Resumo: Este estudo possui como objeto a relação, ora conflitante, ora salutar, entre Direito e Saúde como subsistemas sociais dentro da Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann. Saúde não enquanto direito (o direito à saúde), que também o é, mas analisada aqui enquanto subsistema social autônomo igualmente ao Direito. Como grande escopo do presente trabalho está a conscientização de que o Biodireito pode ser um mecanismo resolutor de conflitos e problemáticas entre esses dois subsistemas. Utiliza-se do marco teórico específico luhmanniano para desenvolver a ideia presente neste artigo, partindo de premissas mais gerais. Como típicos subsistemas, Direito e Saúde se autocondicionam internamente, possuem códigos de operação próprios, entretanto necessitam comunicar-se cognitivamente com o entorno, o que na teoria chama-se de acoplamento estrutural entre subsistemas. Nessas comunicações recíprocas, Direito e Saúde entrelaçam-se entre aspectos salutares (autopoiéticos), mas também entre aspectos corrosivos (alopoiéticos). Nestes, há a necessidade de uma solução que não seja proveniente de nenhum dos dois subsistemas: o Biodireito.
Palavras-Chave: Sistemas. Direito. Saúde. Acoplamento. Dignidade humana.
Abstract: This study has as object the relation, sometimes conflicting, sometimes salutary, between Law and Health as social subsystems within the Theory of Social Systems of Niklas Luhmann. As a great scope of the present work is the awareness that the Bioright can be a mechanism to resolve conflicts and problems between these two subsystems. The luhmannian theoretical framework is used to develop the idea present in this article, starting from more general premises. As typical subsystems, Law and Health are self-conditioned internally, have their own operating codes, however they need to communicate cognitively with the environment, which in theory is called structural coupling between subsystems. In these reciprocal communications, Law and Health intertwine between salutary (autopoietic) aspects, but also between corrosive (allopoietic) aspects. In these, there is a need for a solution that does not come from any of the two subsystems: the Bioright.
Keywords: Systems. Subsystems. Right. Health. Coupling.
Introdução
Como é facilmente perceptível no tocante às analogias feitas entre quaisquer parâmetros sociais realizados, geralmente em pesquisas de larga escala das Ciências Sociais, a sociedade dos dias atuais é extremamente complexa. Isso é um fato. Não há explicação específica para tamanha complexidade, se é por cada vez mais haver pensamentos distintos ou direitos sendo reivindicados ou quem sabe por concepções de mundo diametralmente opostas (a teoria luhmanniana nos dá uma luz). O Direito mudou porque a sociedade mudou (REALE, 2002) e esta, por conseguinte, de forma diretamente proporcional, teve sua complexidade aumentada. E a Saúde, assim como o Direito, também acompanhou tal caminho.
Nessa toada buscar-se-á, no presente artigo, tratar da relação e da interação entre o Direito e a Saúde tendo o Biodireito como consequência desse acoplamento estrutural entre os subsistemas jurídico e sanitário e possível mecanismo de resolução de controvérsias entre ambos. De modo que o objeto principal sobre o qual debruça-se aqui não é o Biodireito em si, mas uma pequena análise de como aquele favorece a entrelaçamento entre o Direito e a Saúde. A doutrina que se propõe a embasar o trabalho em tela advém de uma perspectiva sociológica calcada na visão do sociólogo alemão Niklas Luhmann através de sua Teoria dos Sistemas Sociais ou, para alguns, Teoria dos Sistemas “Autopoiéticos” (CAMPILONGO, 1998). Para atender à proposta, separar-se-ão três capítulos que tratarão de: apresentar a teoria sobre a qual se baseia o artigo; demonstrar a concepção de Direito e Saúde como subsistemas sociais interpenetrantes; e o estudo do Biodireito como forma de união e resolução de controvérsias entre aqueles.
