Resumo: A imprensa noticiou que “o Supremo Tribunal Federal decidiu recentemente, no dia 28 de março de 2019, em julgamento unânime e com efeito de repercussão geral, que é constitucional o sacrifício de animais em cultos religiosos. O caso chegou ao Supremo em um recurso do Ministério Público do Rio Grande do Sul contra uma decisão do Tribunal de Justiça gaúcho que autorizou a prática em relação a religiões de matriz africana, desde que sem excessos e crueldade. (G1 e TV Globo-Brasília, 28/03/2019)”
Introdução
Segundo a notícia, o min. Marco Aurélio fixou entendimento de que o sacrifício dos animais era reconhecido a todas as religiões, não só aquelas de “matriz africana”, mas condicionava a prática ao consumo da carne da presa abatida. Foi vencedor o voto do min. Alexandre de Moraes, excluindo tal condição, por entender que a ritualística de algumas religiões não se confunde com o que chamou de ‘magia negra’, mas se insere no exercício da liberdade religiosa. Ele criticou a posição do MP e das entidades que se manifestaram como amicus curiae alegando que foram movidas pelo preconceito, e que não há nenhum desprezo aos direitos dos animais no abate ritualístico, que – segundo ele - sabidamente – não é cruel...
Nosso país deu mais um passo, na contradança das instituições que nos envergonham diariamente (até chegarem ao ponto de despertar a seguinte pergunta: em nome do que foram instituídas?), seguindo o estranho ritmo que vem das entranhas da nossa terra, talvez ressoando tambores ancestrais, e que parece nos levar a uma resistência impura, a um sentimento de estranheza, a um desconforto difuso, relativo a tudo o que diga respeito à civilização.
As justificativas dos votos no julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal a respeito do sacrifício ritual de animais, mais do que perdidas em um "opinionismo" de ocasião, sem nenhuma metodologia interpretativa que possa ser reconhecida, parecem ter consagrado o adjetivo burlesco, o único adequado para definir o consenso no Supremo.
Será esse o caso rodriguiano de "toda unanimidade é burra"?
Primeiro, desde quando os ministros estão habilitados juridicamente para fazer comparações ou distinções entre "despachos" de encruzilhadas, práticas vudus, catimbas de sapos e religiões de "matriz africana"?
E o que é a "matriz africana"?
Há muitas tendências de culto, algumas anímicas, outras mitológicas, outras ainda mais ligadas a ícones, à fé totêmica ou a religiões patriarcais, que têm origem tribal, ou creoula (nativa) como o candomblé, uma adaptação original de rituais, práticas místicas, ritmos, sons e figuração em que a crença religiosa está mesclada, na evocação de mitos, com o canto e a dança.
Invocar e referenciar cultos variados numa “matriz africana” resulta em uma identificação às avessas, isto é, tudo se confundiria em uma origem remota, atávica, folclórica, primitiva.
Muitas são as regiões de egressos da África; sua distinção é grande e às vezes muito importante.
A África nunca foi una e, dos africanos - salvo há milhões de anos, quando surgiram os hominídeos -, não se pode simplesmente dizer que há uma só matriz.
Assim como ninguém estaria autorizado a invocar uma "matriz semita" ou uma "matriz eslava".
Segundo, misturar tudo isso em uma lambança de opiniões não é exercitar nenhum raciocínio jurídico.
É de duvidar que algum dos ministros em algum dia tenha lido qualquer coisa do romeno Mircea Eliade, considerado o maior historiador das religiões (ou de qualquer outro autor de relevância nesse tema).
Tudo é justificado nos votos como que para uma "torcida", num programa esportivo da televisão.
É a política da simpatia elevada à enésima potência da insensatez. É o mesmo que jogar a realidade do dia seguinte como o "despacho" da próxima encruzilhada. A isso os ministros têm por "inspiração ... garantista”.
Terceiro, os ministros se mostraram ignorantes sobre o tema. Personalidades narcísicas, não é isso o que pensam de si próprios, mas é o que nos dizem com uma soberba que não nos permite fazer reparos.
Em sua manifestação não há nenhum episódio ilustrativo, nenhum autor doutrinário, nenhuma teoria interpretativa.
Isto ficará gravado, para sempre e para a memória da atual composição da corte, como acentuada vergonha para o nosso país.
A "divergência" se resume em comer ou não comer a carne do animal sacrificado.
É uma variação bem deteriorada da Lei de Murphy que um dia Paulo Maluf professou: "estupra, mas não mata"...
As questões processuais são firulas, também ao modo futebolístico: saber se uma lei estadual pode proibir ritos selvagens não é mera questão de competência.
Esse tema, aliás, é um ponto de fuga para quando nossos tribunais não querem enfrentar uma questão difícil.
Por exemplo: a competência da Justiça Eleitoral está definida desde que, depois da Revolução de '30, ela foi criada.
