RESUMO: O presente artigo visa analisar os desafios enfrentados para a efetiva e correta aplicação do princípio do in dubio pro reo – corolário de um sistema processual penal de viés acusatório – na persecução criminal nacional. Apesar da instituição, pela Constituição Federal de 1988, de um processo garantista e preocupado com o respeito aos direitos fundamentais, ainda permanecem resquícios de institutos de caráter inquisitorial no processo penal brasileiro, fruto da perpetuação de um Código elaborado sob a égide deste pensamento. Diante disso, busca-se identificar os efeitos irradiantes do in dubio pro reo para a adequada consecução de um modelo de processo penal acusatório, incorporando os valores e princípios constitucionais para a matéria e expurgando do sistema conceitos e regras que ainda abracem a ideia de uma persecução de caráter inquisidor. Este artigo torna-se ainda mais atual em face do contexto jurídico-político vivenciado pelo País nos últimos anos, em que garantias e direitos fundamentais vêm sendo flexibilizados pelas autoridades públicas e, em especial, pelo Supremo Tribunal Federal em nome da prevalência do jus puniendi estatal, esquecendo-se que há todo um devido processo legal a ser respeitado, calcado sob os pressupostos da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
Palavras-chave: Princípio do in dubio pro reo. Garantias processuais penais. Processo penal acusatório. Presunção de inocência. Ônus da prova.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Processo penal sob o prisma constitucional. 3. Princípio do in dubio pro reo como diretriz do processo penal brasileiro. 4. Presunção de inocência e in dubio pro reo. 5. Reflexos do in dubio pro reo para o ônus da prova. 6. Conclusão. 7. Referências.
1. Introdução
Em um Estado Democrático de Direito, a Constituição representa a principal e mais importante fonte do ordenamento jurídico, devendo fornecer o alicerce principiológico norteador das demais normas.
Sob a ótica do processo penal, é fundamental que o Código se identifique com os ideais democráticos e libertários da Constituição Federal de 1988, nos quais houve considerável avanço em matéria de garantia do cidadão contra possíveis abusos e arbitrariedades do Estado.
Logo, como não poderia ser diferente, o processo penal encontra suas linhas mestras traçadas na Constituição. Nela estão estabelecidos os princípios delineadores para uma interpretação e aplicação adequada dos seus preceitos, conformando-se com a visão garantidora e protetora de direitos típicas de um Estado Democrático de Direito.
É justamente a partir do Texto Constitucional que o direito processual penal deixa de figurar como mero conjunto de regras acessórias de aplicação do direito material, para possuir o papel de instrumento público de realização da justiça e garantidor de direitos[1].
No caso específico da Constituição brasileira, o art. 5º revela o inequívoco viés garantidor que a inspirou, sobretudo quando se trata dos direitos do réu no âmbito do processo penal.
Dentre os preceitos que focam especificamente na matéria em questão, estão: inciso XI, sobre a inviolabilidade do domicílio; inciso XII, sobre a inviolabilidade de correspondência e de comunicações telefônicas; inciso XIV, sobre o acesso à informação; inciso XXXVII, que inadmite juízo ou tribunal de exceção; inciso XXXVIII, que dispõe sobre a organização do júri; inciso XXXIX, sobre a anterioridade da lei penal; inciso XLV, sobre a pessoalidade da pena; inciso XLVI, sobre a individualização da pena; inciso LIII, que garante o processo feito por autoridade competente; inciso LIV, sobre o devido processo legal; inciso LV, sobre o contraditório e a ampla defesa; inciso LVI, sobre a inadmissibilidade das provas ilícitas; inciso LVII, sobre a presunção de inocência; inciso LVIII, sobre a identificação criminal; inciso LX, sobre a publicidade dos atos em caso de defesa da intimidade; inciso LXI, sobre a prisão em flagrante; inciso LXII, sobre a comunicação da prisão aos familiares e ao juiz; inciso LXIII, sobre os direitos do preso; inciso LXIV, sobre a identificação do responsável pela prisão; inciso LXV, sobre o relaxamento da prisão ilegal; inciso LXVI, sobre a liberdade provisória; inciso LXVIII, sobre o habeas corpus; inciso LXIX, sobre o mandado de segurança e o habeas data na esfera criminal; inciso LXXIV, sobre a assistência jurídica gratuita; inciso LXXV, sobre a indenização, por parte do Estado, pelo erro judiciário; e, finalmente, inciso LXXVII, sobre a gratuidade das ações de habeas corpus, habeas data e outros atos necessários ao exercício da cidadania e LXXVIII, que garante a todos, judicial e administrativamente, a razoável duração do processo[2].
