Resumo: De molde a estimular a abordagem de tema bastante árido no Direito Penal Tributário, busca-se, quando diante de omissão no recolhimento de tributos associada a expedientes de fraude, simulação, blindagem patrimonial e outras formas de engodo que não a mera inadimplência fiscal, a adoção de capitulação criminal mais severa que a do tipo do art. 2° inciso II da Lei n° 8.137/90. Expõe-se argumentos jurídicos que embasem o enquadramento do agente nos tipos do art. 1° da Lei n° 8.137/90 em casos em que o contribuinte comprovadamente simule a escassez de recursos financeiros e/ou aja de má fé ao assumir parcelamentos sucessivos logo abandonados, bem como utilize-se de toda sorte de mecanismos ilícitos para furtar-se ao recolhimento da obrigação tributária.
Palavras-chave: Omisso de recolhimento – omissão no recolhimento do ICMS – inadimplência tributária e art. 2° inciso II da Lei n° 8.137/90 – inadimplência associada a expedientes fraudulentos e art. 1° da Lei n° 8.137/90.
Abstract: this paper intends to bring to the light the discussion about of a new definition of tax evasion whenever the criminal agent goes further than merely avoiding the tax payment. Ordinary, if the agent owes the tax to State and declares it, but doesn’t pay the amount, could be sued by the crime of article 2nd, II, of Law n° 8.137/90, wich sentence’s is softer than the crimes predicted by article 1st of that same Law. But in some cases the agent owes the tax but indeed pretends lack of resources, keep defaulting, defrauding, hiding assets, profits and money from persecution, and makes false statement to obtain installment of the tax. This behavior cannot be condoned anymore, and needs to be fought by framing the agent in the crime of 1st article of 8.137/90 Law.
Keywords: tax evasion – non payment of taxes – mere default and article 2nd of Law 8.137/90 – tax fraud and article 1° of Law 8.137/90.
Sumário: Introdução; 1. Tributos que impõem ao contribuinte o dever da prévia prestação de declaração; 2. Conceito de Omissão de Recolhimento; 3. A Capitulação do Crime – um giro interpretativo; 3.1 Omisso de recolhimento tipificado pelo art. 1° da Lei n° 8.137/90; Conclusão; Referências.
Introdução
Os crimes tributários, tal como atualmente capitulados pela Legislação Especial, realizam-se mediante as mais variadas formas de execução, evoluindo desde modelos em que vigora deliberada e rudimentar sonegação fiscal, até fraudes estruturadas que não raras vezes passam insuspeitas pelas autoridades fazendárias e pelos encarregados da persecução penal.
Escudados em atos que, em condições normais, espelhariam induvidosa boa-fé, contribuintes por vezes valem-se de expedientes fingidamente ordinários, travestidos de mera inadimplência, objetivando senão furtarem-se ao efetivo pagamento do tributo devido, ao menos postergar ad aeternum o recolhimento da exação aos cofres públicos.
Exemplo dessas condutas que para alguns juristas deveriam ser penalmente irrelevantes, é a configuração da situação denominada informalmente no ambiente fiscal de “omisso de recolhimento”, cuja dissecação é o objeto do presente trabalho. Através da omissão do recolhimento do tributo, o agente diz-se livre do intuito deliberado de sonegar, já que anteriormente ao ato de deixar de recolher o tributo, existe um outro ato antecedente, que consiste na prestação de declaração do quantum devido às autoridades fazendárias. Discutiremos, neste estudo, o dolo subjacente nesse comportamento do contribuinte, o que fatalmente classifica tal conduta como crime e, constatadas situações específicas, a arrola como tipo capitulado dentre os de apenação mais severa pela Lei n° 8.137/90.
1. Tributos que impõem ao contribuinte o dever da prévia prestação de declaração
As espécies de impostos que compõem o sistema constitucional tributário brasileiro apresentam diferentes formas de aferição da existência da obrigação e do valor devido – ato de lançamento. Sem pretender adentrar às recorrentes discussões acerca de sua natureza constitutiva, declaratória ou mista[1], importa dizer que a modalidade de lançamento em recorte é aquela se dá por homologação, já que o presente estudo cinge-se ao ICMS.
Na modalidade de lançamento por homologação, o sujeito passivo exerce participação ativa no ato de lançamento, tudo conforme comando insculpido no art. 150 do Código Tributário Nacional[2]. Parte integrante desse procedimento envolve, quando se trata do ICMS, a entrega da DAPI (Declaração de Apuração do ICMS) à autoridade fazendária, sendo justamente a fase que concretiza a prestação de declaração do tributo devido.
Não se confunda, aqui rememorando os rudimentos do Direito Tributário, o lançamento por homologação com o lançamento por declaração. Nesta última hipótese, o contribuinte declara a ocorrência do fato gerador ao Fisco, para que este tome ciência dele e assim efetue o lançamento. Naquela, o contribuinte está obrigado a não só declarar o fato gerador praticado, como também recolher o tributo em seguida, incumbindo ao Fisco homologar o ato.
Importa trazer brevemente à colação a divergência entre os expoentes da doutrina acerca da efetiva prática do chamado ato de homologação do lançamento pelo Fisco, discutindo a forma mais recorrente, se expressa ou tácita.
Teóricos da envergadura de Sacha Calmon Navarro Coelho sustentam que, de fato, a administração fazendária não costuma homologar de pronto o lançamento, reservando a si o direito de fiscalizar o contribuinte pelos cinco anos que se sucedem até que ocorra a homologação tácita.
Segundo o jurista,
Na verdade, o lançamento por homologação existe quando a Administração expressamente concorda com a atividade do contribuinte de calcular por conta da lei o imposto devido, fazendo o seu pagamento. Nesse caso, o lançamento dito por homologação é irreversível. Em toda nossa vida, jamais vimos uma homologação formal integral de pagamento feito pelo contribuinte. A homologação não interessa à Administração. A sua existência deve-se a cópia de Direito estrangeiro feita sem cuidados críticos. Por isso mesmo, a Administração nunca homologa. Prefere deixar correr em aberto o prazo de cinco anos a contar do fato gerador da obrigação tributária, com o fito de fiscalizar o contribuinte quantas vezes queira, e eventualmente, expedir lançamentos ditos "suplementares", de ofício. A fórmula do CTN, embora sofisticada, é, sem dúvida, engenhosa.(COELHO, p. 773)
Complementa COELHO, p. 775: “E quando pensamos que o silêncio consente (homologação tácita), chegamos ao paradoxo de chamar de lançamento ao não-ato estatal, como quer o CTN.”
