RESUMO: O presente trabalho apresenta as razões pelas quais se tornou relevante a criação de tipos penais específicos destinados à proteção de comunidades vulnerabilizadas no território Brasileiro. O Direito Penal, doutrinariamente, expõe sua função repressiva, preventiva e retributiva perante a sociedade, muito embora não exista amplas reflexões acerca de sua real importância para o direito. Desta forma, faz-se imprescindível o estudo dos fatos sociais em que esses indivíduos desemparados se encontram, para que então seja visualizado o motivo pelo qual é necessária a constituição de proteções específicas para delitos cometidos em seu prejuízo.
Palavras-chave: Vulnerabilidade; Tipos Penais Específicos; Funções do Direito Penal; Feminicídio; Homofobia; Racismo.
ABSTRACT: This paper presents one of the most relevant ways to create specific data for the protection of vulnerable communities in Brazil. Criminal Law, specifically, expands its repressive, preventive and retributive function of society, although there is no broad reflection on its real importance for the law. In this way, it is essential to study the social facts that are present, when it is presented the reason why a specific constitution is necessary for crimes committed to their detriment.
Keywords: Vulnerability; Specific Criminal Types; Functions of Criminal Law; Feminicide; Homophobia; Racism.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. AS FUNÇÕES DO DIREITO PENAL. 3. DA VIOLÊNCIA REITERADA A GRUPOS VULNERÁVEIS. 4. A IMPORTÂNCIA DE TIPOS PENAIS ESPECÍFICOS. 5. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
A criação de tipos penais destinados a comunidades específicas, desde os primórdios, gera polêmica no seio da sociedade. Há diversos questionamentos acerca de qual seria a necessidade da criação de crimes como feminicídio, racismo e homofobia, haja vista a existência de outros tipos penais que poderiam, adequadamente, ser aplicados para sanção dos agressores, como o homicídio, injúria e difamação.
O direito penal instituiu-se com o intuito de promover duas funções básicas: repelir e prevenir o crime. Estas funções, respectivamente, tem o objetivo de reprovar a prática do crime e proporcionar a diminuição do cometimento de delitos, seja de forma geral, mostrando aos cidadãos as consequências da prática criminosa, ou de forma especial, direcionando a punição exatamente ao autor do crime, castigando-o pela conduta errônea.
Há também a teoria que entende pela função retributiva da pena, na qual a pena visa retribuir ao delinquente o mal causado a outro indivíduo. Todavia, a realidade do ordenamento jurídico não se restringe a mera punição, pautada na expressão “olho por olho, dente por dente”, conforme da Lei de Talião regulamentava, ela almeja outros horizontes, e resultados que ultrapassem a esfera individual do criminoso.
Desta forma, a escolha do tema tem o escopo de descortinar as razões pela qual, no ordenamento jurídico brasileiro, criou-se tipos penais específicos, destinados a indivíduos indevidamente vulnerabilizados na comunidade.
O Brasil, segundo a Organização Mundial da Saúde, é o 5º país que mais mata mulheres no contexto doméstico e familiar. Ainda, segundo dados do Atlas da Violência de 2018, os negros são o perfil mais frequente do homicídio no Brasil, apresentando maior vulnerabilidade em relação aos jovens brancos. Com relação aos LGBTQ+, a Organização não governamental austríaca Transgender Europe expôs o Brasil como país que lidera o ranking de homicídios em face de pessoas transgêneros.
Posto isso, faz-se relevante o estudo sobre a importância da tipificação de determinados crimes específicos, bem como o entendimento jurídico e social sobre as razões pela qual se pretende tipificá-los. A prática de delitos de ódio baseados no preconceito e discriminação de determinadas comunidades deve ter fim, pois a própria Constituição Federal propôs como objetivo a promoção do bem de todos, sem qualquer discriminação.
2. AS FUNÇÕES DO DIREITO PENAL
O direito penal brasileiro é um dos mais antigos ramos do direito, e remonta ao aparecimento das primeiras civilizações com organização sócio-política-econômica e o surgimento da figura do Estado, com poder soberano perante todos.
No estudo da evolução histórica do direito penal, torna-se claro que seu nascimento teve origem a partir do momento em que os homens passaram a conviver em sociedade, emergindo-se da necessidade do Estado avocar a competência ativa de punir as atrocidades cometidas entre os indivíduos, que em meio a conflitos sociais acabavam imbuídos do sentimento de vingança, fazendo sua própria justiça.
Inicialmente, o direito penal caracterizava-se por apresentar punições desmedidas, que não apresentavam equivalência entre o mal cometido pelo delinquente e seu respectivo castigo. No entanto, com o passar dos anos, bem como com a reconhecida Declaração Universal dos Direitos dos Homens (DUDH), alterou-se parte da realidade penal para os países-membros da Organização das Nações Unidas, uma vez que passou-se a adotar o viés ideológico humanitário, promovendo tratamento digno aos homens, e assim, proporcionando punições razoáveis para o mal cometido.