Apesar de não constar de forma expressa em texto constitucional, o princípio do in dubio pro reo constitui uma das principais e mais importantes diretrizes em matéria processual penal, em especial no que diz respeito à distribuição do ônus probatório e como este deve influenciar na tomada de decisão do magistrado.
Além do mais, a partir dele, consagra-se a prevalência da liberdade do acusado em razão do jus puniendi estatal, conformando-se com os princípios constitucionais da presunção de inocência e do favor rei – que, apesar do semelhante conteúdo, não se confunde com este.
2. Processo penal sob o prisma constitucional
O direito processual penal, para cumprir suas finalidades, isto é, garantir a pacificação social, obtida com a solução do conflito, e viabilizar a aplicação/concretização do direito penal, deve estar em conformidade com os preceitos e garantias estabelecidos na Constituição[3].
De viés garantidor, o processo penal contemporâneo, por sua vez, somente se legitimará à medida em que se democratizar e for devidamente constituído a partir das diretrizes constitucionais.
Em decorrência do Estado Democrático de Direito, a preservação das garantias fundamentais do réu no processo penal deve corresponder ao principal interesse da prestação jurisdicional.
Nesse norte, o Código de Processo Penal brasileiro deve ser interpretado conforme a Constituição, adequando-se ao modelo de processo acusatório por esta adotado e dele se expurgando os resquícios de inquisitoriedade ainda presentes.
O processo deve ser sinônimo de garantia aos imputados contra as arbitrariedades estatais, sem perder de vista a necessidade de efetividade da prestação jurisdicional[4].
Para tanto, a própria Constituição Federal elenca, seja de maneira expressa ou implícita, uma série de princípios informadores do processo penal. Também não se pode perder de vista que os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, firmados pelo Brasil, também incluíram diversas garantias ao modelo processual penal brasileiro, especialmente por meio da Convenção Americana de Direitos Humanos, que, após a EC 45/2004, foi equiparada às normas constitucionais.
O direito processual penal, portanto, em um Estado Democrático de Direito, deve pautar-se pela aplicação efetiva dos princípios delineados pela Constituição Federal, de caráter nitidamente garantista.
Nenhuma regra processual, para o funcionamento legítimo do processo, pode estar em desacordo com esta. Deve também o jurista, no momento de construção/aplicação da norma jurídica, tomar como viés interpretativo os preceitos delineadores e as diretrizes tomadas pela Carta Magna pátria.
Em face disto, o princípio do in dubio pro reo, juntamente com a presunção de inocência, é reconhecido pela doutrina penalista e constitucionalista como um dos princípios centrais da esfera criminal, ante a posição assumida nos diversos ordenamentos jurídicos e nos tratados internacionais de direitos humanos.
Representa uma escolha evidente por uma concepção de processo penal em que a liberdade, a igualdade e a dignidade da pessoa humana são tidas como valores centrais do sistema, devendo ser respeitados durante a persecução criminal.
3. Princípio do in dubio pro reo como diretriz do processo penal brasileiro
O princípio do in dubio pro reo constitui uma das principais garantias processuais do acusado contra as arbitrariedades do Estado, não permitindo que uma pessoa seja condenada enquanto restar dúvidas a respeito de sua autoria e/ou materialidade do crime.
Na dúvida, deve prevalecer o status libertatis do indivíduo em face do jus puniendi estatal[5], corroborando a ideia de que “vale mais um culpado solto do que um inocente preso”, devido ao fato de estar em jogo a liberdade do ser humano, garantia das mais fundamentais elencadas em texto constitucional.
Como explicita Paulo Rangel[6], “trata-se de regra do processo penal que impõe ao juiz seguir tese mais favorável ao acusado sempre que a acusação não tenha carreado prova suficiente para obter a condenação”.