Outro grupo de tributaristas, no entanto, entende que em se tratando de tributo sujeito ao lançamento por homologação e, considerada a própria natureza dessas modalidades, a demandar a prestação de declaração pelo contribuinte, estaria dispensada qualquer outra atividade estatal para que seja operado o lançamento.
É a posição defendida por Leandro Paulsen, citado pelas professoras Daniela Olímpio e Patrícia Santos (2013):
Assim, formalizada pelo próprio contribuinte a existência da sua obrigação e do correspondente crédito do Fisco, resta suprida a necessidade de a autoridade verificar a ocorrência do fato gerador, indicar o sujeito passivo, calcular o montante devido e notificar o contribuinte para efetuar o pagamento. Toda essa atividade torna-se descipienda. O lançamento de ofício resta desnecessário. Declarado o débito, pois, resta formalizada a existência do correspondente crédito.
Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no enunciado n° 436, verbis: “A entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco.”
Kyioshi Harada e Leonardo Musumecci Filho (p. 62) comentam o verbete:
A Súmula está a proclamar que não há necessidade de aguardar o prazo previsto no § 4° do art. 150 do CTN para se ter por homologado tacitamente o lançamento. O seu enunciado harmoniza-se com o art. 3° da LC n° 118/05, que fixou o termo inicial do prazo de prescrição do direito de pleitear a restituição de tributo antecipado a que alude o § 1° do art. 150 do CTN. Só que se considerar constituído o crédito tributário na data da entrega da declaração (GIA/DCTF), não haverá mais lugar para denúncia espontânea, ainda que tivesse o contribuinte incorrido em erro aritmético calculando o imposto a menor.
Importante lembrar que a questão repercute também nos aclamados institutos da prescrição e da decadência, temáticas, porém, estranhas ao presente estudo e por isso afastadas da leitura.
2. Conceito de Omissão de Recolhimento
Relembrados os conceitos básicos acima expostos, está pavimentado o caminho para a compreensão da conduta intitulada como omisso de recolhimento.
Trata-se, em definição sucinta, de situações em que o contribuinte diligencia pela prestação de declaração à autoridade fazendária, chegando até mesmo a fazê-lo com respeito aos valores efetivamente devidos, recusando-se entretanto a recolher o tributo ao caixa do ente tributante.
Em outras palavras, é declarar que de fato se deve, e o quanto se deve, e não pagar.
Em se tratando do ICMS, há que se considerar a possibilidade de omissão no recolhimento do tributo incidente sobre operações próprias, ou seja, sobre aqueles fatos geradores praticados pelo contribuinte, ou ainda sobre operações de terceiros, caso da substituição tributária.
Em sede de operações próprias, a conduta se desenvolve da seguinte maneira: o contribuinte declara a ocorrência do fato gerador – no caso, a venda de uma mercadoria. Regularmente efetuada a operação comercial, restou transmitido ou repassado ao adquirente (consumidor final) não apenas o custo da mercadoria propriamente dita e o valor agregado que irá compor o “lucro” do comerciante auferido com aquela operação, como também, embutido no montante cobrado, o custo do tributo.
Por sua vez, o fenômeno jurídico da substituição tributária[3] nada mais é do que a opção do legislador infraconstitucional, através da celebração de convênios e protocolos entre as secretarias de fazenda estaduais, por selecionar um dos elos da cadeia produtiva atribuindo-lhe o ônus de recolher o ICMS incidente por toda a operação, da produção ao consumidor final. Tal se dá por razões de otimizar a atividade de fiscalização, uma vez que a concentração da obrigação de repasse do tributo ao ente tributante na pessoa de apenas um dos agentes de produção evita que seja necessário fiscalizar os encarregados de cada etapa da cadeia produtiva.
Em relação a mercadorias, na substituição tributária regressiva, ou “para trás”, a legislação atribui a determinado contribuinte a responsabilidade pelo pagamento do ICMS relativo às operações anteriormente travadas. A substituição tributária progressiva, ou “para a frente”, caracteriza-se por eleger um contribuinte como responsável tributário pelo ICMS incidente sobre as subsequentes operações comerciais de determinada mercadoria, até a saída para o consumidor final. Normalmente, trata-se do fabricante ou importador.
As contribuições previdenciárias seguem regramento semelhante, contudo a apropriação indébita praticada pelos respectivos agentes de retenção tem previsão específica no art. 168-A do Código Penal. Entrementes, o tipo apresenta iter criminis distinto, uma vez que o agente do delito desconta as tais contribuições devidas pelos segurados da previdência social, empregados por si registrados, quando do pagamento de salários e, em outro giro, deixa de recolher as contribuições patronais que estão por Lei a seu encargo.
Andreas Eisele (2001, p. 164), em sua obra intitulada Apropriação Indébita e Ilícito Penal Tributário, expõe as diferenças entre apropriação indébita e omissão de recolhimento:
A par de tais diferenças elementares dos tipos, a objetividade jurídica do crime de apropriação indébita difere da referente à omissão de recolhimento de tributos indiretos, ou tributos e contribuições sociais devidos por agentes de retenção, porque, enquanto naquele crime se tutela o patrimônio de pessoas que se encontre em poder de terceiros, nestes a proteção recai sobre o erário e, por consequência, o patrimônio do Estado, no que se refere à arrecadação de meios para o desempenho de suas tarefas.
3. A Capitulação do Crime – um giro interpretativo
A capitulação penal do chamado omisso clássico é, de ordinário, a do art. 2°, inciso II, da Lei n° 8.137/90, crime submetido ao rito do Juizado Especial Criminal em razão da pena que lhe é cominada – detenção de seis meses a dois anos e multa –, sendo em todo caso absoluta a competência dos Juizados em matéria penal.
É crime omissivo, embora exista um ato comissivo prévio, quando o agente desconta ou cobra o tributo de outrem. O tipo exige tão somente dolo genérico para sua consumação[4].