O marco teórico em uso fundamenta-se na funcionalidade dos sistemas, na abertura cognitiva e no fechamento operacional que cada subsistema deve ter dentro de uma sociedade. De forma que nenhum subsistema está isolado dentro de uma sociedade, que tem por sua essência o mecanismo da hipercomplexidade – já anteriormente referida – e da diferenciação. A explicação luhmanniana é que a sociedade é uma “unidade da diferença” e que, por sê-lo, emerge como tal criando subsistemas interiormente para que, com vias de reduzir sua complexidade, operacione-se através de uma comunicação recíproca e controlada entre eles.
1. A Teoria dos Sistemas Sociais e suas premissas fundamentais
Tal teoria surge com as ideias de Niklas Luhmann inspiradas pelo seu amigo e professor na Universidade de Harvard Talcott Parsons, no decorrer do século passado, e pelo contexto social europeu do final do século XIX. Luhmann buscara, em princípio, refletir como encontravam-se as grandes potências mundiais décadas antes da Primeira Guerra Mundial. O esforço de sua vida, segundo bem o afirma seu ex-aluno Darío Rodríguez (LUHMANN, 1998) no prefácio da obra Sistemas Sociais, do próprio Luhmann, se orientou na construção de uma grande teoria capaz de dar conta da sociedade e dos fenômenos sociais nela contidos. Tentou elaborar uma Teoria dos Sistemas, mas achou complexo demais e decidiu dar tratativa a uma Teoria dos Sistemas Sociais.
A teoria social do alemão considera que a comunicação é a operação básica e elementar sobre a qual se constrói a complexidade social. “Um sistema é sempre mais complexo que seu entorno”, logo, a função da construção de um sistema é a redução de complexidade, e isso é feito através da seletividade – externa e interna. Segundo ele, cada sistema poderá exercer suas próprias contingências, ou seja, atuar segundo suas próprias escolhas, porém também terá que submeter-se, com limites, à disposição de outros sistemas para reduzirem sua complexidade, limites de sentido, modo como os sistemas sociais processam a complexidade. Tome-se um exemplo fácil: boa parte da população brasileira adota a religião cristã; tendo isso em vista, grande parte de seus legisladores provavelmente podem ser cristãos; dessa forma, eles poderiam muito bem editar e aprovar atos normativos (leis) que prescrevessem que, antes de quaisquer audiências realizadas no âmbito judicial, fosse guardado 1 minuto antes de realizá-las, para preces e orações. Isso a priori pode parecer absurdo para uma sociedade que se autodenomina laica, e de fato o é. Por quê? Porque o Direito precisa funcionar segundo suas próprias condições e não ser condicionado por outros subsistemas sociais, que nesse caso foi a Religião. No entanto, também o Direito não pode estar totalmente fechado a eles. Há a necessidade, tomando o mesmo exemplo comparativo, de o Direito acompanhar as mudanças da Religião no decorrer dos tempos, até para que sempre se preze pelo respeito a toda e qualquer denominação de cunho religioso – direito previsto constitucionalmente inclusive (veja-se art.5, VI, da Constituição Federal Brasileira de 1988). A teoria de Luhmann se baseia nisso.
De modo que, nas palavras dele, cada subsistema sobreviverá ao tempo, mas precisará de relações com o entorno para existir. Essa comunicação é que formaria os sistemas sociais e seria criada por eles, criando assim o que o alemão chama de “sentido”, sendo este, basicamente, uma síntese de relações dialógicas entre Ego e Alter subjacentes da dinâmica comunicacional – assemelhando-se ao que o icônico linguista Mikhail Bakhtin (1997) pensara no âmbito da filosofia da linguagem com o conceito de dialogismo. Para denominar essa comunicação de um nome mais específico, Luhmann bebe da fonte, coincidentemente, de profissionais da Saúde: os cientistas chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, quando se apropria do conceito de autopoiesis, cuja tese central é de que as células humanas se desenvolvem por elas próprias, mas tendo, necessariamente, contato com o entorno. O ser humano, por exemplo, nem pode ser totalmente aberto ao meio externo, pois dessa forma órgãos como o coração iriam parar de funcionar após um certo tempo, nem pode ser totalmente fechado, pois assim não existiria a respiração, a ingerência de alimentos, etc. Um subsistema é operacionalmente fechado, mas cognitivamente aberto, em outras palavras, é fechado para operar-se internamente, mas é aberto para aprender com os outros subsistemas. É nesse sentido que Luhmann toma o conceito de autopoiese. Outro ponto importante a se ressaltar cinge-se na nomenclatura “sistema” ou “subsistema”: usa-se de forma correta a alcunha de “subsistema” para referir-se a essas diversas esferas, tais como o Direito, a Saúde, a Economia, a Política, etc., haja vista que “sistema”, na ótica de Luhmann, era algo muito mais abrangente, do qual o social era o gênero daquelas (espécies) já citadas. Dentro do grande sistema social é que haveriam os subsistemas da sociedade.
