RESUMO: Este artigo possui como escopo analisar criticamente o regime jurídico de trabalho ao qual os presos são submetidos no Brasil. Demonstrar-se-á que a Lei de Execução Penal, no que tange à regulamentação do trabalho dos presidiários, viola a Constituição federal de 1988, pois afasta direitos sociais fundamentais dos trabalhadores, como o salário-mínimo e o décimo terceiro salário. Verificar-se-á que a igualdade e o valor social do trabalho devem presidir as relações de trabalho nos presídios nacionais, de forma a evitar a exploração de mão de obra barata carcerária pelos agentes públicos e privados.
Palavras-Chave: Trabalho Prisional. Lei de Execução Penal. Constituição federal. Salário Mínimo. Valor Social do Trabalho. Igualdade.
ABSTRACT: This article has the purpose of analyzing the legal regime to which inmates are submitted to in Brazil. It will be demonstrated that the law which addresses penal execution in the matter of work regulation, when it comes to prison labor defies the federal Constitution of 1988 on the grounds that it goes against fundamental rights related to minimum wage and thirteenth salary. It will also be verified that what should prevail in the aspect of work relation in national prisons is equality and social work value, in a way that avoids exploitation of cheap inmate labor by both public and private agencies.
Keywords: Prison Labor. The Penal Execution Law. Federal Constitution. Minimum Wage. Social Value of Work.
Sumário: 1. Introdução; 2. Histórico do Trabalho Penitenciário; 3. O trabalho dos reclusos no atual ordenamento jurídico brasileiro; 4. A não recepção da Lei de Execução Penal pela Constituição federal de 1988 no que tange ao regime de trabalho dos presos; 4.1 O valor social do trabalho; 4.2. A igualdade; 4.2.1. A equiparação salarial; 5. Conclusões; 6. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Trata-se de estudo acerca da incompatibilidade do regime de trabalho dos presos previsto na Lei de Execução Penal com os princípios e direitos fundamentais com os princípios e direitos fundamentais assegurados pela Constituição federal de 1988, a qual visa a implementação de um Estado Democrático de Direito.
Inicialmente, há de ser traçado um histórico acerca da utilização do trabalho no cumprimento das penas privativas de liberdade. Posteriormente, analisaremos o trabalho dos presos no sistema penal brasileiro, o qual é regulado pela Lei de Execução Penal. Por fim, faremos uma análise dos principais fundamentos constitucionais que impedem que o regime jurídico de trabalho dos presos seja recepcionado pela Constituição federal de 1988.
2 HISTÓRICO DO TRABALHO PENITENCIÁRIO
Ao longo da história da humanidade, o trabalho sempre existiu como forma de punição para os que delinquiam, bem como para os prisioneiros de guerra (CONTI apud ASSALY 1934, p. 88). Entretanto, o seu regime foi evoluindo e se transformando com o passar dos séculos e a evolução do Direito Penal e Trabalhista.
Nas grandes civilizações da antiguidade, ocidentais e orientais, bem como no Egito, na Pérsia e na Grécia, os prisioneiros de guerra, quando não eram mortos, eram transformados em escravos, ficando submetidos a todas as formas de exploração e executando os serviços de maior periculosidade. Entretanto, nessa época os presos não estavam sob a tutela de um Estado. Eles eram de propriedade particular dos integrantes das altas classes sociais, daqueles que os capturavam nas batalhas e também dos reis ou imperadores.
Já na Idade Média, com a redução das batalhas por conquista de terras, diminuiu-se a quantidade de prisioneiros submetidos ao trabalho forçado. Quanto aos que delinquiam, a estes era aplicada a pena de morte, através de suplícios (CARVALHO, 2011, p. 51), como o enforcamento e a fogueira. Nessa época, ainda não existia a pena privativa de liberdade. Os estabelecimentos penais eram temporários e só abrigavam os criminosos durante o período que antecedia sua execução.