Ainda assim, há quem defenda a inconstitucionalidade do tipo, ao argumento de que se trataria de suposta “prisão por dívida”, sendo somente admitida, no Brasil, a prisão do devedor de alimentos. Nem mesmo a do depositário infiel, conforme ditames do Pacto de San José da Costa Rica, tem amparo jurídico atualmente.
Não é a corrente à qual nos filiamos.
Segundo Pedro Roberto Decomain (2010, p. 381), exímio especialista no tema,
Poderia surgir discussão quanto à constitucionalidade desse inciso, diante da proibição da prisão civil por dívidas, inserida no art. 5°, LXVII, da Constituição da República.
Ocorre que, aqui, não se está a punir, no inciso da lei de que se cuida, pura e simplesmente a inadimplência tributária, mas sim a prática de não ser recolhido ao verdadeiro destinatário o valor que o contribuinte cobrou, precisamente para esse fim, de um terceiro.
A situação focada no inciso guarda semelhança com a do cobrador que recebe valores de devedores de sua empregadora e, em lugar de repassá-los a ela, os despende em benefício próprio.
Comete crime de apropriação indébita e jamais se discutiu que a hipótese de sua condenação por tal prática delituosa pudesse ser obstaculizada pelo inciso constitucional referido, que aliás já constava de Constituições brasileiras anteriores à de 1988.
Além disso, como já se salientou antes, aqui não se trata de prisão civil, mas sim de prisão de natureza punitiva, pela prática de um crime.
O que a regra da Lei Maior proíbe é que se ameace com prisão o devedor civil, com o objetivo puro e simples de compeli-lo a pagar o que deve.
Não foi, porém, o que fez o inciso II do art. 2° da Lei n° 8.137/90. Este em verdade considerou crime não repassar ao fisco aquilo que se cobrou de terceiro exatamente com o objetivo de destinar-se ao pagamento de um tributo.
Andreas Eisele (2001), conclui:
Os crimes contra a ordem tributária, entre os quais se encontra a omissão de recolhimento de tributos indiretos, ou de tributos e contribuições sociais devidos por agentes de retenção, constituem matéria pertencente ao Direito Penal Tributário, espécie do gênero Direito Penal.
Portanto, devem ser tratados em face das regras do Direito Penal, consistindo lei penal especial e não matéria tributária de caráter sancionatório.
Os Tribunais salvaguardam à unanimidade a constitucionalidade do dispositivo:
PENAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. LEI Nº 8.137/90, ART. 2º, II. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. PARCELAS PRESCRITAS. DOLO GENÉRICO. DIFICULDADES FINANCEIRAS NÃO SUFICIENTEMENTE DEMONSTRADAS. DOSIMETRIA DAS PENAS PRIVATIVA DE LIBERDADE E MULTA CORRETAMENTE FIXADAS. 1.A materialidade e a autoria do tipo penal previsto no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90 restaram suficientemente demonstradas. 2.As parcelas reconhecidamente prescritas não afastam a conclusão da sentença. 3.Para a configuração do delito em questão, basta a conduta omissiva de não recolher aos cofres públicos os valores relativos ao imposto de renda descontados dos contribuintes, sendo suficiente o dolo genérico. 4. Incumbe ao réu coligir aos autos os elementos hábeis a comprovar a alegada ocorrência de dificuldades financeiras. Hipótese em que a prova produzida pelo réu não se mostrou suficiente à comprovação de incontornável dificuldade financeira. 5.A dosimetria das penas privativas de liberdade e de multa foi corretamente observada, uma vez que a sentença apelada, devidamente fundamentada, atentou para as circunstâncias legais aplicáveis à hipótese. 6.Apelação criminal improvida. PENAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. LEI Nº 8.137/90, ART. 2º, II. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. PARCELAS PRESCRITAS. DOLO GENÉRICO. DIFICULDADES FINANCEIRAS NÃO SUFICIENTEMENTE DEMONSTRADAS. DOSIMETRIA DAS PENAS PRIVATIVA DE LIBERDADE E MULTA CORRETAMENTE FIXADAS. 1.A materialidade e a autoria do tipo penal previsto no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90 restaram suficientemente demonstradas. 2.As parcelas reconhecidamente prescritas não afastam a conclusão da sentença. 3.Para a configuração do delito em questão, basta a conduta omissiva de não recolher aos cofres públicos os valores relativos ao imposto de renda descontados dos contribuintes, sendo suficiente o dolo genérico. 4. Incumbe ao réu coligir aos autos os elementos hábeis a comprovar a alegada ocorrência de dificuldades financeiras. Hipótese em que a prova produzida pelo réu não se mostrou suficiente à comprovação de incontornável dificuldade financeira. 5.A dosimetria das penas privativas de liberdade e de multa foi corretamente observada, uma vez que a sentença apelada, devidamente fundamentada, atentou para as circunstâncias legais aplicáveis à hipótese. 6.Apelação criminal improvida. (ACR 1997.38.00.013099-5/MG, Rel. Desembargador Federal I´talo Fioravanti Sabo Mendes, Quarta Turma,DJ p.36 de 19/08/2004) (TRF-1 - ACR: 13099 MG 1997.38.00.013099-5, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL I´TALO FIORAVANTI SABO MENDES, Data de Julgamento: 08/06/2004, QUARTA TURMA, Data de Publicação: 19/08/2004 DJ p.36)
