Introdução
O trabalho visa examinar a coexistência entre a execução provisória da pena e o princípio da presunção de inocência nos ordenamentos do mundo ocidental moderno, especialmente diante do profundo debate em nosso sistema acerca da regra segundo a qual as sentenças penais condenatórias não podem ser executadas até que sejam esgotados os recursos cabíveis contra a decisão.
Fundamentação
Os juristas Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, Monica Nicida Garcia e Fábio Gusman elaboraram excelente estudo denominado “Execução Provisória da Pena – Panorama nos Ordenamentos Internacional e Estrangeiro”, no qual investigam a exequibilidade das condenações criminais em algumas nações, de modo a compreender a forma como isso ocorre nos ordenamentos ocidentais atuais.
Neste trabalho, destacam os autores que, na Inglaterra, os acusados devem, em regra, aguardar os julgamentos dos recursos enquanto cumprem a pena sentenciada, a menos que a lei garanta-lhes a liberdade mediante o pagamento de fiança.
Nos Estados Unidos, por sua vez, os juristas salientam que a matéria é regulamentada pelo artigo 16 do Código de Processo Penal Americano, dispondo que “se deve presumir inocente o acusado até que o oposto seja estabelecido em veredito efetivo”, de modo que as decisões penais condenatórias são executadas imediatamente seguindo as disposições legais, ressalvadas, em algumas hipóteses, o direito de recorrer em liberdade mediante o pagamento de fiança.
Já a nação canadense, que, conforme a tradição britânica, não possui constituição escrita, regulamenta a questão através de sua Carta de Direitos e Liberdades, que dispõe na seção 11, “d”, que qualquer pessoa acusada da prática de um delito tem direito de ser presumida inocente até que provada culpada de acordo com a lei em julgamento público e justo por um tribunal independente e imparcial. Segundo os juristas “mesmo assim, a força da presunção de inocência não impede o início do cumprimento de sentença logo depois de exarada a sentença”.
O estudo aponta também que, na Alemanha, o Tribunal Constitucional tem decidido que nenhum recurso aos Tribunais Superiores tem efeito suspensivo, negando, assim, o duplo efeito aos recursos extraordinários. A França, por sua vez, que adota como carta de direitos a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, tem o direito à presunção de inocência disciplinado no art. 9º do diploma, segundo o qual “todas as pessoas são consideradas inocentes até que sejam declaradas culpadas”.
Os autores prosseguem na análise da execução provisória da pena no exterior apontando que, em Portugal, o princípio da presunção de inocência encontra-se insculpido no nº 2 do artigo 32 da Constituição Portuguesa, dispondo que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”. Todavia, apontam que já haveria entendimento firmado no sentido que o efeito suspensivo dos recursos não é aplicável ao Tribunal Constitucional.
Por fim, o estudo analisa a presunção de inocência conforme insculpida nas constituições da Espanha e Argentina, concluindo que, também nessas nações, o estado de inocência dos acusados, garantido constitucionalmente, não obsta que a execução da pena seja iniciada antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.
A análise do ordenamento jurídico internacional a respeito da extensão do estado de inocência dos acusados no processo penal e da possibilidade de execução provisória da pena permite concluir que o Brasil adota uma posição singular a respeito do tema. Isso porque a previsão do art. 5º, LVII da Constituição Federal de 1988, que determina que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença, não parece ter disciplina semelhante em qualquer outra nação, à exceção de Portugal.
Dessa forma, conforme apontado, as cartas de direitos dos demais países costumam, de fato, conter previsões garantido a presunção de inocência dos acusados, sem, contudo, prever que essa presunção deverá extender-se até o trânsito em julgado da sentença condenatória, como fez a constituição brasileira.
Por essa razão, é possível vislumbrar com maior facilidade a interposição de recursos sem efeito suspensivo, pois, considerando que o direito constitucional dessas nações determina, em regra, tão-somente que os indivíduos deverão ser considerados inocentes até que sejam provados culpados, sem mencionar o trânsito em julgado das sentenças, não há qualquer óbice para que o legislador ordinário module com liberdade os efeitos que cada recurso deve produzir.