Todo subsistema deve ser autorreferente, ou seja, deve ter produção própria de atos únicos e irrepetíveis em meio a várias opções. Assim como toda relação entre subsistemas sociais necessita, portanto, ser positiva em seu sentido mais estrito, ou seja, ser autopoiética. Pois quando um subsistema dá espaço tamanho para que o outro o condicione estará aí havendo uma corrupção sistêmica, ou, na linguagem simples de Luhmann, estará ocorrendo aí uma alopoiese, desvirtuando assim o propósito dessa comunicação. Ademais, também propõe a referida teoria que todo subsistema possui um código binário de funcionamento, uma espécie de unidade de operação. O Direito com o lícito/ilícito; a Economia com o lucro/o prejuízo; a Arte: o belo/o não belo, etc. E é nesse código binário que encontra-se a essência de cada subsistema. A autopoiese, portanto, garante que, mediante um acoplamento estrutural saudável, todo subsistema se reconhecerá a si mesmo através do estímulo normativo das expectativas, que são a base do processamento das suas comunicações.
2. O Direito e a Saúde como subsistemas sociais autopoiéticos e interpenetrantes
Em sabidas as premissas fundamentais da teoria luhmanniana, é possível avançar-se no que se quer discutir. Tal e como dito antes, as sociedades modernas marcam-se pela funcionalidade de seus sistemas. Tal funcionalidade reside no fato de que cada sistema formará subsistemas que se comunicam entre si. Esta, inclusive, talvez seja a grande contribuição do alemão: a existência da necessidade de comunicação entre esses subsistemas, pois, à ótica dele, tudo é comunicação. De forma que nenhum subsistema sobreviveria isolado, pois se assim o fosse, deixaria de existir com a evolução das sociedades. E é justamente a existência desse diálogo, que ocorre a todo momento, seja de forma cognitiva (autopoiética e um aprendendo com o outro) ou seja de forma corruptiva (alopoiética e um destruindo o outro), dependendo de cada subsistema, que faz cada um sobreviver de sociedade em sociedade, com suas complexidades e particularidades. Cada qual funciona, orienta-se, condiciona-se e diferencia-se sob um código próprio, um código binário. Interessam-se, pois, dois deles: o Direito e a Saúde.
A Medicina, como área de imensa importância dentro do subsistema da Saúde, é uma ciência antiga, que data dos primórdios gregos em seus tempos. Hipócrates (460 a.C. - 377 a C), filósofo e médico grego, considerado por muitos como o pai da Medicina, foi quem concedeu a esta o status de ciência. O clínico grego rompera com todas as bases das ciências da saúde. Dentre outras contribuições sumamente importantes, uma delas foi introduzir um método científico na cura de doenças. Hipócrates também elaborou e cumpriu um rigoroso código de ética, cujos preceitos estão contidos que hoje chamamos de "Juramento de Hipócrates", que até hoje todo bacharel em Medicina faz ao se formar. Pode-se dizer que o Juramento de Hipócrates se configurou como o primeiro documento normativo da Medicina. Foi através deste juramento que à Medicina foram dados parâmetros reguladores. A primeira relação – ainda que longínqua – da Saúde com o Direito. Este, por sua vez, como instrumento regulador de condutas, está presente desde quando há sociedade. Afinal, como diz o velho brocardo, “ubi societas, ibi ius”, onde há sociedade, há o Direito. E seu status de ciência autônoma dotada de universalidade e previsibilidade foi dado através dos escritos de Hans Kelsen, que uniu as bases jurídicas sob a ótica da norma. Ambos os subsistemas, portanto, operam sob diferentes códigos, mas com objetivos semelhantes: a promoção do bem-estar social, do bem-estar nas relações humanas, a busca de uma evolução (progresso) social mediante justiça e a valorização do indivíduo enquanto pessoa dotada de toda a atenção, toda apreciação e todo o cuidado necessário para viver e, acima de tudo, viver de maneira digna. É só tomar-se como exemplo o próprio Juramento Hipocrático e o Código de Defesa do Consumidor que perceber-se-á claramente o interesse dessas searas em defender as relações humanas.