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. SONEGAÇÃO FISCAL (ART. 2º, II, DA LEI N. 8.137/90, POR NOVE VEZES, NA FORMA DO ART. 71 DO CÓDIGO PENAL). SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA. PRELIMINARES. INÉPCIA DA DENÚNCIA. NÃO ACOLHIMENTO. REQUISITOS DO ART. 41 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL PREENCHIDOS. PRESENÇA DE ELEMENTOS SUFICIENTES PARA A CONFECÇÃO DA DEFESA TÉCNICA. INEXISTÊNCIA DE AFRONTA AOS PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. PREFACIAL AFASTADA. ALEGADA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 2º, II, DA LEI N. 8.137/90. INVIABILIDADE. VERIFICAÇÃO DE PRÁTICA DE CRIME DE SONEGAÇÃO FISCAL. PRÁTICA QUE NÃO SE RESUME SIMPLESMENTE EM INADIMPLEMENTO TRIBUTÁRIO OU DÍVIDA CIVIL. CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA. O posicionamento dominante deste egrégio Tribunal de Justiça é no sentido da constitucionalidade do art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90, haja vista que tal prática não se resume simplesmente a débito fiscal, de modo que inadmissível considerar a referida norma como mero instrumento arrecadatório ou, ainda, como dívida de natureza civil, uma vez que a tipificação penal da conduta sobrevêm para reprimir aqueles que promovem o crescimento da sonegação fiscal, opondo-se aos interesses do Estado em detrimento da sociedade, que tem os serviços essenciais prejudicados diante da diminuição da receita estatal. MÉRITO. ABSOLVIÇÃO POR AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO. IMPOSSIBILIDADE. AGENTE QUE, NA QUALIDADE DE RESPONSÁVEL PELA ADMINISTRAÇÃO DA EMPRESA, DEIXOU DE RECOLHER AOS COFRES PÚBLICOS, NO PRAZO LEGAL, TRIBUTO (ICMS) COBRADO E EFETIVAMENTE PAGO PELOS CONTRIBUINTES DE FATO. IMPOSTO SUPORTADO PELO CONSUMIDOR FINAL. COMERCIANTE QUE SE CONSTITUI EM MERO DEPOSITÁRIO, TENDO COMO DEVER REPASSAR OS VALORES AO FISCO. CONDENAÇÃO MANTIDA. PREQUESTIONAMENTO. DISPOSITIVOS LEGAIS DEVIDAMENTE APRECIADOS NA CONFECÇÃO DO JULGADO. REQUERIMENTO PREJUDICADO. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJ-SC - APR: 20130508984 SC 2013.050898-4 (Acórdão), Relator: Marli Mosimann Vargas, Data de Julgamento: 10/03/2014, Primeira Câmara Criminal Julgado)
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA (ART. 2º, INCISO II, DA LEI N. 8.137/90 C/C ART. 71 DO CÓDIGO PENAL). RECURSO DEFENSIVO. SUSTENTADA A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 2º, INCISO II, DA LEI N. 8.137/90. INOCORRÊNCIA DE AFRONTA AO ART. 5º, INCISO LXVII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (PROIBIÇÃO DA PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA) OU AO PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA. CONSTITUCIONALIDADE DO TIPO PENAL, CONSOANTE ENTENDIMENTO PACÍFICO DESTE TRIBUNAL. TESES DE ERRO DE PROIBIÇÃO, ESTADO DE NECESSIDADE, INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA E ATIPICIDADE DA CONDUTA POR AUSÊNCIA DE DOLO. INSUBSISTÊNCIA. AGENTES QUE, NA QUALIDADE DE ADMINISTRADORES DE EMPRESA, DEIXARAM DE RECOLHER, NO PRAZO LEGAL, O TRIBUTO DEVIDO. DIFICULDADES FINANCEIRAS QUE NÃO TÊM O CONDÃO DE AFASTAR A RESPONSABILIDADE PENAL. EMPRESA QUE TEM APENAS O DEVER DE ARRECADAR DO CONTRIBUINTE DE FATO A QUANTIA MONETÁRIA EQUIVALENTE AO ICMS E, APÓS, REPASSÁ-LA AO FISCO. CONDUTA TÍPICA. ERRO DE PROIBIÇÃO, ESTADO DE NECESSIDADE E INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA NÃO CONFIGURADOS. CONDENAÇÃO MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. 1. "A Lei n. 8.137/90 não busca uma maneira forçosa para que o agente venha a cumprir suas obrigações tributárias, diga-se, como ocorre nos casos de prisão civil, renegada pelo Pacto de São José da Costa Rica. Em verdade, a lei dos crimes contra a ordem tributária tem caráter penal, buscando a prevenção ou a repressão da prática delitiva. [...]" (TJSC - Apelação Criminal n. 2012.057061-4, de Brusque, Rel. Des. Jorge Schaefer Martins, j. em 21/11/2013). 2. Comete o crime previsto no art. 2º, inciso II, da Lei n. 8.137/90 o agente que, na condição de proprietário e gestor de pessoa jurídica, livre e conscientemente deixa de recolher ao erário, no prazo legal, valores referentes a Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS - que eram devidos. [...] (TJ-SC - APR: 20140598089 SC 2014.059808-9 (Acórdão), Relator: Paulo Roberto Sartorato, Data de Julgamento: 03/11/2014, Primeira Câmara Criminal Julgado)
Em relação à configuração do crime do art. 2° inciso II em omissão no recolhimento do ICMS operações próprias ou por substituição tributária, o eminente Ministro Rogério Schietti Cruz faz clara digressão quanto ao posicionamento das Turmas do Superior Tribunal de Justiça que cuidam de matéria penal, ao proferir voto[5] no Habeas Corpus n° 399.109/SC, do qual é relator e cujo julgamento encontra-se vinculado ao do REsp n° 1.598.005/SC pela Terceira Seção daquele Sodalício:
A Sexta Turma, em alguns precedentes recentes tem sustentado que, na hipótese de não haver o repasse de ICMS retido pelo sujeito passivo da obrigação tributária, há de se distinguir duas situações:
1ª) casos de ICMS recolhido em operações próprias ou;
2ª) casos de ICMS recolhido por substituição tributária.
Nos processos em que se discute a primeira situação, isto é, naqueles casos em que não há o repasse de ICMS recolhido em operações próprias, entende o referido Órgão Colegiado que se trata de simples inadimplemento fiscal. Assim, a previsão típica contida no art. 2°, II, da Lei n. 8.137/1990 somente tria incidência nos casos de responsabilidade tributária por substituição, ou seja, na segunda situação.
A Quinta Turma (e, também, algumas decisões monocráticas da Sexta Turma), contudo, não estabelece essa distinção. Assim, o não repasse do ICMS recolhido pelo sujeito passivo da obrigação tributária, em qualquer hipótese, enquadra-se (formalmente) no tipo previsto art. 2°, II, da Lei n. 8.137/1990, desde que comprovado o dolo.
Vide julgados da Sexta Turma: AgRg no REsp n° 1.465.259/GO, REsp n° 1.543.485/GO, RHC n° 77.031/SC, AgRg no REsp 1.632.556/SC. Espera-se que em breve a Terceira Seção do STJ, a qual abrange justamente as duas Turmas em questão, uniformize sua jurisprudência, amenizando a discussão ainda hoje vivente.