Durante o Estado Absolutista, o cárcere também foi utilizado apenas como o local em que os condenados ficavam aguardando o cumprimento da pena capital. Nesse período, a justiça punitiva caracterizou-se primordialmente por processos atrozes, inquisitivos e sem respeito algum à dignidade do réu. As prisões serviam para manter o indivíduo preso e incomunicável, pelo tempo necessário para a instrução do processo – o que poderia significar alguns anos – bem como para que os interrogatórios, acompanhados de torturas e castigos corporais, pudessem ser realizados (ASSALY, 1934, p. 36).
Saliente-se que, no Brasil, as práticas punitivas eram semelhantes às praticadas na Europa. O Livro V das Ordenações Filipinas – código penal brasileiro que vigeu até 1830 – chegou a ser definido pelo jurista Machado Neto como um “catálogo de monstruosidades” (CARVALHO, 2011, p. 52).
O desenvolvimento do trabalho prisional se deu concomitantemente com a pena privativa de liberdade. Inicialmente, ele estava ligado à concepção retributiva da pena (PAULA, 2007), ou seja, era visto como uma vingança, pois apenas a reclusão não era suficiente para punir os violadores das normas: fazia-se necessário o trabalho análogo ao de um escravo, uma forma de discipliná-los e enfraquecê-los e, ao mesmo tempo, um meio para utilizar sua força laboral em prol das produções do Estado.
Com o movimento iluminista e o desenvolvimento do capitalismo, o humanismo é trazido à baila, favorecendo a diminuição das penas corporais e incentivando as penas privativas de liberdade, com cunho não apenas retributivo, mas também pedagógico e reabilitador. Os grandes pensadores e filósofos do iluminismo, como Voltaire, Montesquieu e Rousseau, vão trazer bases mais humanas e racionais para o fundamento do direito de punir, ao ponto em que estabelecem um novo sistema punitivo, baseado nos parâmetros da humanidade e proporcionalidade.
O trabalho vai deixando de ser um castigo e passa a ser um instrumento de ressocialização: ele tira o criminoso do ócio, lhe estimula e lhe dignifica. É o trabalho refletindo a ética cristã.
A industrialização europeia e americana e o período de guerras incentivaram ainda mais o uso de mão de obra penitenciária, em decorrência da alta demanda por trabalhadores no setor privado. Nessa época, a Organização Internacional do Trabalho – OIT editou Convenções e Recomendações acerca do trabalho penitenciário, visando eliminar progressivamente o trabalho obrigatório nos estabelecimentos prisionais (PAULA, 2007).
Mas é no período pós-guerra, com a criação da Organização das Nações Unidas e a Declaração do Direito do Homem e do Cidadão, que o trabalho penitenciário mais se desenvolve. A ONU editou, em 1955, as Regras Mínimas da Organização das Nações Unidas para o Tratamento dos Reclusos, o qual, entre outras coisas, regulamentava e fazia recomendações acerca do trabalho penitenciário, das condições laborativas e dos acidentes de trabalho:
Sobre as Regras Mínimas editadas pela Organização das Nações Unidas, são elas parte do que Anabela Miranda Rodrigues chamou de “consolidação de uma nova posição jurídica do recluso”, caracterizada essa nova posição pela restituição do condenado à sua autêntica dimensão humana. Visto o condenado na sua qualidade de cidadão, tornasse ele portador do direito à manutenção de sua dignidade humana. Para a autora, as regras mínimas significaram a passagem, na seara do Direito Penitenciário, das especulações para o campo da legalidade. (FUDOLI apud BAQUEIRO, 2012).
O conjunto de Regras Mínimas não dispõe propriamente sobre sistemas penitenciários, mas sugere procedimentos para o tratamento penal dos reclusos, o que influenciaria as legislações e normatizações dos serviços penitenciários em muitos países.