O operador do direito, ao deparar-se com insuficiência probatória, deve primar pela tese mais favorável ao réu, absolvendo-o. De mesmo modo ratifica Nucci ao tratar do tema:
“Na relação processual, em caso de conflito entre a inocência do réu e sua liberdade e o direito-dever de o Estado punir, havendo dúvida razoável, deve o juiz decidir em favor do acusado. Exemplo está na previsão de absolvição quando não existi provas suficientes na imputação formulada (art. 386, VII, CPP)”.[7]
A confirmação desta regra processual, no que tange a insuficiência probatória, ocorre de maneira reiterada no âmbito da jurisprudência, como pode ser bem notada na ementa da Apelação Criminal: ACR 4078 AL 0004229-15.2002.4.05.8000, cujo julgamento foi realizado pela Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, tendo como relator o Desembargador Napoleão Maia Filho:
“PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. ART. 171, PARAG. 3o. DO CPP. PROCESSO DESMEMBRADO EM RELAÇÃO AOS DEMAIS CÓ-RÉUS. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. ART. 386, VI DO CPP. IN DUBIO PRO REO. RECURSO PROVIDO. 1. As provas constantes de processo administrativo podem ser acolhidas em juízo, principalmente quando se mostram mais coerentes do que as apanhadas na instrução criminal e, portanto, com maior aptidão ou força para revelarem a verdade real. 2. Apesar da existência de indícios, ainda que veementes, contra a acusada, não há nos autos prova irrefutável que justifique a sua condenação; aplicação do princípio in dubio pro reo. 3. Não bastam à condenação criminal ilações ou presunções, ainda que legítimas, pois se requer para tanto a presença de comprovação induvidosa dos fatos, da sua autoria e culpabilidade. 4. In casu, não restou devidamente demonstrado o envolvimento da acusada no referido crime; sendo assim, é preferível absolver um eventual culpado a condenar um inocente. 5. Apelação provida (art. 386, VI do CPP). (TRF-5 - ACR: 4078 AL 0004229-15.2002.4.05.8000, Relator: Desembargador Federal Napoleão Maia Filho, Data de Julgamento: 22/11/2005, Segunda Turma, Data de Publicação: Fonte: Diário da Justiça - Data: 13/12/2005 - Página: 567 - Nº: 238 - Ano: 2005)”.
Constitui consequência do próprio modelo processual penal adotado pela Constituição Federal, em consonância com o sistema acusatório, onde prima-se pela liberdade do cidadão em face de uma resposta estatal à sociedade contra a criminalidade, devido aos riscos advindos de eventual condenação equivocada.
Assim, o in dubio pro reo é considerado base de todo o processo penal brasileiro, servindo de norte interpretativo ao operador do direito nos momentos de aplicação das normas jurídicas.
Nos casos em que não for possível uma interpretação unívoca, mas tenha havido a conclusão pela possibilidade de duas interpretações antagônicas de uma norma legal, a obrigação é de se escolher a tese mais favorável ao réu[8].
O instituto encontra-se previsto em várias disposições do Código de Processo Penal brasileiro, consagrando a ideia do favor libertatis, fruto da própria natureza do Estado Democrático de Direito. Desse mesmo modo, segue a regra do art. 386, VI, impondo a absolvição por insuficiência de prova; o art. 609, parágrafo único, onde há previsão de embargos infringentes ou de nulidade, privativos da defesa; o art. 615, § 1º, estabelecendo que, no tribunal, em caso de empate de votos no julgamento de recursos, deve prevalecer a decisão mais favorável ao réu; o art. 617, que proíbe a reformatio in pejus; e, por fim, o art. 621 e s., dispondo da revisão criminal como direito exclusivo do réu[9].
Assim, apesar da crítica realizada por alguns estudiosos do direito, de que o princípio do in dubio por reo está em desconformidade com o princípio da isonomia processual e, consequentemente, com o da igualdade, impedindo uma efetiva prestação jurisdicional pelo Estado na seara criminal, deve-se salientar que estão choque o jus puniende estatal e o jus libertatis do acusado.
Além do mais, a história recente, marcada pelo domínio de um Estado totalitário, confirmou as consequências da prevalência, a todo custo, de um combate estatal arbitrário à delinquência, como resposta à sociedade, resultando no desrespeito às garantias fundamentais do ser humano.
Não se trata da resolução de conflitos de direitos disponíveis, muito comum no processo civil, mas sim do direito da liberdade do cidadão, categorizado como fundamental pela Constituição, e que, por vários séculos, perante um sistema inquisitivo, foi subjugado e fruto de arbitrariedades por um Estado inquisidor.
É exigida, assim, uma visão crítica do aparato penal estatal, o qual possui um histórico recente de desrespeito às garantias e direitos fundamentais do ser humano, e que, no caso do Brasil em especial, só veio a primar por um critério superior de liberdade com a adoção de uma nova Constituição, no final do século passado.
