Resumo: As transformações introduzidas por Mikhail Gorbachev na Europa Oriental, área de influência da antiga União Soviética, foram tão profundas e duradouras que redesenharam, em plena paz, o mapa geopolítico da região, modificando radicalmente a autonomia dos Estados aliados da Rússia, as relações políticas dos cidadãos com os governos e o regime de garantias e direitos humanos.
Introdução
A imprensa noticia que “o último líder da antiga União Soviética revê sua trajetória em documentário.
Aos 88 anos e com saúde debilitada, Mikhail Gorbachev conta sua história em ‘Encontrando Gorbachev’ (Jornal O Estado de S. Paulo, 06 de abril de 2019).
A notícia assim prossegue:
“Apesar da saúde debilitada, Mikhail Gorbachev pediu um último encontro com Werner Herzog, em abril do ano passado, antes que o cineasta alemão finalizasse o documentário sobre sua vida.
‘Ele chegou de ambulância, vindo diretamente do hospital. O curativo em sua mão esquerda mostra o local onde estava o cateter’, conta Herzog, diretor de Encontrando Gorbachev, em parceria com o inglês Andre Singer.
O esforço do último líder da União Soviética foi um sinal da necessidade de Gorbachev, atualmente com 88 anos, de passar a sua história a limpo. É justamente isso que a dupla de cineastas encoraja o ex-governante a fazer ao longo de 92 minutos de filme, uma das atrações deste sábado, 6, na 24.ª edição do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em São Paulo.”
Quem ainda guarda uma breve memória de Gorbachev exultante com o aparente êxito das suas políticas da glasnost (transparência) e da perestroika (reestruturação), seguidas vezes acompanhado de Raíssa, muito elegante com seus modelos variados de ushanka, o típico gorro de pele russo, lembrará também que o final dos anos '80 e início dos '90 trouxeram mudanças tão radicais nos rumos da humanidade que só eram conhecidas até então através de guerras ou revoluções sangrentas, tanto como por desastres naturais e grandes devastações.
Com Leonid Brejnev o modelo stalinista de exercício do poder político se havia convertido numa burocracia "de manutenção", onde não havia mais lugar para autocríticas como a de Nikita Krushchev em 1956, sobre os crimes de Stalin, e também não ocorriam saltos espetaculares de conquista científica, como os do início da exploração espacial.
Brejnev não seria menos sanguinário do que Krushchev, que havia sido comissário político plenipotenciário durante a II Guerra, e vivido a terrível experiência da libertação de Stalingrado, mas não precisou - como o último - realizar a invasão cruenta da Hungria em 1956, nem criar uma "crise dos mísseis" em Cuba (1961), levando o mundo à beira do conflito atômico, e também não precisou 'fechar seu mundo' erguendo o muro de Berlim (ainda em 1961).
As invasões que Brejnev promoveu não foram menos desastrosas, porém mais negociadas com as forças locais que se inclinavam por servir a nomenklatura soviética.
Se a ação contra a Tchecoslováquia em 1968, destinada a esmagar a “Primavera de Praga”, de Alexander Dubcek, não encontrou resistência em face da disparidade militar (e também porque os tchecos pretendiam uma reforma do seu Estado, não uma guerra), a invasão do Afeganistão em 1979 destinou-se a apoiar um governo que era simpático à URSS e estava fragilizado. O mesmo ocorreu na Polônia em 1981, com o golpe do general Jaruzelski servindo como alternativa à invasão dos tanques russos, já posicionados na fronteira polonesa.
A invasão soviética do Afeganistão causou o boicote ocidental às Olimpíadas de Moscou em 1980. Assim, ficou ofuscado o esplendor que o dirigente russo queria mostrar ao mundo como consumação de sua obra. O velho urso Brejnev não só não teve outra ocasião para se despedir como não tinha do que se despedir, pois sua trajetória sombria havia sepultado toda e qualquer memória significativa do que um dia havia sido uma revolução que se pretendia transformadora.