Assim, foi implantada a base para o desenvolvimento do trabalho digno nas penitenciárias, modelo que seria seguido por muitos países, visando a ressocialização do criminoso e a consequente diminuição dos índices de reincidência. Entretanto, faz-se necessário ressaltar que, malgrado as recomendações da ONU, as penas de trabalho forçado ainda são constantes em alguns países como China e Coreia do Norte.
Importante observar também que, no Brasil, a evolução do trabalho nas prisões se deu mais tardiamente, haja vista que o fim da escravidão e o processo de industrialização só ocorreram no séc. XIX. O trabalho obrigatório, porém remunerado, começou a ser previsto na parte geral do Código Penal de 1940, mas não havia implementação. Esta só se deu com a Lei 7.210 de 1984 (Lei de Execução Penal – LEP), que regula o trabalho dos reclusos e prevê como benefício a remição da pena na proporção de um dia de pena para cada três dias trabalhados.
3 O TRABALHO DOS RECLUSOS NO ATUAL ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
No ordenamento jurídico brasileiro, o trabalho penitenciário está previsto no art. 34 do Código Penal, o qual admite o trabalho apenas no período diurno, ressalvado o repouso no período noturno. O Código Penal ainda estabelece as possibilidades de trabalho externo no regime fechado e no semiaberto.
Mas a regulamentação do trabalho só é realmente efetuada pela Lei de Execução Penal, em seu capítulo III, o qual determina que o trabalho tenha finalidade educativa e produtiva e ressalva a necessidade de precauções relativas à saúde e higiene do trabalho. A LEP estabelece, ainda, que a jornada de trabalho não seja inferior a 6 (seis) horas diárias, nem superior a 8 (oito) horas diárias, com descanso nos domingos e feriados.
Essas, entretanto, são umas das poucas proteções conferidas pela LEP aos presos, a qual traz um regime severo para o trabalhador recluso, regime este que afronta os direitos sociais fundamentais dos trabalhadores urbanos e rurais, resguardados pelo art. 7º da Constituição federal de 1988.
Isso porque, por expressa previsão da LEP, em seus arts. 28 e 29, o regime de trabalho ao qual o preso é submetido não é o regime previsto na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, nem tampouco tem o preso o direito de ser remunerado com um salário mínimo ou pelo piso salarial da categoria cuja função exerça. O recluso pode receber qualquer remuneração, desde que não inferior à ¾ (três quartos) do salário-mínimo.
Como justificativa, os defensores do atual regime afirmam que o trabalho é, na verdade, uma obrigação do condenado, e que, por meio dele, os presos já podem obter o benefício da remição da pena, na proporção de menos um dia de pena para cada três dias de trabalho prestados.
Entretanto, tal justificativa não deve perdurar, pois o trabalho do recluso não é uma obrigação, como dispõe o art. 31 da LEP[1], já que a Constituição federal, em seu art. 5º, XLVII, dispõe, como garantia fundamental, que não haverá penas de trabalhos forçados. Ora, o trabalho do preso não é forçado, pois ele tem a faculdade de executá-lo, ou não; e, no caso de negativa, apenas deixará de receber o benefício da remição. Além disso, os referidos dispositivos da Lei de Execução Penal não podem afastar direitos previstos na Constituição federal, quais sejam o salário-mínimo e o piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho (art. 7º, incisos IV e V, da CRFB). Importante observar, ainda, que esses não são os únicos direitos dos quais os presos são privados.
Como a LEP não exclui nenhum outro direito expressamente, não deveria haver dúvidas acerca da aplicação dos demais direitos trabalhistas previstos no art. 7º da Constituição federal aos reclusos, com as devidas ressalvas, tendo em vista que o adicional por trabalho noturno, por exemplo, não cabe no trabalho prisional, haja vista que o Código Penal só permite o trabalho diurno. No mesmo sentido, não caberia falar em licença paternidade, já que o apenado não poderia deixar o estabelecimento prisional para visitar sua prole.