Muito mais que um “favor”, constitui-se no dever legal de declaração inicial do estado de não culpabilidade, previsto como garantia fundamental no art. 5º, LVII, da Carta Magna.
Não se trata, por muito menos, de privilégio conferido a uma das partes, desequilibrando-se a relação processual, mas sim cumprimento do dever de reconhecimento do status de inocente, que deve prevalecer durante o curso da consecução criminal, sendo apenas invertido após o respeito do devido processo legal[10].
4. Presunção de inocência e o in dubio pro reo
Os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo encontram-se umbilicalmente ligados dentro da sistemática do processo penal, sendo frutos da máxime processual moderna do favor rei, que conforma todo o arcabouço principiológico da matéria. Ambos visam garantir o respeito à dignidade da pessoa humana, já que restringem a função despótica e punitiva do Estado, não permitindo punições arbitrárias, que por séculos foi regra neste âmbito do direito.
O escopo principal do in dubio pro reo é justamente o de proteger o status libertatis do cidadão no Estado Democrático de Direito, não permitindo que a insuficiência de provas ou qualquer dúvida que ainda paire em juízo possa pesar contra o acusado.
Complementa, desta maneira, a presunção de inocência, já que, caso a acusação falhe em sua atuação de influir no convencimento do magistrado, restando dúvida quanto à materialidade ou autoria do crime, por lastro probatório insuficiente, a sentença deve ser favorável ao réu, pelo fato de, desde o início, sua inocência ser presumida.
A incorporação de tais princípios ao ordenamento jurídico pátrio ratifica o ideário acusatório adotado pela Constituição Federal de 1988, sob a ótica de um processo penal que prime pelas garantias fundamentais e pela liberdade de seus cidadãos, em conformidade com o devido processo legal, minimizando, assim, o número prisões e julgamentos arbitrários realizados pelo Estado.
5. Reflexos do in dubio pro reo para o ônus da prova
Há íntima relação entre o ônus da prova no processo penal e o princípio do in dubio pro reo. O direito à prova encontra-se inserido no quadro das garantias do devido processo legal, previsto em ordem constitucional no art. 5º, inciso LIV.
Devido ao melhor tratamento dado à matéria, tanto doutrinária quanto legislativamente, pela seara processual civil, a sistemática civilista serve de inspiração quando se estuda o ônus da prova no processo penal. O critério de distribuição de prova no processo penal decorre, por analogia, do tratamento dado no processo civil[11].
Conforme dispõe os incisos I e II do art. 373 do Novo Código de Processo Civil, seguindo o mesmo raciocínio da legislação de 1973, é atribuído ao autor prova de fato constitutivo de seu direito, enquanto ao réu incumbe o ônus quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
Já o Código de Processo Penal disciplina a matéria no seu art. 156, in verbis:
“Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de pro-vas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;
II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante”.
Cuida-se, a toda evidência, de disposição vaga, imprecisa, o que explica a razão da tradicional doutrina aplicar entendimento análogo ao civilista no exame dessa matéria.
Ocorre que tal analogia acaba por misturar institutos do processo civil com o do processo penal, caracterizando afronta ao princípio da presunção de inocência previsto na Constituição.
Nessa linha, sustenta-se que cabe ao Ministério Público provar a existência do fato criminoso, da sua autoria e, também, a prova dos elementos subjetivos do crime (dolo ou culpa); enquanto incumbe ao acusado provar as causas excludentes da antijuridicidade, da culpabilidade e da punibilidade, bem como circunstâncias atenuantes da pena ou concessão de benefícios legais, já que, a partir da leitura fria do art. 156 do CPP, a prova da alegação caberá a quem fizer[12].
A jurisprudência, de seu lado, ratifica esse entendimento, como é possível perceber pelo voto de julgado abaixo, proferido pelo juiz relator Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau, da Primeira Turma Recursal Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em Apelação Criminal no Processo nº. 0000683-05.2014.8.19.0208:
“Provar não é obrigação; é simples encargo. Se a parte que fizer a alegação não prová-la, sofrerá amarga decepção. Cabe à Acusação demonstrar, e isto de modo geral, a materialidade e a autoria. Já à Defesa incumbe provar eventual alegação de exclusão da antijuridicidade do fato típico (causas excludentes da criminalidade, excludentes da antijuridicidade, causas justificativas ou descriminantes) ou excludentes de culpabilidade. Se o réu invoca um álibi, o ônus da prova é seu. Se argúi legítima defesa, estado de necessidade etc, o onus probandi é inteiramente seu. Se alegar e não provar, a decepção também será sua. (TJ-RJ - APR: 00006830520148190208 RJ 0000683-05.2014.8.19.0208, Relator: FLAVIO ITABAIANA DE OLIVEIRA NICOLAU, Primeira Turma Recursal Crimin, Data de Publicação: 19/03/2015 00:00)”.