Ainda, no ordenamento jurídico brasileiro, a utilização do direito penal é realizada de forma a não banalizar seu objetivo, pois, nos termos do princípio da intervenção mínima do Estado, sua aplicação deve ser entendida como ultima ratio, ou seja, o direito penal apenas deve ser aplicado e se preocupar com a proteção bens jurídicos de extrema relevância à vida em sociedade.
Nesse sentido, GRECO (2017, p. 34) confirmar que “a finalidade do Direito Penal é proteger os bens mais importantes e necessários para a própria sobrevivência da sociedade”.
Assim, em conformidade com a ideia de humanização decorrente da DUDH, a doutrina majoritária entende que a função do direito penal, em síntese, são duas: retributiva e preventiva.
A função retribuitiva, de acordo com teorias absolutas, são aquelas que tratam a pena como um fim em si mesma, um castigo, ou como se retira da própria denominação, uma retribuição pela mal causado a um indivíduo.
Por outro flanco, as teorias relativas aduzem que a pena tem também caráter preventivo, ou seja, objetivam evitar o cometimento de outras infrações penais, tanto de forma geral, atuando sobre a sociedade, expondo que cada conduta criminosa possuirá sua devida punição caso seja levada a efeito por qualquer agente, como de forma especial, sendo imposta diretamente sobre o criminoso, retirando-o do convívio da sociedade, impedindo a realização de novas práticas ilegais.
Desta forma, verifica-se que a função preventiva geral tem cunho educacional, ao passo em que demonstra à sociedade os efeitos que poderão ser levados a efeito quando da prática criminosa, bem como produzem efeitos psicológicos, que conforme Jescheck1 leciona “O Estado […] deve preocupar-se de impedir psicologicamente ao que tem inclinações delitivas, que se comporte realmente de acordo com essas inclinações”.
Isto posto, averígua-se que o direito penal vai muito além daquilo que é visto pela sociedade, objetivando não apenas retribuir o mal causado ao criminoso, mas precipuamente mostrar à sociedade as consequências da realização de atos criminosos, e assim minorar as condutas ilícitas que poderiam ser levadas a efeito.
3. DA VIOLÊNCIA REITERADA A GRUPOS VULNERÁVEIS.
A Constituição Federal, em seu art. 5º caput, é patente ao declarar que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Ainda, o art. 3º, IV da CRFB/88 prevê como objetivo fundamental a promoção do bem de todos, sem qualquer preconceito ou discriminação.
Dessas premissas retiram-se o princípio da igualdade, que pode ser analisado sob o aspecto formal e material. A igualdade formal, nada mais é que o tratamento de forma igual previsto em lei, ao passo que a material diz respeito à isonomia real, no plano fático e social, indo além das previsões legais.
Nesse contexto, verifica-se pela visualização da sociedade que a igualdade formal, de fato, é plenamente executada, inexistindo diferença entre os cidadãos perante o ordenamento jurídico escrito. Todavia, o grande empecilho manifesta-se através da igualdade material, que de forma clara, não é contemplada e promovida no Estado Democrático de Direito Brasileiro.
Diante disso, torna-se fácil visualizar que os problemas relativos à igualdade na sociedade desponta de sua inadequação material, ou seja, pela frontal desobediência aos termos legais.
Posto isso, retira-se que a não promoção da igualdade material é responsável pela desigualdade de fato, e é justamente dessa desigualdade que surgem os grupos vulneráveis em relação aos grupos entendidos como tradicionais.
A vulnerabilização ou desigualdade levam os grupos a sofrerem abusos, agressões e variadas violações a seus direitos, bem como acabam sofrendo com a dificultação de acesso aos direitos, como a saúde, trabalho, segurança e a vida.
Nesse sentido, imprescindível mencionar dados referentes aos grupos vulnerabilizados na sociedade. No tocante as mulheres, grupo que desde os primórdios foi subjugado em todos os contextos, a Organização Mundial da Saúde demonstra que o Brasil é o 5º país que mais mata mulheres no contexto doméstico e familiar, ou seja, o território em que o feminicídio mais ocorre.
Ainda, segundo o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência de 2017, as mulheres negras jovens têm o dobro de chance de serem mortas em relação com mulheres brancas em todo o país.
Do mesmo modo, segundo dados do Atlas da Violência 2018, os jovens negros são o perfil de vítimas mais frequente no brasil, apresentando significativa vulnerabilidade em relação aos jovens brancos.
Em relação aos LGBTQ+, o cenário não é muito diferente. Segundo a Organização não governamental austríaca Transgender Europe, o Brasil é o país que lidera o ranking de homicídios em face de pessoas transgêneros.