Direito e Saúde se comunicam a todo momento. Não por coincidência, mas por necessidade mesmo. Desde um pequeno ato normativo expedido pelo Ministério da Saúde a discussões calorosas e polêmicas nas quais princípios e garantias fundamentais colidem-se entre si. Assim como todo e qualquer subsistema, eles precisam de comunicações recíprocas, mas também de fechamento operacionais. No entanto, há momentos e situações nos quais essas comunicações invadem limites propostos um pelo outro. E nasce-se daí a necessidade de uma solução para tais problemáticas.
3. A Bioética como ponte transversal entre Direito e Saúde: novos horizontes calcados no “pensar bem” e no bem-estar da pessoa humana.
Com a iminente e inegável mudança de paradigmas, parâmetros e valores sociais e a chegada de novas, modernas e refinadas tecnologias para facilitar a vida humana, Direito e Saúde viram-se obrigados a se autorrefazer, visando a uma inserção adaptativa aos novos tempos da hodiernidade. No âmbito jurídico, valores outrora tidos como impávidos colossos na base da sociedade passaram a ser relativizados ou quiçá extinguidos da dinâmica social e, por consequência, da dinâmica jurídica em sentido mais amplo. No âmbito médico, com o advento das novas tecnologias, aumentou-se o poder humano sobre o ser humano. Deu-se o advento do que se cunha por "medicalização da vida", frase segundo a qual nenhum ser humano morrerá enquanto se haja formas e meios de se evitar a morte. É a ideia de que a medicina passa a ir contra a ordem natural da vida, buscando preservá-la por todos os meios disponíveis. E é justamente nesse ponto que a Saúde mais necessita dialogar com o Direito.
Faça-se aqui uma breve digressão no fio condutor do parágrafo anterior deste artigo para esclarecer algo necessário: o direito positivo, enquanto ciência normativa do dever-ser, tal qual como objeto da dogmática jurídica e também enquanto instrumento regulador de condutas de uma sociedade, detém o chamado "poder da caneta". Pois é ele que atua regulando e fazendo atuar regras em busca de um certo controle social, almejando, a posteriori, um convívio pacífico e justo entre as pessoas. Tal poder é dado ao Judiciário, órgão de soberania estatal que faz valer e cumprir as leis. Por legitimidade social é que o Estado-juiz, principalmente pós-liberalismo, tem o poder de compor e solucionar os conflitos – as lides, juridicamente falando - entre seus cidadãos. E é por ser detentor desse "poder exclusivo" dentro de todo o sistema social que as demandas, sejam elas provenientes da própria sociedade ou oriundas de outros subsistemas sociais (como o da Saúde, por exemplo), necessitam ser inseridas na máquina do Direito e perpassadas pelo sistema jurídico. Esse “poder da caneta”, em certa medida, para os profissionais da Saúde, dá a impressão de que o Direito é “hierarquicamente superior” à Saúde. Ledo engano, pelo menos nos termos da teoria dos sistemas sociais. Para o marco teórico aqui adotado, nenhum subsistema é superior ou inferior a outro, apenas diferente. E é através de uma relação de dupla contingência (o que Alter seleciona para Ego e vice-versa) que ambos podem sanar suas divergências e/ou embates, ou até mesmo piorá-las (em caso de haver uma corrupção sistêmica através desse diálogo). De modo que esclareça-se que não há, na concepção em tela tomada, uma hierarquia entre o Direito e a Saúde. Podendo, sim, haver uma possível hierarquia se vistos através de um prisma político, com parâmetros estritamente de poder. Isto posto, podemos seguir a trilha referente às mudanças sofridas pelo Direito e pela Saúde em face do aumento de complexidade social.