Colaciona-se os seguintes acórdãos da Quinta Turma:
PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. LEI 8.137/90, ART. 2º, II. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ICMS. DECLARAÇÃO. NÃO RECOLHIMENTO. SUBSUNÇÃO EM TESE DO FATO À NORMA. INÉPCIA DA DENÚNCIA. PEÇA INAUGURAL QUE ATENDE AOS REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP. AMPLA DEFESA GARANTIDA. INÉPCIA NÃO EVIDENCIADA. RECURSO ORDINÁRIO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I - A jurisprudência do excelso Supremo Tribunal Federal, bem como desta eg. Corte, há muito já se firmaram no sentido de que o trancamento da ação penal por meio do habeas corpus é medida excepcional, que somente deve ser adotada quando houver inequívoca comprovação da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito. (Precedentes). II - O art. 2º, II, da Lei 8.137/90 prevê que constitui crime contra a ordem tributária "deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos". III - A alegação do recorrente de que consistiria em infração administrativo-tributária a conduta de declarar, mas não recolher o tributo aos cofres públicos, não se sustenta, uma vez que esta col. Quinta Turma já decidiu que "Não há falar em atipicidade da conduta de deixar de pagar impostos, pois é o próprio ordenamento jurídico pátrio, no caso a Lei 8.137/1990, que incrimina a conduta daquele que deixa de recolher, no prazo legal, tributo descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação, e que deveria recolher aos cofres públicos, nos termos do artigo 2º, inciso II, do referido diploma legal." (RHC 44.466/SC, Quinta Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe de 29/10/2014). IV - A exordial acusatória cumpriu todos os requisitos previstos no art. 41, do Código de Processo Penal, sem que a peça incorresse em qualquer violação do que disposto no art. 395, do mesmo diploma legal. V - A denúncia foi expressa em destacar que a empresa administrada pelo recorrente, "nos períodos de agosto/2010 e fevereiro/2011, não recolheu aos cofres públicos, no prazo determinado pelo art. 60 do RICMS/01, os valores apurados e declarados" (fl. 126, e-STJ). VI - As alegações atinentes à falta de responsabilidade do recorrente pela gestão contábil da empresa (uma vez que não teria residência no local de sua sede), ou de que "nunca executou funções operacionais", não encontram campo adequado para discussão na via estreita do habeas corpus, pois o writ não se presta ao exame de matéria fática ou de elementos de prova, que devem ser debatidas no curso da instrução do processo. VII - "Se eventualmente demonstrado que um dos recorrentes não teria exercido função de gerência, administração ou mesmo se restar provado que não detinha poder decisório dentro da empresa relacionada com o fato delituoso narrado na exordial acusatória, seria eventualmente hipótese de absolvição, e não de inépcia da denúncia, de tal sorte que a alegada ingerência dos recorrentes na administração da pessoa jurídica somente será efetivamente esclarecida durante a instrução criminal, e não por essa via estreita do habeas corpus, como pretendem os recorrentes" (RHC 34.051/PR, Sexta Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJe de 25/4/2013, grifei) Recurso ordinário desprovido. (STJ - RHC: 42923 SC 2013/0389764-9, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 18/06/2015, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/06/2015)
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS DECLARADO PELO PRÓPRIO CONTRIBUINTE. FATO QUE SE AMOLDA, EM TESE, AO CRIME PREVISTO NO ARTIGO 2º, INCISO II, DA LEI 8.137/1990. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CARACTERIZADO. DESPROVIMENTO DO RECURSO. 1. O trancamento de ação penal em sede de habeas corpus é medida excepcional, só admitida quando restar provada, inequivocamente, sem a necessidade de exame valorativo do conjunto fático-probatório, a atipicidade da conduta, a ocorrência de causa extintiva da punibilidade, ou, ainda, a ausência de indícios de autoria ou de prova da materialidade do delito. 2. Da leitura do artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/1990, depreende-se que pratica o ilícito nele descrito aquele que não paga, no prazo legal, tributo aos cofres públicos que tenha sido descontado ou cobrado de terceiro, exatamente como ocorreu na hipótese em exame, em que o ICMS foi incluído em serviços ou mercadorias colocadas em circulação, mas não recolhido ao Fisco. 3. Não há que se falar em atipicidade da conduta de deixar de pagar impostos, pois é o próprio ordenamento jurídico pátrio, no caso a Lei 8.137/1990, que incrimina a conduta daquele que deixa de recolher, no prazo legal, tributo descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação, e que deveria recolher aos cofres públicos, nos termos do artigo 2º, inciso II, do referido diploma legal. Precedente. 4. Recurso desprovido. (STJ - RHC: 44465 SC 2014/0010100-4, Relator: Ministro LEOPOLDO DE ARRUDA RAPOSO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/PE), Data de Julgamento: 18/06/2015, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/06/2015)
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS DECLARADO PELO PRÓPRIO CONTRIBUINTE. FATO QUE SE AMOLDA, EM TESE, AO CRIME PREVISTO NO ARTIGO 2º, INCISO II, DA LEI 8.137/1990. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CARACTERIZADO. DESPROVIMENTO DO RECURSO. 1. O trancamento de ação penal em sede de habeas corpus é medida excepcional, só admitida quando restar provada, inequivocamente, sem a necessidade de exame valorativo do conjunto fático-probatório, a atipicidade da conduta, a ocorrência de causa extintiva da punibilidade, ou, ainda, a ausência de indícios de autoria ou de prova da materialidade do delito. 2. Da leitura do artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/1990, depreende-se que pratica o ilícito nele descrito aquele que não paga, no prazo legal, tributo aos cofres públicos que tenha sido descontado ou cobrado de terceiro, exatamente como ocorreu na hipótese em exame, em que o ICMS foi incluído em serviços ou mercadorias colocadas em circulação, mas não recolhido ao Fisco. 3. Não há falar em atipicidade da conduta de deixar de pagar impostos, pois é o próprio ordenamento jurídico pátrio, no caso a Lei 8.137/1990, que incrimina a conduta daquele que deixa de recolher, no prazo legal, tributo descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação, e que deveria recolher aos cofres públicos, nos termos do artigo 2º, inciso II, do referido diploma legal. 4. Recurso desprovido. (STJ - RHC: 44466 SC 2014/0010111-7, Relator: Ministro JORGE MUSSI, Data de Julgamento: 21/10/2014, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/10/2014)
Conforme se depreende do exposto, a criminalização da omissão de recolhimento de tributos indiretos, ou de tributos e contribuições devidos por agentes de retenção ou em operações próprias, não fere a garantia prevista no art. 5°, LXVII, da Constituição Federal, o qual veda a prisão civil por dívidas, posto que a norma insculpida no art. 2° inciso II da Lei n° 8.137/90 prevê, para uma conduta típica, ilícita e culpável, prisão penal e não civil, ainda que o fato penalmente relevante possua como seu elemento de configuração a existência de dívida tributária de valor específico. Assim, há que se invocar o brocardo jurídico nullum crimen, nulla poena, sine lege, o qual coloca uma verdadeira pá de cal na discussão.
