De acordo com o extraído do Art.212 do Código de Processo Penal, o ordenamento processual penal pátrio adotou, com o advento da lei 11.690/08 o sistema Cross Examination, pelo qual as perguntas são feitas pelas partes diretamente à testemunha, sem intervenção do magistrado, salvo no que se refere à repetição de perguntas, indução de respostas ou que não tenham relação com a causa.
Diferenciando-se do sistema de inquirição anteriormente adotado, o sistema presidencialista, pelo qual o Juiz detinha o papel de verdadeiro presidente da inquirição, devendo as perguntas serem solicitadas a este, que as fazia diretamente as partes, fazendo com que o contato entre as partes e a testemunha fosse reduzido ao mínimo necessário para o engendramento da instrução probatória, conforme expunha a antiga redação do Art.212:
Art. 212. As perguntas das partes serão requeridas ao juiz, que as formulará à testemunha. O juiz não poderá recusar as perguntas da parte, salvo se não tiverem relação com o processo ou importarem repetição de outra já respondida.
Nota-se, portanto, que o juiz exercia papel de protagonista na instrução, visto que este detinha total poder para negar ou aceitar as perguntas, colocando os verdadeiros atores processuais em posição de submissão à autoridade judiciária, exacerbando o efeito psicológico causado pelas perguntas feitas diretamente pelo juiz-presidente, que se colocava num patamar acima dos presentes e detinha poder quase absoluto no deslinde dos trabalhos instrutórios.
Desta forma, a promulgação da lei 11.690/08 trouxe a participação direta das partes na inquirição de testemunhas, permitindo que estas façam as perguntas cabíveis diretamente às testemunhas, cabendo ao juiz nega-las nas hipóteses determinadas no dispositivo processual, restando à autoridade judiciária apenas complementar a inquirição, caso julgue necessário, por meio de perguntas próprias, realizadas diretamente pelas partes, pelo que se convencionou chamar de “esclarecimentos”.
Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.
Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.
Contudo, apesar da clareza com que se expõe os imperativos contidos nos dispositivos legais retro colacionados, magistrados seguem negando a posição subsidiária que a eles foi atribuída na instrução, colocando-se em posição presidencial, abusando de sua discricionariedade por meio de interpretações equivocadas do texto legal e se protegendo pelo inefável manto do pas de nullité sans grief.
Ante isto, em 2017 o Supremo Tribunal Federal apreciou o HC 111.815/SP, o qual levou a apreciação da corte o caso de uma magistrada que tinha como “praxe” na realização de suas audiências dar início as perguntas as testemunhas e, só após esgotadas suas perguntas, passaria a palavra para as partes, sem prejuízo de, ao final, realizar a complementação.
Sustentava a magistrada que o método agilizava os trabalhos, preservava a imparcialidade na colheita das provas e não importava qualquer prejuízo as partes. Nos reservamos o direito de pular as críticas relacionadas ao absurdo das fundamentações, visto que seria necessário todo um compêndio abordando temas de direito constitucional e processual penal, não é o objetivo desta explanação.
Nos concentramos, todavia, na reserva ao julgamento emanado da Suprema Corte, o qual deferiu parcialmente a ordem, declarando nula a oitiva das testemunhas, assentando a nulidade apenas a partir do vício de procedimento.
Em termos práticos, permitiu a corte que fosse realizada nova oitiva pela mesma magistrada, com observância da norma insculpida no Art.212 do Código de Processo Penal.
Segue ementa do acórdão:
HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL.CRIME DE HOMICÍDIO. ARTIGO 121 DO CÓDIGO PENAL. PLEITOPELA REVOGAÇÃO DA CUSTÓDIA PREVENTIVA. ALEGAÇÃO DENULIDADES. ORDEM DEFERIDA PARCIALMENTE PARADECLARAR INSUBSISTENTE A OITIVA DAS TESTEMUNHAS. (HC 111.815/SP, Relator: Min. Marco Aurélio)
Da análise do acórdão, extrai-se que os Ministros entenderam que a atitude de utilizar resquícios do sistema presidencialista gerava nulidade meramente relativa, não sendo necessário anular todo o processo, adotando uma “medida intermediária e de caráter pedagógico” para que a magistrada refizesse a inquirição observando o imperativo do Art.212.
Em debates, os Ministros Alexandre de Moraes e Marco Aurélio concordaram que a inversão da ordem de perguntas altera substancialmente a “correlação de forças” no processo.
Na ocasião, os julgadores não entenderam tratar-se de vício de parcialidade no trâmite da inquirição, razão pela qual permitiram que a fosse realizada nova inquirição pela mesma magistrada, mas com a observância dos postulados processuais cabíveis.
Logramos discordar do exposto, em razão da reserva psicológica do magistrado ao analisar a prova ulteriormente colhida, após a declaração de nulidade da prova anterior.
Isto é, entendemos que a repetição do ato pelo mesmo magistrado perfaz-se em vício de parcialidade, visto que este já está viciado pela prova colhida anteriormente sob o manto de procedimento defasado que permitiu que, em realidade, este protagonizasse a colheita da prova.
A consequência disto será a vinculação psicológica do juiz aos elementos colhidos por meio de procedimento nulo, fazendo com que este busque, conscientemente ou não, corroborar os conhecimentos já adquiridos por meio da nova inquirição.
Pautamos esta cognição na clara alteração do produto oriunda da ordem dos fatores modificada, conforme pontuada pelos magistrados integrantes da Corte Constitucional, desaguando na possível modificação da prova em razão da alteração do meio de colheita desta. Isto é, mudando a perspectiva que se observa, mudar-se-ia o observado.
De toda forma, não se podendo afirmar com total convicção, sem margem de erros, se a inversão da ordem modificaria substancialmente ou não a prova obtida ou a visão do magistrado, redundaria decisão mais adequada a hipótese a anulação do ato, mas também a adequada redistribuição do feito para a realização da inquirição por outro magistrado, não viciado pela prova já colhida e por sua cognição viciada pelos conhecimentos transpassados pelos seus sentidos.
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