Agora o Supremo "descobriu" - mas disso ninguém soube pelos noventa anos transcorridos desde então, sob várias Constituições - que a Justiça Eleitoral também tem competência criminal...
Porém, não há texto na Constituição Federal com reserva de competência para a União legislar sobre proteção aos animais. Tal competência é concorrente dos três entes da federação.
Logo, dizer que a legislação estadual não podia, etc é o mesmo que fugir para um beco ... sem saída.
E essa “saída” o Supremo não pôde escolher, embora ela tenha sido sondada, como se vê na leitura mais detalhada dos votos.
Quarto, ministros do Supremo têm manifestado uma crença muito particular.
Alguns deles, diante de problemas de saúde, recorreram ao mistificador conhecido como João de Deus, que hoje está preso acusado de abuso sexual e estupro de vulnerável por dezenas de pessoas. Fala-se de uma epifania que Roberto Barroso teria tido, provocando a cura de um câncer no esôfago de difícil tratamento convencional. Cura que, obviamente, está imersa no mistério. Mistério que, por sua vez, autoriza todas as inspirações que não precisam ter explicação.
Até agora só o ministro Luiz Fux se deu por suspeito por motivo de foro íntimo para julgar processos de João de Deus. O tempo, certamente, anunciará (ou esconderá) outros.
Dias Toffoli também já se manifestou em voto, explícita e gratuitamente, que se guia pelo horóscopo, em consulta diária que usa para orientar suas posições como julgador.
Neste quadro, a pergunta que fica diz respeito a saber se a corte tem, em seu conjunto, já que se mostra sensível à prática do ocultismo, autoridade jurídica e isenção para julgar temas relativos a ritos religiosos.
Quinto, não há na história da humanidade figuração mais antiga, duradoura e expressiva dos encantos e mistérios da existência do que a do circo.
Prática que vem desde a Antiguidade, ela morreu em nossa época.
É verdade que ainda existem as atividades circenses mais ligadas ao malabarismo, à ginástica e à dança, como mostra o famoso Cirque du Soleil.
Todavia, os grandes circos que encantavam pelo lado histriônico ou místico, que realizavam prodígios, inclusive com animais, desapareceram.
Simplesmente, se entendeu que um novo enfoque se impunha: animais adestrados estavam fora de seu habitat, eram tratados como domesticados embora fossem selvagens, às custas – inúmeras vezes – de mutilações das garras e presas.
Os grandes circos espanhóis e italianos que varavam a América Latina desapareceram. A fantasia infanto-juvenil em torno deles também. Para saber como eram os circos, hoje é preciso recorrer ao cinema.
Dois mil anos de história sofreram uma radical transformação e o fator preponderante para isso foi a questão animal. Sem animais exóticos, os circos definharam e não se sustentaram só com mágicas e comédias.
O Supremo não foi chamado a se pronunciar sobre isso.
Se fosse, provavelmente não haveria nenhum problema em convalidar a tendência protetiva dos animais.
Simplesmente não estava envolvida nenhuma “matriz africana”. E o inexorável seria aceito sem resistência e sem os argumentos ridículos expostos quando foi julgado o sacrifício ritual de animais.
Sexto, quando defendeu o alemão Harry Berger, preso e barbaramente torturado após a desastrada revolta prestista de 1935, o advogado Sobral Pinto peticionou no sentido de que a ele fosse aplicada a lei de proteção aos animais, então recentemente editada, já que as garantias dadas aos humanos não eram respeitadas.
Passados 85 anos, o Supremo não sabe sequer aplicar a lei de proteção aos animais aos ... animais.
Desaprendeu.
Os ministros querem o seu palanque.
Isto os une.
O protagonismo passou a ser o "abre-te sésamo" da unidade oportunista.
Sétimo, nos Estados Unidos há uma tradição de referenciar determinadas composições da Corte Suprema com o nome de seu presidente. Assim, a "Corte de Holmes" foi aquela composição que enfrentou a grande depressão e os problemas legais do New Deal. A "Corte de Warren" foi a que aplicou mais radicalmente as cláusulas dos direitos civis na década de 1960.
No Brasil, temos agora uma curiosa anomalia que pode ser chamada a "Corte de Toffoli", cuja missão maior é fugir dos problemas, negando-se a encontrar soluções sob uma justificação sistematizada.
A única Constituição que o Supremo guarda é aquela que ele conspurca.
A Constituição verdadeira, aquela que é acessível ao entendimento, seja dos doutos, seja do povo, e corresponde a uma odisséia ulyssiana autenticamente nossa, esta o Supremo "guarda" ... na gaveta.
Desembargador aposentado do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, com estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional, em Paris, e autor dos livros "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CABEDA, Luiz Fernando. Animais & togados Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 abr 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52826/animais-togados. Acesso em: 22 nov 2024.
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