3.1 Omisso de recolhimento tipificado pelo art. 1° da Lei n° 8.137/90
Observa Guilherme Nucci (2007, p. 878/879), em análise dos tipos previstos pelo art. 2° da Lei n° 8.137/90, que trata-se de crime “formal (não depende da ocorrência de efetivo prejuízo para o Estado, consistente na supressão ou redução do tributo; se tal se der, transfere-se a conduta do agente para o art. 1°, inciso I);” (destacamos).
Com efeito, alguns casos apresentam peculiaridades que demandam, sob pena de não atribuir a cada qual a pena justa e compatível com a conduta denunciada e o dolo do agente, uma verdadeira adequação do tipo penal.
Especificamente em relação ao omisso, a conduta, de regra ostensiva e desprovida de interesse subjacente, pode revelar-se no particular contrária à sua própria lógica, ou seja, de negação da vontade ínsita ao ato de confissão do débito: a manifestação de vontade esconde a verdadeira intenção de omitir e evitar a caracterização do ilícito.
São fatos em que se observa o emprego de ardil destinado à sonegação do tributo, a exemplo do requerimento de sucessivos parcelamentos de um mesmo PTA, de molde a suspender a punibilidade, para em seguida abandonar o pagamento das parcelas e requerer nova avença. Há que se estudar com cautela também os casos de devedores contumazes. Alguns empresários mantêm-se no mercado dessa forma, a despeito do passar dos meses e anos, pois a situação de fato assim simulada e o amparo legal o permitem. Contudo, revelam estes atos o intuito de livrar-se da exação ou ao menos adiá-la, postergando por tempo indeterminado o pagamento do tributo e fazendo da sonegação oportunidade de reinvestimento do capital, que em tese pertence ao Estado, nas próprias atividades empresariais.
Nessas e em outras situações assemelhadas, quando verificadas, é preciso desqualificar o aparente e mero inadimplemento, viabilizando o enquadramento da conduta ao artigo 1° inciso I, da Lei n° 8.137/90, na modalidade “prestar declaração falsa às autoridades fazendárias”. Residirá a falsidade da declaração na inverossímil alegação de que se pretende pagar o tributo, quando o comportamento do agente denotar elemento volitivo contrário. Há ainda que se levar em conta, mediante apuração investigativa, a simulação de situações de insolvência e a transferência intencional de patrimônio a terceiros (tanto pessoas físicas quanto pessoas jurídicas[6], estas últimas muitas vezes constituídas com o objetivo único de acolher bens e outros haveres obtidos através do proveito econômico resultante dos atos de sonegação fiscal – prática conhecida como blindagem patrimonial)
Nesse ponto, interessante tecer breve parêntese para anotar que o Código Tributário Nacional, em seu art. 185, prevê que presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu “começo”, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito em dívida ativa. A norma excepciona, em seu parágrafo único, a hipótese de reserva de bens ou rendas, por parte do devedor, suficientes ao total pagamento da dívida consolidada.
A prática ensina que muitos empresários de forma exitosa mantêm a atividade empresarial por longos anos, décadas até mesmo, em que pese omissos no recolhimento do ICMS. Em alguns casos, os contribuintes recolhem o tributo de forma esporádica, em determinado mês, para nos meses seguintes deixar de fazê-lo. Quando interpelados, atribuem, quase que invariavelmente, o não recolhimento da exação a crises financeiras, alegando incapacidade econômica para o pagamento. No entanto, o confronto das movimentações patrimoniais e financeiras tanto dos sócios quanto das pessoas jurídicas – tanto da contribuinte ou de suas coligadas – pode por vezes revelar revela não a alegada carência de recursos, mas a pujança de bens e haveres adquiridos com a atividade empresarial nutrida pelo capital oriundo da sonegação.
O giro interpretativo, portanto, depende inexoravelmente da análise do caso concreto.
Em trecho de seu voto, o Desembargador do TJMG relator da Apelação Criminal n° 1.0024.01.114993-7/001 deixa consignado:
[...] Ao contrário do sustentado pelo causídico, o crime de sonegação fiscal é a inadimplência propriamente dita, porém tipificada como delito. Decorre da conduta omissiva de não pagar o que se deve ao erário público e sua consumação dar-se-á no dies ad quem para honrar o compromisso tributário.
Assim, se o contribuinte recebeu, no preço da mercadoria, o valor do imposto, e não efetuou o seu recolhimento a tempo, terá praticado o fato descrito no art. 2.º, II, da Lei 8.137/90.
Conquanto controvertida a matéria, tenho entendimento no sentido de que é dispensável o dolo específico para a configuração do crime de sonegação fiscal, porque a noção de deixar de recolher o tributo, no prazo legal, é intrínseca da própria idéia e ato de causar prejuízo ao erário público e obter vantagem econômica. ilícita.
Basta, pois, o dolo genérico - vontade livre e consciente de não pagar o imposto devido, visto que a preordenação criminosa - a intenção de fraudar ou ludibriar - não é elemento subjetivo descrito no tipo penal.