Embora o estudo tenha dando enfoque a esses três grupos, deve-se ampliar a reflexão para outros, como por exemplo os índios, os portadores de necessidades especiais, as crianças, os idosos e demais classes vulneráveis, que indevidamente não são adequadamente respeitadas social e legalmente.
Por tudo isso, torna-se claro que, embora a lei preveja uma situação harmoniosa, em que todos possuem direitos iguais, os dados colhidos sobre a realidade social apontam para a indiscutível desigualdade material, e consequente vulnerabilização dos grupos em todos os aspectos, razão pela qual merecem especial proteção legal no campo penal, a fim de minorar as possibilidades de cometimento de crime em relação a essas comunidades.
4. A IMPORTÂNCIA DE TIPOS PENAIS ESPECÍFICOS.
Como demonstrado no capítulo anterior, é evidente a vulnerabilização social e jurídica de determinados grupos em meio a sociedade. Ao verificar isso, o Estado viu-se na obrigação de criar meios com o intuito de repelir essa desigualdade, bem como de desincentivar o cometimento de crime em relação às classes vulneráveis.
É nesse momento que o Poder Legislativo entra em ação e executa as funções preventiva e retributiva do direito penal, criando crimes como o feminicídio, racismo, e, atualmente, homofobia, a fim de punir mais severamente os criminosos e de mostrar à sociedade que a prática e reiteração de condutas pejorativas a esses grupos vulneráveis serão intensamente sancionadas.
Com base nisso, relevante expor a reflexão de GRECO (2017, p. 74):
A pena deve tão somente reprovar o agente pelo mal que ele praticou mediante o cometimento da infração penal, ou deve ir adiante, buscando, além da efetiva reprovação, ter uma finalidade utilitária, vale dizer, tentar impedir que futuros delitos venham a ser levados a efeito? A pena deve ser entendida somente como um ato de vingança pública, compensando o mal produzido pelo agente com a prática da infração penal, ou deve ser vista como um instrumento cuja aplicação tentará garantir, no futuro, uma maior segurança para a vida em sociedade?
Por todo o exposto, torna-se incontestável que a criação de tipos penais específicos são imprescindíveis para manifestar a reprovação de determinadas condutas, bem como para impedir o cometimento de outros delitos em face desses grupos vulneráveis, e menos protegidos, não podendo ser vista a tipificação como forma de segregação ou desigualdade formal. O direito penal deve ser interpretado teleologicamente, ou seja, buscando a real finalidade para o qual o crime ou lei foram criados.
Aristóteles, responsável pela introdução do princípio da igualdade na filosofia, foi certeiro ao afirmar que “a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, dando a cada um o que é seu”. Desta forma, sabendo-se que a tipificação específica tem o cunho de minorar a violência a grupos indevidamente fragilizados, não deve prevalecer como justificativa para a inexistência de crimes específicos a alegação de que todos são iguais perante a lei, pois como já dito, é indiscutível a igualdade diante da lei, contudo, é inequívoca a ausência de igualdade material.
Todavia, embora a criação de tipos penais específicos tenha a finalidade de dirimir os delitos cometidos em face de grupos mais suscetíveis na sociedade, a realidade é que nem mesmo a criação de tipos penais mais severos são capazes de cessar ou diminuir o ataque dos criminosos no Brasil, haja vista que se implantou no território a vasta sensação de impunidade, ou seja, um convite ao crime no país.
5. CONCLUSÃO
Ante o exposto, percebe-se que a criação de tipos penais específicos são de extrema importância no ordenamento jurídico, pois embora seja sustentada a ideia de igualdade formal, pela qual todos são iguais perante a lei, a realidade traduz-se de forma diversa, diante da falácia da igualdade material.
Posto isto, através de interpretação teleológica pode-se entender que a finalidade das tipificações específicas ultrapassam o mero intuito retributivo, de castigar o delinquente pelo mal causado, e tentam alcançar a função preventiva da pena, demonstrando as consequências que o cometimento de condutas ilícitas proporcionam aos criminosos, visando atuar socialmente e psicologicamente na sociedade.
Não se deve relegar os direitos fundamentais, como a vida e dignidade humana de grupos vulnerabilizados na sociedade, razão pela qual o Estado atua de forma ativa através do Poder Legislativo, objetivando pôr fim às vultuosas ilegalidades cometidas em face destas classes.
REFERÊNCIAS.
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JESCHECK, Hans-Heinrich.
Advogada - Formada no Centro Universitário Unic II. Pós-graduada em Direito Processual Civil. MBA em Direito do Agronegócio. Pós-graduanda em Direito Empresarial. Membra da Comissão do Direito da Mulher na OAB/MT.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Valéria Maria do. A importância da criação de tipos penais específicos à concretização das funções repressiva e preventiva do Direito Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jul 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53137/a-importancia-da-criacao-de-tipos-penais-especificos-a-concretizacao-das-funcoes-repressiva-e-preventiva-do-direito-penal. Acesso em: 24 nov 2024.
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