Ocorre que os condenados são privados da maioria dos direitos trabalhistas previstos no art. 7º da Constituição Federal, como licença gestante, adicional por insalubridade e periculosidade, o décimo terceiro, o gozo de férias remuneradas, entre outros, os quais não são reconhecidos pelo Poder Judiciário, haja vista a omissão da LEP e a descaracterização de relação trabalhista celetista.
Além desses, os presos também são privados de outros direitos constitucionais, como o direito à greve, previsto no art. 9º[2]; já que a Lei de Execução Penal, em seu art. 50, inciso I, o considera falta grave, punível com a perda de até 1/3 (um terço) dos dias remidos pelo preso, além da regressão de regime.A Lei de Execução Penal, portanto, exclui o apenado do regime jurídico da CLT e não o posiciona em um regime jurídico que assegure todos os direitos sociais previstos da Constituição, transformando-o em uma mão de obra barata, fácil de ser explorada e que não atrai consigo todos os encargos trabalhistas, em um flagrante desrespeito aos direitos dos condenados, direitos esses que não deveriam ser afetados, pois não abarcados pela sentença penal condenatória. Acerca da exploração da mão de obra penitenciária, assevera MATURANA (2001):
Ocorre que, em face da notória falência do sistema carcerário nacional, o Estado tem deixado de lado o propósito educativo-regenerativo, para – sob o pálio de combater o ócio –, apenas oferecer mão-de-obra carcerária barata a terceiros, o que o faz em desobediência às normas de regência e em detrimento dos direitos dos próprios encarcerados e dos trabalhadores que compõem a sociedade livre.
Também é esse o quadro destacado por Fernanda Ravazzano Lopes Baqueiro (2012, p. 21), o qual ela denomina de “Terceirização Selvagem”. Segundo ela, as prisões firmam parcerias com entes privados, os quais utilizam a mão de obra carcerária em serviços e obras. Ocorre que a administração dos presídios não realiza nenhuma fiscalização acerca das condições de trabalho. Destarte, os presos são submetidos a péssimas condições de trabalho, perfazendo jornadas de trabalho superiores à prevista na Lei de Execução Penal, sem receber nenhum benefício, e com uma remuneração de apenas ¾ (três quartos) do salário mínimo.
Importante observar, ainda, que a LEP cria restrição do número de presos empregados em obras externas, num limite máximo de 10% (dez por cento) do total de empregados da obra. Entretanto, a Lei 7.210/84 não faz a mesma restrição para a utilização da mão de obra carcerária em serviços, permitindo, assim, que empresas se utilizem totalmente da mão de obra dos presos, sem o devido respeito às normas trabalhistas. Além disso, não há a devida fiscalização por parte da administração pública ou do Ministério Público do Trabalho, de forma que não raro os presos são utilizados em porcentagem superior ao limite estabelecido na LEP (BAQUEIRO, 2012).
Frise-se que a Lei de Execução Penal também viola as Regras Mínimas da ONU para o tratamento dos Reclusos. Os dispositivos de número 73 e 76 da referida normatização da ONU trazem regras importantes acerca da remuneração dos reclusos:
73. 2) Quando os reclusos forem empregues para trabalho não controlado pela administração, devem ser sempre colocados sob vigilância do pessoal penitenciário. Salvo nos casos em que o trabalho seja efetuado por outros departamentos do Estado, as pessoas às quais esse trabalho seja prestado devem pagar à administração a remuneração normal exigível para esse trabalho, tendo, todavia em conta a remuneração auferida pelos reclusos.
76. 1) O tratamento dos reclusos deve ser remunerado de modo eqüitativo.
A exigência de uma remuneração equitativa e equivalente à remuneração exigível para o mesmo tipo de trabalho reflete a regra estabelecida no artigo XXIII, “2”, da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, a qual estabelece que todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.