O duradouro governo de Brejnev, de 1964 a 1982 ficou conhecido como a "Era da Estagnação". No que diz respeito às lideranças, serviu para formar uma gerontocracia que não se renovou.
Quando Brejnev morreu, assumiu pela primeira vez o comando da URSS um chefe da KGB, Yury Andropov, vencendo disputa com o velho líder bolchevique Konstantin Chernenko, o único remanescente dos que haviam conhecido Lenin.
Há um relato filmado do terrorista venezuelano conhecido como Carlos, o Chacal (ainda vivo, preso na França, onde cumpre prisão perpétua) que vincula Andropov ao atentado contra o Papa Karol Wojtyla, cometido pelo turco Ali Agca, arregimentado pela polícia política da Bulgária, então um país satélite da URSS.
Wojtyla na época, personificava o ressurgimento da Polônia independente e cristã e essa sua legenda inspirou, a partir de 1980, o Solidarsnoc.
Andropov esteve no poder somente até 1984, grande parte gravemente doente dos rins, e o passou exatamente a Chernenko, que já então mostrava-se decrépito (embora, com 73 anos, não fosse destoante na gerontocracia) e governou apenas por um ano, morrendo no início de 1985.
Então surge Gorbachev, com 'apenas' 54 anos, protegido de Andropov e provavelmente seu conterrâneo. Foi reconhecido desde que tornou-se antigo dirigente do Komsomol (juventude comunista, órgão do PCUS).
As "Ironias da História", tão bem salientadas por Isaac Deutcher, se apresentaram então mais uma vez: quem disputava a liderança com Gorbachev era o militar 'linha dura" Grigory Romanov, um oficial membro do Politiburo que tinha o mesmo sobrenome de família do Czar...
O inventário da era Gorbachev se encontra muito bem registrado e ele ainda está tendo o direito de dar a última palavra em documentários que são feitos.
Na verdade, o período do governo de Gorbachev (de março de 1985 ao dia do Natal de 1991) é o que encerra interesse histórico. Conceitos, afirmações e apoios que ele negociou durante sua fidelidade ao regime soviético ortodoxo, quando se deu a sua escalada, não se distinguem do que outros disseram ou do que ainda outros, como ele, a seu tempo, calaram.
Gorbachev admirava a coragem irruptiva de Krushchev e, à sua maneira, esteve à altura dela.
Mas seus métodos foram outros: queria reformar o sovietismo pela modernização, inclusive a dos costumes. Entendia que a Rússia não podia continuar tutelando as repúblicas aliadas, que tinham de desenvolver seus próprios meios e conquistar suas fidelidades.
O episódio da explosão atômica em Chernobyl, na Ucrânia, em abril de 1986, quando o governo Gorbachev recém completara um ano, é geralmente menosprezado nas análises políticas e encaminhado ao exame dos que veem as consequências ecológicas da contaminação. Entretanto, o custo em vidas, o imenso sacrifício para obter a contenção, a remoção maciça de habitantes e os enormes gastos em tecnologia, transporte e matéria prima (para o isolamento completo com chumbo), foram avaliados de forma diferente pelo próprio Gorbachev: ele sentiu então que não poderia encaminhar um governo vergado por uma imensa burocracia, pouco operativa e que não estava acostumada a transmitir notícias de catástrofes à população (e responder pelas medidas tomadas ou omitidas).
Gorbachev disse ao cineasta Herzog que Boris Yeltsin roubou-lhe o poder por precipitação, mas Yeltsin também já lhe havia devolvido esse mesmo poder, que um golpe de Estado do vice-presidente, de setores militares e dos dirigentes do partido comunista havia, na metade do ano de 1991, tentado usurpar.
Tanto foi assim que Gorbachev, vencido o golpe, renunciou à secretaria-geral do PCUS, ficando só como presidente da URSS, mostrando desse modo um tanto suicida que havia abdicado de controlar o partido.