Voltando à baila, diante dessa recíproca mudança sofrida pelos subsistemas aqui tratados, depreende-se que nem tudo é um extenso mar de rosas. À medida que a sociedade cresce em número e em complexidade, cada vez mais demandas chegam do entorno social para a Saúde, da Saúde (que também é entorno) para o Direito, e daí fios de tensão dos mais variados vão se tecendo entre esses dois subsistemas sociais, sendo necessário um amplo estudo, um amplo diálogo cognitivo e um mínimo de ponderação entre preceitos colidentes nos mais diversos casos concretos que forem encontrados. Exemplos não se cansam de aparecer. Veja-se o caso de um juiz tomar a decisão se uma pessoa, por convicção religiosa, não aceitar uma (necessária) transfusão de sangue mesmo quando se encontra numa situação de vulnerabilidade física. Não estaria, pois, o magistrado suprimindo o direito de autonomia da vontade humana de uma pessoa plenamente capaz? Essa é uma das grandes discussões. E o que dizer de uma pessoa que encontra-se em estado vegetativo há meses e o profissional da Saúde que, por vontade da família ou dever de lutar pela vida, mesmo talvez sabendo que aquele ser humano não terá mais condições de sobreviver sem o auxílio de aparelhos, mantê-la nas máquinas? Qual o limite ético e até que ponto os recursos terapêutico-tecnológicos podem ir? O Direito necessita entender as dinâmicas da Saúde em suas evoluções e a partir disso deliberar o que pode ser proporcional ou desproporcional. Fazer uso da hermenêutica é essencial nesses casos. Porém somente a hermenêutica não se faz suficiente. O Biodireito pode ser um caminho diferente e não menos importante de solucionar essas colisões.
Apesar de possuir um sufixo jurídico e ser considerado por muitos doutrinadores como ramo do Direito (SCHOLZE, 2002), o Biodireito serve não somente à área jurídica, senão também à área da saúde. É um ramo que estuda as relações jurídicas entre o Direito e os avanços tecnológicos da Saúde, com o empenho de colocar em primeiro lugar a dignidade da pessoa humana. E num Estado Democrático de Direito fundamentado na soberania, na cidadania, nos valores sociais do trabalho, no pluralismo político e, principalmente, na dignidade da pessoa, faz-se mister o seu estudo. O Biodireito também caminha de mãos dadas com a Bioética (o estudo interdisciplinar entre Biologia, Medicina e Ética - especificamente a ética normativa e da moral humana -, que investiga todas as condições necessárias para uma gerência e administração responsáveis do profissional da Saúde no tocante à vida humana em geral e da dignidade da pessoa humana em particular) e baseia-se muito na noção de “Epikeia”, palavra grega que significa descobrir o justo da justiça. Trabalhando com princípios de autonomia, beneficência, não maleficência e justiça, o Biodireito se vê em condições de ponderar princípios e solucionar problemas de forma que o Direito e a Saúde, por mais que queiram se abrir cognitivamente um ao outro, não conseguem por serem subsistemas próprios, independentes e autorreferentes. O Biodireito, por seus próprios esforços, naturalmente instrumentais, pode alcançar objetivos benéficos ao Direito e à Saúde de uma forma equânime, evitando, portanto, o lado nebuloso que muitos enxergam da chamada “judicialização da saúde”: o Direito se sobrepondo à Saúde em assuntos de competência desta. Dessarte, situações nas quais a jurisprudência tomaria conta de resolver, o Biodireito poderia interferir de forma positiva junto ao Judiciário, que detém o já mencionado “poder da caneta”.