4 A NÃO RECEPÇÃO DO REGIME DE TRABALHO DOS PRESOS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.
A Constituição de 1988 tem o claro objetivo de implementar um Estado Democrático de Direito no Brasil. Por isso, ela traz um extenso rol de direitos e garantias fundamentais, bem como dispõe, logo em seu art. 1º, que a República Federativa do Brasil tem como fundamento o valor social do trabalho e a dignidade da pessoa humana. Tais princípios e garantias trazidos pela Constituição têm aplicação direta e imediata, e devem prevalecer em relação às normas infraconstitucionais, só podendo ser relativizadas diante de conflito com outras normas constitucionais.
Ocorre que a Lei de Execução Penal entrou em vigor em 1984; anterior, portanto, à promulgação da Constituição federal do Brasil, de 1988. Ocorre que, no que tange à regulamentação do trabalho dos presos, é clara a impossibilidade de recepção da LEP pela Constituição, haja vista que a Lei 7.210/84 afronta direitos e princípios constitucionais da nova ordem jurídica instaurada pela Constituição.
4.1 O Valor Social do Trabalho
A Lei de Execução Penal viola frontalmente o princípio do Valor Social do Trabalho, fundamento da República Federativa do Brasil, previsto no art. 1º, inciso IV, da Constituição federal. O valor social do trabalho decorre da importância do trabalho em si para a sociedade, pois é instrumento de coesão e progressão social, bem como tem poder produtivo e gerador de riquezas.
Ao estabelecer o Valor Social do Trabalho como princípio autônomo, o legislador constituinte reconhece a importância do trabalho para a sociedade brasileira, e, ao mesmo tempo, compromete os futuros legisladores e aplicadores do direito a implementar esse princípio, utilizando-o com função fundamentadora, hermenêutica e supletiva.
Do conteúdo do valor social do trabalho decorre o Direito ao Trabalho, o Dever de Trabalho e, ressalte-se, o Dever de uma retribuição justa, tendo aqui como parâmetro não o agente trabalhador, digno de uma justa remuneração, mas a justa retribuição pelo trabalho que foi realizado, ou seja, a retribuição pelo valor que teve aquele trabalho para a sociedade.
Destarte, quando a LEP prevê um salário a menor para o recluso, está ela afrontando o Valor Social do Trabalho, pois ela retribui, de forma injusta, o trabalho que por ele foi realizado; trabalho este que tem toda uma repercussão positiva na progressão da sociedade.
Além disso, ao afastar do preso o direito ao salário-mínimo, ela faz com que o preso não tenha a percepção do valor social que tem aquele trabalho por ele executado, já que é extremamente mal retribuído. E, ao ser omissa quanto a todos os direitos sociais trabalhistas, a Lei de Execução Penal acaba por transformar o trabalho do recluso apenas num meio de obter a remição penal, retirando dele a noção de que o trabalho é fundamento da sociedade.
4.2 Da Igualdade
Acerca do alcance do princípio da Igualdade, assevera Celso Antônio Bandeira de Mello:
Rezam as constituições - e a brasileira estabelece em seu art. 5º, caput – que todos são iguais perante a lei. Entende-se, em concorde unanimidade, que o alcance do princípio não se restringe a nivelar os cidadãos diante da norma legal posta, mas que a própria lei não pode ser editada em desconformidade com a isonomia. (MELLO, 2004, p. 3)
Ora, se não pode uma lei ser editada em desconformidade com a isonomia prevista na Constituição federal, também não pode a lei antiga permanecer no ordenamento jurídico de viola frontalmente tal princípio. Assim sendo, não pode a Lei de Execução Penal ser recepcionada pela Carta de 1988, no que tange ao regime jurídico de trabalho dos presos, se ela trata de forma diferenciada o trabalhador livre e o trabalhador condenado.