Tal forma de interpretação, se a leitura for feita em conformidade com os ditames constitucionais traçados no âmbito processual penal, mostrar-se-á incompatível com o sistema acusatório e com as diretrizes determinadas pela Carta Magna.
Com efeito, o princípio da presunção de inocência, um dos principais corolários da matéria, estabelece que não cabe ao réu comprovar sua inocência, visto que essa é presumida, não necessitando, dessa maneira, provar fato presumido.
Nessa mesma linha, tem-se a incidência do princípio do in dubio pro reo, informando que se do material probatório restar alguma dúvida, essa dúvida deve sempre beneficiar o réu.
Por essa perspectiva, tem-se que ao Ministério Público incumbe a produção de prova firme, que afaste qualquer estado de dúvida acerca dos fatos alegados. Pode-se dizer, inclusive, que, enquanto a presunção de inocência retira do réu a obrigação de comprovar ser inocente, o princípio do in dubio pro reo impõe ao órgão acusador o dever de extirpar vestígios de dúvida.
Com base em tais princípios e por uma interpretação sob a ótica constitucional, chega-se à conclusão de que incumbe ao Ministério Público provar o preenchimento dos elementos do crime, e não ao réu.
Como pode ser visto, Aury Lopes Jr explicita bem esse entendimento:
“Gravíssimo erro é cometido por numerosa doutrina (e rançosa jurisprudência), ao afirmar que à defesa incumbe a prova de uma alegada excludente. Nada mais equivocado, principalmente se compreendido o dito até aqui. A carga do acusador é de provar o alegado; logo, demonstrar que alguém (autoria) praticou um crime (fato típico, ilícito e culpável). Isso significa que incumbe ao acusador provar a presença de todos os elementos que integram a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade e, logicamente, a inexistência das causas de justificação Gravíssimo erro é cometido por numerosa doutrina (e rançosa jurisprudência), ao afirmar que à defesa incumbe a prova de uma alegada excludente. Nada mais equivocado, principalmente se compreendido o dito até aqui. A carga do acusador é de provar o alegado; logo, demonstrar que alguém (autoria) praticou um crime (fato típico, ilícito e culpável). Isso significa que incumbe ao acusador provar a presença de todos os elementos que integram a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade e, logicamente, a inexistência das causas de justificação”[13].
Logo, utilizar-se da sistemática do processo civil no que diz respeito ao ônus probatório em processo penal, ao atribuir ao réu a prova de excludentes elementares do crime, corresponde aproveitamento equivocado do instituto.
À acusação cabe realizar de forma satisfatória seu papel processual e apresentar um conjunto probatório de forma a convencer o juiz da existência do fato e de sua autoria, caso não o faça, e o juiz deve aplicar a máxima do in dubio pro reo e absolver o acusado.
Tal entendimento, apesar de minoritário, é o que mais se aproxima à visão garantista defendida pela Constituição, primando sempre (como já foi ressaltado no presente trabalho), pelo jus libertatis do cidadão em face do jus puniendi estatal.
6. Conclusão
Conforme explicitado no decorrer do trabalho, é de fundamental importância a conformação do processo penal aos princípios e diretrizes traçados em esfera constitucional. O processo deve ser instrumento de garantia contra os excessos do Estado, visto como ferramenta de implementação da Constituição Federal, como garantia suprema do jus libertatis[14].
Para a garantia deste fim, o princípio do in dubio pro reo, relacionando-se com a presunção de inocência, desempenha papel de suma importância, já que constitui uma das principais garantias processuais do acusado contra medidas arbitrárias por parte do Estado.
Não permite, assim, que uma pessoa seja condenada sempre que ainda restar dúvidas a respeito de sua autoria e/ou materialidade do crime. Enquanto não estiver convicto o magistrado, deve prevalecer o direito à liberdade em relação a uma resposta estatal punitiva.