Não se quer afirmar aqui, portanto, que o Biodireito é deveras o mecanismo de resolução de todos os conflitos possíveis e imagináveis decorrentes das interações entre o Direito e a Saúde. No entanto, é um ramo que pode, se bem aplicado, servir como um pacificador de muitos dos conflitos existentes entre eles e que tem condições de, acima de tudo, servir de forma a prezar pela dignidade da pessoa humana em meio a situações nas quais iminentemente sua condição de pessoa se encontra mitigada por colisões principiológicas. Pois essa multirreferida dignidade pode ser tanto a retirada do paciente de um estado vegetativo do leito de um hospital, como pode ser também a prevalência da decisão de uma pessoa que, em iminente risco de morte, não quer receber transfusão sanguínea. O Biodireito em ambos os casos poderia dar um direcionamento isento de compromissos com o Direito e com a Saúde, mas tão somente com a dignidade da pessoa humana.
Conclusão
Como algum tempo atrás dissera Edgar Morin (2005), é necessário o “pensar bem” para se existir um mínimo de ética na convivência humana. Pensar bem não é necessariamente estar imbuído dos melhores sentimentos, subjetivamente falando, mas sim ter uma conduta (objetiva) que vise à ética, que vise ao tão idealizado bem-comum de Rousseau, que busque ponderar situações opostas para melhor solucioná-las. Conhecer para compreender. Indo mais além: conhecer para poder compreender, conviver e progredir.
Juristas e estudiosos da saúde (sejam eles médicos, enfermeiros, pesquisadores em geral) andam, via de regra, em rota de colisão, pois suas áreas de atuação trabalham diretamente com vidas. O Biodireito almeja exatamente o antídoto moriniano: a proporcionalidade, a capacidade de escutar a voz do Direito e a voz da Saúde com vias de projetar uma terceira voz apaziguadora de diferenças entre ambos, respeitados os princípios que lhe são característicos: ubiquidade, não maleficência, sacralidade da vida, dignidade da pessoa humana - este último com possibilidades e limites jurídicos: a Constituição Federal. Criticamente falando, o papel do profissional da saúde e do operador do direito é, se bem observado, muito mais semelhante do que se imagina. Um trabalha para recuperar vidas em sentido físico-literal, outro trabalhar para recuperar vidas em sentido patrimonial. Uma pessoa nada é sem saúde. Igualmente nada é se não possui seus direitos reconhecidos, se não possui uma mínima dignidade de vida, se não possui um mínimo de recurso patrimonial para viver. De modo que um está contido no outro. Grande exemplo disso está no próprio Código Penal, quando separa um capítulo (em técnica legislativa: um conjunto de artigos) específico, do artigo 130 ao 136, para tutelar a saúde como bem jurídico, como unidade subjetiva de direito pertencente a qualquer pessoa.
O Direito respeita muito a Saúde como área do saber, como subsistema social. E se abre a ela cognitivamente através do Direito Penal e de tantos outros, assim como necessita abrir-se à Economia, quando fala-se em Direito Financeiro ou Tributário, ou à Política, quando fala-se em Direito Constitucional. Ao mesmo tempo em que a Saúde também se abre ao Direito, respeitando-o e servindo-o através, por exemplo, da própria disciplina da Medicina Legal. Percebe-se, portanto, que Saúde e Direito estão mais próximos do que se imagina, tanto em escopos quanto como em atividades. Choques há, o que não deixa de ser normal. Divergências existem, o que não deixa de ser comum. Mas trata-se de áreas irmãs, de ramos do saber que servem à sociedade, que se empenham em tratar os desiguais desigualmente nas medidas de suas igualdades, que almejam uma isonomia substancial, que prezam pela dignidade da pessoa humana, e que, como se não bastasse, podem ter (e têm) no Biodireito um forte e coerente mecanismo de conciliação parcial e efetivo de suas divergências.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Edson Luciano Pereira Figueirêdo. O Biodireito como mecanismo transversal entre Direito e Saúde: velhas colisões e a proteção da dignidade humana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 nov 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52386/o-biodireito-como-mecanismo-transversal-entre-direito-e-saude-velhas-colisoes-e-a-protecao-da-dignidade-humana. Acesso em: 11 dez 2024.
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