Reiterando esse entendimento, cabe ressaltar que os tratados internacionais que trazem disposições semelhantes a respeito da extensão do estado de inocência dos acusados tratam a respeito da matéria da mesma forma. Assim, a Convenção Européia dos Direitos do Homem, que corresponde à carta de direitos humanos adotada pelo Conselho da Europa, determina em seu art. 6º, 2, que “Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada”.
A Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, por sua vez, também assegura a presunção de não culpabilidade sem referência ao trânsito em julgado da sentença, nos termos do seu art. 8º, 2, que dispõe: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”.
No mesmo sentido é o art. 11º, 1, da Declaração Universal de Direitos Humanos das Nações Unidas:
Art. 11º
É notável, portanto, que os ordenamentos jurídicos internacionais, tanto no âmbito interno de cada Estado quanto nos acordos supracionacionais, em regra, não vinculam a presunção de inocência dos acusados ao trânsito em julgado das decisões, como fez a Carta Magna brasileira, de modo que manifestam entendimento que o princípio pode ser assegurado com a garantia da não culpabilidade até a o esgotamento do processo em primeira instância, sendo inaplicável durante a interposição dos recursos.
Esse fenômeno também pode ser observado na doutrina internacional. Assim, o jurista italiano Luigi Ferrajoli, em sua célebre obra Direito e Razão, na qual estabelece as bases do garantismo processual penal moderno, ao manifestar-se contra as prisões processuais aduz que os acusados devem ter seu direito à liberdade assegurado durante o trâmite processual, sem, contudo, afirmar que esse direito deveria transpor a primeira instância. Senão vejamos:
Se a jurisdição é a atividade necessária para obter a prova de que um sujeito cometeu um crime, desde que tal prova não tenha sido encontrada mediante um juízo regular, nenhum delito pode ser considerado cometido e nenhum sujeito pode ser reputado culpado nem submetido a pena. Sendo assim, o princípio de submissão à jurisdição – exigindo, em sentido lato, que não haja culpa sem juízo (axioma A7) e, em sentido estrito, que não haja juízo sem que a acusação se sujeite à prova e à refutação (Tese T63) – postula a presunção de inocência do imputado até a prova contrária decretada pela sentença definitiva de acusação.
[…]
4. Um processo sem prisão preventiva - Portanto, essa contradição nos termos que é a prisão sem sentença definitiva pode, pelo menos até o primeiro grau de jurisdição, ser suprimida. (FERRAJOLI, 2006, p. 505 e 515 – original sem grifos).
Conclusão
Conclui-se, assim, que a compreensão segundo a qual o princípio do estado de inocência do réu está vinculado ao esgotamento recursal é genuinamente brasileira, justificável, em grande parte, pela forma peculiar como o princípio foi disciplinado em nossa Constituição no art. 5º, LVII, que determina expressamente a não culpabilidade até o trânsito em julgado das sentenças.
É por essa razão que, no direito internacional, é possível que haja execução provisória da pena após o julgamento do processo em primeira instância ou nas instâncias ordinárias, enquanto na nação brasileira a matéria provoca grande divergência, com a doutrina e jurisprudência majoritárias manifestando-se pela impossibilidade da execução antecipada. O que ocorre é que, conforme observado, não há óbice nas cartas de direitos internacionais à execução dos julgados condenatórias antes que sejam apreciados todos os recursos, ao contrário do que ocorre em nosso ordenamento.
Referências
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal; prefácio da 1ª ed. italiana, Norberto Bobbio. 2. ed. rev. e ampl. - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
FRISCHEISEN, L.C.F.; GARCIA, M.N.; GUSMAN, F. Execução Provisória da Pena. Panorama nos ordenamentos nacional e estrangeiro. Disponível em: < http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/coordenacao/eventos/encontros-tematicos-e-outros-eventos/outros-eventos/docs/execucao-da-pena/3_execucao_provisoria_da_pena_versao_final_corrigido2.pdf/view >. Acesso em 06 de agosto de 2019.
Pós Graduado em Direito Constitucional Aplicado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVEIRA, José Eduardo Brasil Louro da. Panorama Internacional da Execução Provisória das Sentenças Penais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 ago 2019, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53300/panorama-internacional-da-execuo-provisria-das-sentenas-penais. Acesso em: 22 nov 2024.
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