Foram projetos que se chocaram: Gorbachev queria reformar o sistema soviético, Yeltin queria desmontá-lo. Para o último havia uma verdadeira obsessão que já se manifestara quando ele foi prefeito de Ekaterimburg e fez ingentes esforços até conseguir localizar os restos mortais da família real, lá assassinada.
A despedida ocorrida no Natal de 1991, depois da dissolução da URSS, quando desapareceu o cargo de presidente que Gorbachev exercia, foi o adeus a um sistema, a uma época e - da parte do governante reformador - a um projeto não finalizado.
Como foi dito no início desta pequena memória, Gorbachev está tendo uma última chance de retocar seu testamento, de falar à posteridade. Pode enganar-se, pois está velho e doente, mas a oportunidade existe e deve ser lembrado que ela não existiu para Trotski, para Bukharin e para tantos outros, a respeito de quem Gorbachev fez reparos no curso de sua vida. Mas ele sempre foi a favor da reabilitação e aí talvez resida o ponto que mais o aproxima de Krushchev. Tanto é assim que os arquivos da repressão e crimes praticados pelo Estado só começaram a ser liberados no período da glasnost.
A grandeza de sua vida, no entanto, reside não em uma trajetória que tinha poucas possibilidades de ser diferente, mas no desprendimento de aventurar-se por um caminho de mudanças que era totalmente desconhecido e de fazer com que uma sofrida nação - cujas referências brutais ou heroicas (ou as duas coisas juntas) estavam perdidas no tempo, atravessando séculos -, acreditasse que mudar só poderia ser melhor.
Da nossa parte, as imagens da Era Gorbachev são indeléveis: a queda do muro, o realismo imposto à Cuba (que sobrevivia numa cápsula do tempo anestesiada pela massiva ajuda soviética – até a construção gratuita já iniciada de uma usina atômica foi cancelada -, enquanto Fidel Castro se tornava cada vez mais operístico), a defesa do direito de opinião, as discussões inéditas em um parlamento russo acostumado à unanimidade subserviente, os debates com o físico dissidente Andrei Sakharov (que desejava expor melhor os crimes nos gulags da Sibéria), o otimismo em relação aos rumos da humanidade e à independência dos Estados aliados, tudo levava a uma atmosfera de encantamento que logo depois desapareceu, mas deixou resultados.
A Rússia hoje recupera velhas práticas, algumas do tempo dos czares, outras do stalinismo, outras ainda ligadas não a fases históricas mas ao nacionalismo russo, suas imposições étnicas, à recusa ao mundo ocidental, ao desejo incontido e incessante de ser potência mundial, que chega a ser apropriado como o destino do país.
Poderia ser dito que o experimento de Gorbachev não tinha futuro, mas qual será o futuro (que seja minimamente previsível) do governo autocrático de Putin? Também para ele haverá um depois, que hoje é incógnita.
De tudo isso, o que fica é a dúvida de que nós mesmos talvez não consigamos uma segunda chance de corrigir nossa trajetória, de trazer para a memória dos pósteros o que foram nossas fidelidades mais profundas, as mais marcantes, ainda que sob a perspectiva de nossas pequenas e precárias vidas.
Por isso deve ser saudado - em nome de uma autêntica despedida - que Gorbachev consiga.
Desembargador aposentado do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, com estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional, em Paris, e autor dos livros "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CABEDA, Luiz Fernando. Gorbachev se despede de nós. Já estaremos prontos para nos despedirmos dele? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 abr 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52824/gorbachev-se-despede-de-nos-ja-estaremos-prontos-para-nos-despedirmos-dele. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Marco Aurelio Nascimento Amado
Por: Marcos Antonio Duarte Silva
Por: RODRIGO KSZAN FRANCISCO
Por: Adel El Tasse
Precisa estar logado para fazer comentários.