Em justificação do Projeto de Lei nº. 541/2007, de sua autoria, o deputado Lelo Coimbra destaca a igualdade como principal razão para o pagamento de salário-mínimo aos reclusos que realizam atividades laborativas: “O esforço despendido pelo preso, na sua atividade laboral, não pode ser recompensado de forma desigual, simplesmente pela sua condição de condenado. Para isto, já existe a pena, com a função punitiva pelo delito cometido”.Tal argumento impõe não só a necessidade de pagamento de salário-mínimo aos reclusos trabalhadores, mas também a necessidade de pagamento do piso salarial correspondente à função exercida, ou, de outra forma, pessoas que exercem as mesmas atividades receberiam remunerações extremamente desproporcionais, pelo único fato de uma estar livre, e a outra condenada a pena privativa de liberdade.
Interessante observar que, em décadas passadas, seja por questões sociais, seja pela impunidade nas classes mais abastadas, a população carcerária era predominantemente analfabeta, tendo a maioria dos presos o mesmo nível de escolaridade e formação. Hoje, entretanto, a situação mudou um pouco, sendo mais comum encontrar-se reclusos que tenham formação em cursos técnicos e de ensino superior, os quais, se exercerem a profissão para o qual são capacitados, deverão ter direito ao piso salarial da categoria correspondente.
É o caso, por exemplo, de uma condenada que, tendo se formado em enfermagem, agora trabalhe junto à enfermaria da penitenciária. A remuneração justa por tal serviço não é o salário-mínimo, nem tampouco 3/4 (três quartos) do salário-mínimo previsto na LEP, e sim a remuneração prevista como piso para o exercício de tal profissão.
Faz-se necessário, ainda, ressaltar que o princípio da igualdade tem importantes repercussões no Direito do Trabalho, garantindo que não haja discriminação na relação de emprego, seja por idade, raça, sexo ou orientação sexual, bem como garantindo que a todo trabalho de igual valor, corresponderá salário igual.
4.2.1 Da Equiparação Salarial
A equiparação salarial é evidente repercussão do princípio constitucional da igualdade, e está prevista no art. 461 da Consolidação das Leis do Trabalho, bem como é objeto da Súmula nº 06 do Tribunal Superior do Trabalho. Ela determina que, sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, na mesma localidade, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, nacionalidade ou idade.
Como trabalho de igual valor, entende-se aquele realizado no mesmo período, com igual produtividade e com a mesma perfeição técnica, entre pessoas cuja diferença de serviço não for superior a dois anos. Apesar dos presos não estarem submetidos ao regime da CLT, essa regra deve ser tomada como fundamento para que seu trabalho, com mesmo valor e produtividade que o trabalho dos cidadãos livres, seja objeto da mesma remuneração, ou estar-se-ia diante de uma violação ao princípio da igualdade.
Saliente-se que o artigo XXIII, “2”, da Declaração Universal dos Direitos Humanos também estabelece que “Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho”.
Ora, a equiparação salarial revela que o fator determinante para a remuneração é o valor (produtividade) do trabalho exercido e não quem o exerce, de forma que não deve haver diferença remuneratória por circunstâncias pessoais do agente (sexo, idade, nacionalidade, ou, ainda, estar ou não cumprindo condenação penal).
Um dos principais motivos para que haja essa diferença salarial é a necessidade de atrair interesses dos agentes privados na contratação da mão de obra de presidiários. Entretanto, não se mostra razoável manter em nosso ordenamento uma norma claramente inconstitucional apenas para atrair tais contratações.
Muito mais plausível se mostra a implementação do trabalho dos presos através da criação de cotas em grandes empresas, do incentivo fiscal, ou ainda de atuações em parceria com o Projeto Começar de Novo, do Conselho Nacional de Justiça, bem como com o Ministério Público do Trabalho. Outro exemplo de inciativa para promoção do trabalho dos presos poderia ser realizada através de reformas à Lei 8.666/1993, acrescentando hipóteses de critérios de desempate ou preferência para empresas que contenham um percentual de mão de obra oriunda do sistema penitenciário.