Nesse diapasão, a declaração da dívida ao erário, mediante envio do DAPI à Secretaria da Fazenda, o qual motivou a ação fiscal e conseqüente encaminhamento da notitia criminis ao Ministério Público, não é álibi a sustentar a absolvição do delito de sonegação fiscal por elisão do dolo, pois corresponde à obrigação tributária acessória que, descumprida, configuraria a evasão fraudulenta descrita no art. 1.º da Lei 8.137/90, por inegável ardil.” (TJMG. Apelação Criminal n° 1.0024.01.114993-7/001. Relator: Desembargador Eli Lucas de Mendonça. 4ª Câmara Criminal. Publicado em 18/08/2006) (destacamos.)
Contudo, a jurisprudência que compreende a particularidade da conduta e aplica o melhor Direito é ainda incipiente, e o seu objeto, por ainda escassa doutrina, é árido.
O seguinte acórdão do STJ dita as linhas gerais do entendimento que é necessário consolidar e difundir:
HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA (ART. 1o., I E II DA LEI 8.137/90). SÚMULA 691/STF. IMPETRAÇÃO JULGADA NA ORIGEM. PLEITO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL IMPROCEDENTE. CRÉDITO TRIBUTÁRIO DEVIDAMENTE INSCRITO EM DÍVIDA ATIVA E SEM SUSPENSÃO DE EXIGIBILIDADE. DISPENSABILIDADE DO INQUÉRITO POLICIAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA NÃO CARACTERIZADA. PARECER DO MPF PELA PREJUDICIALIDADE DO WRIT. ORDEM DENEGADA. [...] 6. No caso, a denúncia aponta com clareza que o paciente, na qualidade de sócio-administrador da empresa, obrigado, assim, em tese, ao gerenciamento das obrigações com o fisco, no período em que exerceu suas atividades, suprimiu tributos mediante diversas ações ou omissões (não recolhimento do IRPJ, da CSLL, do PIS e da COFINS na época própria como contribuinte de obrigações tributárias próprias ou como substituto tributário). Verifica-se, ainda, da inicial acusatória, que o acusado não logrou explicar ao Fisco, de modo convincente, inúmeras transferências de recursos feitas entre as empresas do grupo, em especial a origem e o destino das movimentações financeiras. [...] 9. Ordem denegada. (STJ: HC 158102. 5ª Turma. Relator Min. Napoleão Nunes Maia Filho. DJE 27/09/2010.)
Veja-se que o habeas corpus supra citado teve seu pedido indeferido pelo STJ, para o prosseguimento da ação penal que o paciente pretendeu, através do remédio constitucional, trancar. E, naquele feito, o crime que lhe fora atribuído é justamente o tipo do art. 1°, incisos I e II da Lei n° 8.137/90, inexistindo imputação classificada como art. 2° inciso II do mesmo diploma legal. Inobstante, dessume-se do acórdão do aludido HC que a denúncia narra, entre seus fatos, exatamente a conduta omissiva do recolhimento das espécies tributárias que menciona.
Por sua vez, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, confirmando sentença do Juízo da Vara Criminal e da Infância e Juventude da comarca de Nova Lima-MG, recentemente julgou a apelação criminal n° 1.0188.12.001693-9/001, feito no qual acolhida a tese relativa à capitulação da conduta omissiva do recolhimento do ICMS-ST como delito previsto no art. 1° inciso I da Lei n° 8.137/90.
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL – CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA – SONEGAÇÃO DE ICMS – CRÉDITO LANÇADO – REDUÇÃO DO VALOR DEVIDO AO FISCO – AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS – CONDENAÇÃO MANTIDA – CONFISSÃO ESPONTÂNEA – DIMINUIÇÃO DA PENA-BASE AQUÉM DO MÍNIMO LEGAL – IMPOSSIBILIDADE – QUEBRA DO PACTO LEGISLATIVO – SÚMULA 231 DO STJ. 01. Demonstrado que o réu reduziu o valor de tributo devido ao fisco, omitindo informações, impõe-se manter a condenação pela prática do delito tipificado no art. 1.º II, da Lei n.º 8.137/90. 02. A redução da pena-base aquém do mínimo legal, por força de circunstância atenuante, viola o pacto legislativo. As circunstâncias atenuantes previstas no art. 65 do CP, ao contrário das causas de diminuição de pena, não integram o tipo penal, sendo, por isso, genéricas, eis porque, ao reconhecê-las, é defeso ao juiz abrandar a reprimenda aquém do piso previsto pelo legislador. (TJMG – apelação criminal n° 1.0188.12.001693-9/001. Relator: Desembargador Fortuna Grion. Publicado em 29/10/2015. Unânime)
Colhe-se do inteiro teor do julgado:
[...] “QUE o interrogando confessa que entre os meses de janeiro a dezembro de 2009 e janeiro a junho de 2010, no exercício de gestão empresarial deixou de recolher o ICMS, não concordando no entanto, com o valor consignado na denúncia; QUE o interrogado acredita que deixou de recolher perto de dois milhões de reais e não quatro milhões de reais como consta; QUE o interrogando realmente apresentou duas auto-denúncias, e requereu o prazo de 120 meses para quitar o valor acima, o que foi indeferido; QUE o interrogando passou a ter todas as suas notas fiscais ‘denegadas, inviabilizando o funcionamento da empresa’; QUE o interrogando nunca foi fiscalizado na sua empresa;” [...] Portanto, observa-se que o apelante omitiu informações ao não recolher o ICMS substituição tributária pela entrada de mercadorias no período compreendido entre janeiro de 2009 e junho de 2010. Ademais, ficou demonstrado nos autos que o increpado não agiu de boa-fé ao apresentar as denúncias espontâneas, pois não pagou nenhuma parcela da dívida, buscando, dessa forma, apenas dificultar o recolhimento do tributo. Não bastasse, ao apresentar a denúncia espontânea, o acusado assumiu a responsabilidade pelo pagamento de todo o tributo devido, sendo responsável por toda a cadeia tributária. Tanto isso é verdade que, como visto acima, já foram expedidas certidões de dívida ativa e já foi ajuizada ação de execução fiscal, a qual encontra-se em regular processamento. Doutro giro, não merece acolhida o pleito absolutório embasado na alegação de que, ao apresentar as denúncias espontâneas, o recorrente agiu amparado na excludente da ilicitude do exercício regular do direito. Ora, restou comprovado nos autos que as denúncias espontâneas apresentadas não se prestaram para o pagamento do crédito devido, mas apenas para tentar isentar o réu de sua responsabilidade. Não é por demais lembrar que a sonegação de tributos produz danos consideráveis à coletividade, já que a arrecadação é a principal fonte de renda do Estado, sendo o único meio de o Poder Público atender às demandas sociais dentre elas a educação, saúde e segurança. [...] (destacamos)
É um passo que sinaliza para a construção e aceitação de uma nova tese jurídica, que vem ao debate para suprir lacuna vivente na subsunção do fato dado ao magistrado, para que este nos dê o melhor Direito (da mihi factum, dabo tibi jus).
