Resumo: O presente artigo diz respeito à retórica preconizada por Chaïm Perelman a partir da teoria da argumentação, que desponta novo paradigma de racionalidade jurídica contemporânea.
Palavras-chave: retórica; teoria da argumentação; racionalidade jurídica; hermenêutica; dialética; dogmática jurídica.
A partir de meados do século XX, verificou-se uma mudança de paradigma no âmbito da dogmática jurídica. Pelo modo anterior de organização, o Direito contemplava a justiça apenas em seu viés formal. A lei, enquanto norma geral e abstrata, pairava em um campo de virtualidade descompromissada com os problemas concretos a que teria de oferecer satisfação.
Ao contrário de tais posições monolíticas[1], o que se aponta a posteriori, sob o matiz da pós-modernidade, é que, no lugar do universal, do simples, do único, do abstrato, do formal, encontra-se o histórico, o complexo, o plural, o concreto, o retórico.[2]
O modelo de explicações monolíticas tem, na realidade, como base, a teoria do método de Descartes, baseada na filosofia da evidência, segundo a qual “havendo uma verdade de cada coisa, quem quer que a encontre sabe dela tudo o que se pode saber”.[3] Foi o citado filósofo que, fazendo da evidência a marca da razão, não quis considerar racionais senão as demonstrações que partiam de ideias pré-concebidas.
Em contraposição expressa à referida filosofia, o professor de lógica da Universidade Livre de Bruxelas, Chaïm Perelman[4], buscou uma outra racionalidade compatível com a vida prática. Pretendeu o estudioso demonstrar a aptidão da razão para lidar também com valores, organizando preferências e fundamentando, com razoabilidade, nossas decisões.
Coube a Perelman realizar a grande guinada na área da metodologia jurídica, quando apontou para as dimensões retórica e argumentativa que, em verdade, fazem o Direito. Este tem origem na prática; não se limita ao conteúdo do texto da lei: surge e é orientado pelas teses construídas sob os parâmetros do fato e da lei, num confronto de ideias que vêm legitimar cada decisão a ser tomada.
Demonstra-se, assim, algumas das contribuições mais significativas para a reflexão jurídica contemporânea, contrária à adoção do raciocínio lógico-linear para, em lugar desta, apresentar uma proposta voltada para a intersubjetividade, que se utiliza da técnica argumentativa.
São próprias do homem, enquanto ser dotado de razão, as atividades de deliberar e de argumentar. No campo argumentativo predomina o verossímil, o plausível, o provável, na medida em que este último escapa às certezas do cálculo.
O processo interpretativo/hermenêutico tem um caráter produtivo, e não meramente reprodutivo. Essa produção de sentido não pode, pois, ser guardada sob um hermético segredo. Isso porque o que rege o processo de interpretação dos textos legais são as suas condições de produção, as quais, devidamente difusas e ocultas, aparecem – no âmbito do discurso jurídico-dogmático permeado pelo respectivo campo jurídico – como se fossem provenientes de um “lugar virtual”.[5]
As palavras da lei não são unívocas, mas plurívocas. Nesse sentido, Carlos Maximiliano explica que interpretar a lei é a busca do esclarecimento, do significado verdadeiro de uma expressão; é extrair de uma frase, de uma sentença, de uma norma, tudo o que na mesma se contém.[6]
A indicação de uma única saída, é, diga-se, temerária ao Direito, tal qual a ciência aplicada que é, pois segundo lição de Lenio Streck: “Direito é um saber prático”.[7]
Uma visão retórica do Direito é, portanto, uma visão pluralista que renuncia a uma ordem perfeita, elaborada em função de um único critério, pois admite a existência de um pluralismo de valores. As instituições encarregadas de tomar decisões objetivam estabelecer e manter um equilíbrio de pretensões, ao mesmo tempo contrapostas e legítimas e, por isso mesmo, tais soluções são apenas aceitáveis, podendo ser modificadas e melhoradas, uma vez que não são perfeitas, únicas e definitivas.
Não há como transformar o problema dos valores em um problema de verdades, de maneira a elidir qualquer divergência prática quanto à interpretação e à aplicação de valores.
Na visão de Perelman, a interpretação que prevalece é a do argumento mais forte, aquele que, ao menos em um determinado momento, apresenta-se como irrefutável, haja vista que se coaduna com os valores admitidos pela sociedade ou por um determinado grupo – auditório.
Veja-se o conceito de auditório, segundo Robert Alexy[8]: “A audiência é o agrupamento daqueles a quem o orador deseja influenciar com sua argumentação”. Diga-se que Perelman compartilha do mesmo conceito para o termo.