Na dúvida, deve prevalecer o status libertatis do indivíduo em face do jus puniendi estatal. Decorrência direta do Estado Democrático de Direito, onde, acima da busca a todo custo pela verdade real, encontra-se o respeito às garantias fundamentais do cidadão e à dignidade da pessoa humana, previstos de maneira clara e expressa na Constituição.
Como visto, tal princípio constitui fruto do próprio modelo processual penal adotado pela Constituição Federal, em concordância com o sistema acusatório, onde prima-se pela liberdade do cidadão e respeito às garantias fundamentais, em face de uma resposta estatal à sociedade contra a criminalidade, devido aos próprios riscos advindos de eventual condenação equivocada.
Referido mandamento tem ainda como finalidade demonstrar que a democracia só pode realizar seus fundamentos e projetos limitando o poder do Estado para que este além de garantir os direitos e as liberdades fundamentais, pudesse também ter um freio em restringir tais direitos.
À luz da interpretação conforme à Constituição, pode-se ver que o sistema probatório defendido por maioria doutrinária e aplicado pela jurisprudência não encontra respaldo em um sistema processual penal tido como acusatório. O Código de Processo Penal traz de maneira muito tímida tal instituto, restando aos estudiosos do direito a aplicação análoga da sistemática civilista no que diz respeito à matéria de prova.
Em desconformidade com os princípios do in dubio pro reo e da presunção de inocência, vem se exigindo do réu a prova dos elementos de excludente de antijuridicidade e de culpabilidade, utilizando-se preceitos processuais civis, que se mostram incompatíveis com a realidade do processo penal.
Por influência desses dois princípios, o réu inicia o processo penal “ganhando”, ou seja, a inércia de ambas as partes no campo probatório lhe beneficia. Mas, se a comprovação da prática do crime não se der de maneira contundente, mesmo que se mantendo inerte, o réu ainda se beneficia, sendo mandatória sua absolvição.
A acusação, para conseguir um decreto condenatório necessita fazer prova cabal da alegação da prática delituosa por parte do réu. Tal medida se dá pela natureza da indisponibilidade dos bens jurídicos em questão no processo penal. Haja vista que busca restringir o direito de liberdade do cidadão, deve ser maior a cautela e o cuidado dos operadores de direitos na aplicação da lei penal, seja esta processual ou material. E, para tal fim, a concordância com o in dubio pro reo é de suma importância.
A prevalência do interesse do réu não pode ser vista como obstáculo à persecução penal do Estado, com vista à garantia da segurança pública. Deve ser interpretado como um reconhecimento ao interesse da sociedade de que todos tenham suas garantias e direitos fundamentais respeitados e que não haja prisões arbitrárias enquanto houver dúvida em relação à culpabilidade do indivíduo, até o momento em que se prove a inversão desse status, por meio da certeza, dependente do devido processo legal.
7. Referências
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012.
LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. rev.atual. São Paulo: Saraiva, 2012.
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal, vol. 1. 2ª ed. Campinas: Milenium, 2003.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
PRUDÊNCIO, Simone Silva. Garantias Constitucionais e o Processo Penal: uma visão pelo prisma do devido processo legal, 2010. Disponível em: <http://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/viewFile/134/125>. Acesso em: 09 de junho de 2019.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 18ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2011.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 11ª ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, vol. 3. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
[1] CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 80.
[2] PRUDÊNCIO, Simone Silva. Garantias Constitucionais e o Processo Penal: uma visão pelo prisma do devido processo legal, 2010. Disponível em: <http://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/viewFile/134/125>. Acesso em: 09 de junho de 2019.
[3] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 11ª ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 48.
[4] Idem, ibidem. P. 71.
[5] Idem, ibidem. P. 87 e 88.
[6] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 18ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2011, p. 53.
[7] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 97.
[8] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, vol. 3. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 69.
[9] Idem, ibidem. P. 69 e 70.
[10] NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 246.
[11] GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 235.
[12] CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 396.
[13] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. rev.atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 569.
[14] MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal, vol. 1. 2ª ed. Campinas: Milenium, 2003, p. 83.
Bacharelando do curso de Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Paulo Henrique Martins Machado. Os desafios para a aplicação do princípio do in dubio pro reo no processo penal brasileiro contemporâneo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jun 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53076/os-desafios-para-a-aplicacao-do-principio-do-in-dubio-pro-reo-no-processo-penal-brasileiro-contemporaneo. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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