Não se trata da temerária banalização do direito penal, o que afrontaria o consagrado cânone da ultima ratio. Trata-se de propor capitulação mais adequada a uma determinada conduta, evitando que inveterados sonegadores, sob o manto do art. 2°, II, continuem a usufruir da tipificação criminal branda que lhes é favorável e não guarda proporção com o grau de lesividade da ação/omissão praticada.
Conclusão
O exercício do jus puniendi se apresenta como um dos mais importantes instrumentos jurídicos disponíveis para assegurar a eficiência da Administração Pública e a integridade da ordem tributária. Longe de constituir um mecanismo de coação para a cobrança de impostos, taxas e contribuições, trata-se de meio legítimo e imprescindível para o exercício pleno da cidadania e que assegura um regime realizador de uma efetiva justiça social. Sob esta ótica, as receitas derivadas, dentre elas os tributos, muito além de satisfazerem um objetivo de exclusividade do Fisco, transmudam-se em um interesse difuso, assegurando a fruição dos direitos fundamentais em seu máximo potencial.
A necessidade de se arrecadar, portanto, vai muito além de simples prerrogativa do Estado, consistindo numa das principais molas mestras da captação de receitas para o custeio da máquina Estatal e das políticas e serviços públicos constitucionalmente assegurados.
Nesse contexto, a omissão no recolhimento de tributos é, comprovadamente, um dos grandes escoadouros de receitas tributárias. A conduta pode se tratar de mero inadimplemento tributário, quando o agente deliberadamente deixa de recolher aos cofres públicos a espécie tributária descontada ou cobrada de terceiro, na qualidade de sujeito passivo de obrigação. O legislador criminalizou esse fato através do art. 2°, inciso II, da Lei n° 8.137/90, elegendo o tributo como bem jurídico penalmente relevante dada a sua importância, vital para a consecução dos objetivos do Estado, e difusa em relação às expectativas da sociedade.
Pelo presente trabalho, demonstrado fundamentadamente que outro deve ser o tratamento jurídico do inadimplemento fiscal reiterado e prolongado no tempo, em casos tais que a suposta intenção de quitar o débito através de sucessivas negociações e renegociações do quantum devido encobre o logro de adiar por tempo indeterminado o cumprimento da obrigação tributária. Do mesmo modo, situações em que o contribuinte simula escassez de recursos para honrar seus débitos tributários, desde que devidamente investigadas e apuradas, demandam capitulação criminal diversa da branda pena prevista, com justiça, para o simples inadimplemento. Para os fatos assim descritos, é perfeitamente cabível a aplicação das penas cominadas pelo art. 1° inciso I da Lei n° 8.137/90, na modalidade “prestar declaração falsa às Autoridades Fazendárias”.
Com efeito, a proposta de capitulação criminal dos ilícitos descritos supra é a que melhor se amolda ao ato inquinado do dolo se sonegar tributos, conferindo à descrição daquelas condutas o tipo penal que lhes seriam próprios, com o fito de se reprimir o fato penalmente relevante e recrudescer a persecução penal como forma de desestimular a evasão de tributos.
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TJ-SC - APR: 20130508984 SC 2013.050898-4 (Acórdão), Relator: Marli Mosimann Vargas, Data de Julgamento: 10/03/2014, Primeira Câmara Criminal Julgado. Disponível em https://tj-sc.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/24990494/apelacao-criminal-apr-20130508984-sc-2013050898-4-acordao-tjsc . Acesso em 27/08/2018.
TJ-SC - APR: 20140598089 SC 2014.059808-9 (Acórdão), Relator: Paulo Roberto Sartorato, Data de Julgamento: 03/11/2014, Primeira Câmara Criminal Julgado. Disponível em https://tj-sc.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/25322128/apelacao-criminal-apr-20140598089-sc-2014059808-9-acordao-tjsc . Acesso em 27/08/2018.
TRF-1 - ACR: 13099 MG 1997.38.00.013099-5, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL I´TALO FIORAVANTI SABO MENDES, Data de Julgamento: 08/06/2004, QUARTA TURMA, Data de Publicação: 19/08/2004 DJ p.36. Disponível em https://trf-1.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/2257002/apelacao-criminal-acr-13099-mg-19973800013099-5 Acesso em 27/08/2018.
[1] Sobre o tema recomenda-se a leitura do artigo “Lançamento Tributário: Declara ou Constitui o Crédito Tributário? Ato ou Procedimento Administrativo?”, de autoria de Edcarlos Alves Lima, publicado em Revista de Estudos Tributários, n° 89, jan-fev/2013, Editora Síntese.
[2] Código Tributário Nacional, art. 150: O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa.
[3] A substituição tributária, após inúmeras discussões pretéritas acerca de sua constitucionalidade, ganhou espaço na Constituição Federal, em seu art. 150, § 7°.
[4] Sobre o dolo genérico do tipo, vide STJ, Recurso Especial n° 480395/SC.
[6] É comum em esquemas sonegatórios a participação de empresas cujo objeto social é a administração patrimonial, sendo essas as que se prestam na maioria das vezes a receber e ocultar do alcance estatal os bens livres de ônus do contribuinte executado, evitando que sejam penhorados ou indisponibilizados judicialmente mediante medida cautelar assecuratória.
Pós-graduada em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; graduada em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Assessora Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.<br><br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MORLEY, Letícia Carvalho Ribeiro. A omissão de recolhimento do ICMS e uma proposta de (re)tipificação do crime tributário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 ago 2018, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52188/a-omissao-de-recolhimento-do-icms-e-uma-proposta-de-re-tipificacao-do-crime-tributario. Acesso em: 22 nov 2024.
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