A ênfase dada por Perelman à ideia de auditório corresponde à relatividade do conceito de verdade. O auditório é o referencial da retórica. A partir dele, ou para ele, é que o discurso se dirige, e é dele que se procura obter adesão. O encontro de ideias provocado pela argumentação e pelo convencimento é, para o jusfilósofo polonês, o verdadeiro encontro dos espíritos.[9]
Toda argumentação visa à adesão dos espíritos e, por isso mesmo, pressupõe a existência de um contato intelectual com eles. O orador deve se preocupar em estabelecer uma conexão com o auditório o qual busca influenciar.
Com a argumentação procura-se, ainda, não apenas provocar a adesão do auditório para a tese apresentada, como também incitar a ação correspondente.[10] Perelman chega a dizer que a ação do orador é uma agressão, pois sempre tende a mudar algo, a transformar o ouvinte.
De mais a mais, vale mencionar a natureza democrática – ou dialética, para não dar margem a controvérsias – da concepção metodológica de Perelman, retrato da racionalidade jurídica contemporânea. Sob esse prisma, adequar uma solução jurídica razoável para situações concretas, desde que observados os parâmetros da norma fundamental positivada, induziria à produção de alguma carga de satisfação social, a menos de uma das partes envolvidas, havendo litigiosidade.
Na contraposição de ideias, cumpre transcrever trecho de uma das obras mais valiosas de Streck[11], que rechaça duramente a concepção elástica da dogmática jurídica:
Embora os avanços ocorridos na teoria do direito e as rupturas paradigmáticas nela produzidas (...) no século XX, ainda existe uma resistência a essa viragem hermenêutico-ontológica, instrumentalizada por uma dogmática jurídica (que continua) refratária a uma reflexão mais aprofundada acerca do papel do direito nesta quadra da história. Desnecessário dizer, nesta altura, que a crítica à dogmática jurídica não significa, a toda evidência, qualquer pregação no sentido de que a dogmática jurídica seja despicienda. A dogmática jurídica pode ser crítica. E deve ser crítica. Afinal, não há direito sem dogmática. Só que a dogmática jurídica não pode substituir o direito e transformar a doutrina e a jurisprudência em dogmatismo.
Nos dizeres do autor, não houve ainda, com a necessária suficiência, a invasão da filosofia pela linguagem no campo da interpretação do direito. Inseridos nessa crise, alguns juristas permanecem operando com as conformações da hermenêutica clássica, na qual a linguagem é entendida como uma terceira coisa que se interpõe entre o sujeito (jurista) e o objeto (direito) a ser conhecido, sobrando, pois, a realidade.
Nesse passo epistemológico, parafraseando Streck, o modo-de-ser encobre o acontecer propriamente dito do agir humano, objetivando-o na linguagem e impedindo que se dê na sua origem, enfim, na sua concreta faticidade e historicidade.
De fato, o Direito, como criação humana, histórica e social, comporta a dimensão hermenêutica, nela compreendidos o método interpretativo e a técnica da argumentação. A despeito de sua carga dogmática, a ciência jurídica faz parte de uma tradição filosófica cuja base reside, especialmente, na retórica. É nesse sentido a premissa perelmaniana, de que a argumentação deve ser sempre perquirida como condição de possibilidade da dogmática.
Referências:
ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy, 2001.
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
PERELMAN, Chaïm. Retóricas. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
PERELMAN, Chaïm, OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: a nova retórica. Trad. Maria Ermantina A. P. Galvão. 2 ed., São Paulo: Martins Fontes, 2005.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise – Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas – Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
[1] MEYER, Michael. In: PERELMAN, Chaïm, OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: a nova retórica. Trad. Maria Ermantina A. P. Galvão. 2 ed., São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 62.
[2] CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 278.
[3] DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 23.
[4] Chaïm Perelman nasceu na Polônia em 1912, tendo seguido, treze anos depois, para a Bélgica, onde se tornou um renomado professor na Universidade Livre de Bruxelas. Parte dos estudiosos do campo jusfilosófico defende que ele trouxe importante contribuição para a filosofia e para a metodologia do direito, mediante o estudo que desenvolveu sobre a retórica como teoria da argumentação.
[5] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise – Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 91.
[6] MAXIMILIANO, Carlos. In: STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise – Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 93.
[7] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas – Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 96.
[8] ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy, 2001, p. 130.
[9] PERELMAN, Chaïm, OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: a nova retórica. Trad. Maria Ermantina A. P. Galvão. 2 ed., São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 17/19.
[10] PERELMAN, Chaïm. Retóricas. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 371.
[11] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise – Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 341.
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Analista Judiciário do TRT 24ª Região - Assistente de Juiz.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Letícia Mara Pinto. A contribuição de Chaïm Perelman para a racionalidade jurídica contemporânea Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 mar 2019, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52733/a-contribuicao-de-chaim-perelman-para-a-racionalidade-juridica-contemporanea. Acesso em: 22 nov 2024.
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