5 CONCLUSÕES
Em princípio, conclui-se que a Lei de Execução Penal, no que tange ao regime de trabalho dos presos, é incompatível com o ordenamento jurídico pós-Constituição federal de 1988 e com a concepção axiológica de trabalho humano estabelecida por ela.
A legislação vigente desrespeita o preso enquanto trabalhador, bem como desrespeita o valor social do trabalho por ele realizado, sujeitando os reclusos a uma relação de trabalho severa, que beneficia apenas agentes públicos e privados, interessados em adquirir mão de obra barata. Negar os direitos sociais fundamentais aos presos é negar a própria condição humana dos condenados à pena privativa de liberdade, haja vista que os direitos sociais trabalhistas são garantidos pela Constituição federal a todos os cidadãos.
A violação do princípio estruturante do valor social do trabalho ocorre de forma direta, pois não é observado o dever de uma justa remuneração, dever esse que decorre do referido princípio. Assim, o preso não tem a percepção devida acerca do valor social daquele trabalho por ele executado, já que é extremamente mal retribuído – financeiramente e em direitos. O presidiário enxerga o trabalho de forma utilitarista, apenas como um meio para garantir a redução da pena. O trabalho é transformado, assim, em um meio de se garantir a remição.
Ademais, remunerar o trabalhador preso com salário menor do que aquele atribuído ao trabalhador livre que realiza trabalho de igual valor implica em ofensa direta ao princípio constitucional da igualdade.
Entretanto, apesar da evidente incompatibilidade, a Lei de Execução Penal continua vigente, produzindo efeitos como se válida fosse e culminando numa grave exploração da mão de obra carcerária pelas empresas privadas e pelo Estado, os quais se aproveitam da mão de obra barata dos presos, sob a qual não recaem encargos trabalhistas.
Nesse contexto, deve ser suspensa a aplicação os dispositivos da LEP que afrontam diretamente a Constituição federal, pois, com a promulgação da mesma, eles foram automaticamente revogados.
Assim, tendo em vista a não recepção do regime de trabalho dos presos pela Constituição de 1988, conclui-se que devem ser estendidos ao regime de trabalho dos presos todos os direitos e garantias trabalhistas estabelecidos pela Constituição, ainda que não haja modificação na Lei de Execução Penal, haja vista que os direitos fundamentais possuem aplicabilidade imediata.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSALY, Alfredo Issa. O Trabalho Penitenciário: Aspectos Econômicos e Sociais. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1934.
BAQUEIRO, Fernanda Ravazzano Lopes. Da necessidade de declaração e respeito aos direitos trabalhistas dos presos e o papel do Ministério Público do Trabalho no combate à exploração da mão de obra carcerária. Disponível em: <http://www.baqueiroravazzano.adv.br/page3.html>. Acesso em: 11 nov. 2013.
CARVALHO, Robson Augusto Mata. Cotidiano Encarcerado: o tempo como pena e o trabalho como “prêmio”. São Paulo: Conceito Editorial, 2011.
MATURANA, José Fernando Ruiz. Considerações sobre o trabalho do preso. Revista de Direito do Trabalho, nº 105, Curitiba: Genesis, 2001.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. 12. tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.
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PAULA, Gáudio Ribeiro de; OLIVEIRA, Maxwel Caixeta de; OLIVEIRA, Maxwel Caixeta de; PAULA, Gáudio Ribeiro de. O Trabalho do Preso e seus Direitos: Uma Perspectiva da Situação no Distrito Federal. Universo Jurídico, Juiz de Fora, ano XI, 25 de out. de 2007.
[1] Art. 31. O condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de suas aptidões e capacidade.
[2] Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.
Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Pós-graduanda em Tutela Coletiva e Direitos Difusos pela Universidade Anhanguera – LFG. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, YASMIN SOUZA DA. O trabalho penitenciário à luz da Constituição Federal de 1988 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 set 2019, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53467/o-trabalho-penitencirio-luz-da-constituio-federal-de-1988. Acesso em: 26 nov 2024.
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
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