênero feminino manifestou sua necessidade de ser visto como equânime ao homem buscando ter voz e visão em uma sociedade patriarcal.
Após, analisou-se que a mulher é colocada, desde os primórdios da humanidade, diante de uma sociedade patriarcal, no papel de coadjuvante, e não de protagonista, como ocorre com o homem, devendo manter-se mera acompanhante do gênero masculino. A mulher, apesar da incessante busca pela libertação do estigma de mãe, responsável pelos ócios do lar e esposa devota ao marido, segue com esse rótulo e, caso não siga esse padrão, é vista e definida como alguém que apresenta um comportamento fora do comum.
Destacou-se, ainda, a teoria do etiquetamento aplicada ao gênero feminino no sistema penal, principalmente no sistema carcerário, quando a mulher é rotulada pela prática de determinados delitos, sendo afastada como autora de crimes que não costumam ser cometidos por ela, de acordo com o entendimento já previamente estabelecido pela sociedade. Assim, o estigma influencia na visão da mulher como autora de determinados delitos em detrimento de outros, devido ao rótulo já firmado pelo patriarcado que a cerca, graças à sua vulnerabilidade social e de gênero.
Em suma, confirmou-se a importância no estudo do estigma de gênero aplicado a mulher frente uma sociedade patriarcal, pois é indubitável que a mulher é vista e etiquetada como passiva e submissa ao homem, em decorrência de anos de exclusão do gênero feminino da participação social graças ao patriarcado, no qual a mulher ficou identificada como responsável pelos ócios da família e do lar. Por conseguinte, a mulher apesar de ser estigmatizada pela sociedade como responsável pelo papel de mãe e encarregada pelo lar, tomou consciência de si e do poder de se libertar do casamento e das funções maternas pelo trabalho, não mais se sujeitando com prontidão ao estabelecido pelo homem e pela nossa sociedade patriarcal.
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[21] BEAUVOIR, 2016b, p. 235, grifos da autora.
[22] OLIVEIRA, 2017.
[23] RAGO, Margareth. Epistemologia Feminista, Gênero e História. Santiago de Compostela: CNT-Compostela, 2012. Disponível em: <http://www.cntgaliza.org/files/rago%20genero%20e%20historia%20web.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2018.
[24] ANDRADE, 2005.
[25] OLIVEIRA, 2017
[26] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
[27] BOITEUX, Luciana; CHERNICHARO, Luciana Peluzio. Encarceramento feminino, seletividade penal e tráfico de drogas em uma perspectiva feminista crítica. VI Seminário Nacional de Estudos Prisionais e III Fórum de Vitimização de Mulheres no Sistema de Justiça Criminal. São Paulo, 2014.
[28] MENDES, 2017.
[29] BOITEUX; CHERNICHARO, 2014.
[30] OLIVEIRA, 2017, p. 109.
[31] OLIVEIRA, 2017.
[32] BOITEUX; CHERNICHARO, 2014.
[33] SOUZA, 2005, p. 16.
[34] HELPES, Sintia Soares. Mulheres na prisão: uma reflexão sobre a relação do Estado brasileiro com a criminalidade feminina. Revista Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, v. 2, n. 3, 2013. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/CESP/article/view/19015>. Acesso em: 02 mai. 2018.
[35] MARTINS, Simone. A mulher junto às criminologias: de degenerada à vítima, sempre sob controle sociopenal. Revista de Psicologia, v. 21, n.1, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/fractal/v21n1/09.pdf>. Acesso em: 03 mai. 2018.
[36] MARTINS, 2009.
[37] OLIVEIRA, 2017.
Doutoranda em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), mestra em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul(PUCRS) e bacharela em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LINCK, Lívia do Amaral e Silva. O estigma de gênero aplicado a mulher frente uma sociedade patriarcal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 ago 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52116/o-estigma-de-genero-aplicado-a-mulher-frente-uma-sociedade-patriarcal. Acesso em: 22 nov 2024.
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