RESUMO: Este artigo foi escrito com o intuito de analisar a constitucionalidade do enunciado da Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça. Far-se-á uma análise do sistema de dosimetria penal vigente no Código Penal brasileiro, bem como uma análise crítica acerca da Súmula 231 do STJ. Em seguida, discorrer-se-á sobre eventual violação ao princípio da individualização da pena e ao princípio da isonomia, considerando os posicionamentos doutrinários sobre o tema.
Palavras-Chave: Superior Tribunal de Justiça. Individualização da Pena. Isonomia. Súmula 231 do STJ.
ABSTRACT: This paper was written with the intention of analysing the constitutionality of the precedent 231 from the Superior Court of Justice. A analysis will be made of the Brazilian criminal dosimetry system, as well as a critical analysis of STJ precedent 231. Then, it will be discussed about the possible violation of the principle of legal individualization and the principle of isonomy, considering the doctrinal positions on the subject.
Keywords: Superior Court of Justice. Legal Individualization. Isonomy, Precedents. Precedent 231.
Sumário: 1. Introdução; 2. Da Dosimetria da Pena; 3. Da Súmula 231 do STJ; 4. Dos Princípios da Individualização da Pena e da Isonomia; 5. Considerações Finais; 6. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
O art. 68 do Código Penal Brasileiro adotou o sistema trifásico para o cálculo da dosimetria da pena. Referido método considera, em três fases distintas, as circunstâncias judiciais, as agravantes e atenuantes, e, por fim, as causas de aumento e diminuição incidentes no caso concreto, visando assim adequar a pena ao princípio constitucional da individualização da pena (art. 5º, XLVI da CRFB), bem como viabilizar o exercício do direito de defesa (CUNHA, 2018, p. 466).
Dentro desse espectro, far-se-á inicialmente uma análise das fases da dosimetria da pena, ou seja, da aplicação das circunstâncias judiciais trazidas pelo art. 59 do CP, das circunstâncias atenuantes (presentes nos arts. 65 e 66 do CP) e agravantes (presentes nos arts. 61 e 62 do CP), e das causas de aumento e de diminuição de pena.
É na segunda fase que ocorre a incidência da Súmula 231 do STJ, ao estabelecer que “a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal[RN1] ”. Destarte, far-se-á uma análise crítica dos precedentes que ensejaram a edição do enunciado da Súmula 231 do STJ, considerando o entendimento doutrinário divergente acerca do tema.
Por fim, analisar-se-á a ocorrência de eventual violação aos princípios da isonomia e da individualização da pena, expondo o entendimento doutrinário acerca do tema.
2 DA DOSIMETRIA DA PENA
Assim como a sociedade, o Direito também passa por transformações com o decorrer do tempo, não sendo estanque. É claro que aqui as transformações ocorrem de forma mais lenta, até pelo fato de que toda transformação jurídica é oriunda de um anseio social a partir do qual se percebe que determinada norma já está ultrapassada, ou então que há a necessidade de uma nova normatização.
O que existia no mundo, até finais do século XIX, era um Direito Penal que não estabelecia limites para a determinação da sanção penal. No entanto, tal metodologia de aplicação de pena acabava gerando insegurança jurídica e ia de encontro às garantias e aos direitos fundamentais. Assim, o período anterior ao iluminismo ficou marcado por um arbítrio judicial demasiado (BITENCOURT, 2018, p.1216).
Com o iluminismo, e em contrapartida à realidade até então existente, surgiram correntes que acabaram gerando um engessamento dos juízes na aplicação da lei. Ou seja, os juízes exerciam um papel de meros aplicadores da lei, sem a possibilidade de analisá-la e interpretá-la conforme o caso concreto. O sistema de penas que surgiu neste momento, rigorosamente determinado pelo Código Francês de 1791, era um sistema de “absoluta determinação”, independente da realidade social do acusado, ou do contexto fático de cada caso prático (BITENCOURT, 2018, p.1217).
Neste contexto, percebeu-se que o sistema de absoluta disposição da pena pela determinação do magistrado era tão indesejado quanto o sistema de absoluta determinação, sem espaço para disposição do juiz, estando ele completamente adstrito às disposições legais.
A partir disso, chegou-se a um sistema intermediário, o qual estabelecia limites mínimos e máximos de determinação da pena, mas dentro dos quais poderia o juiz, a partir da interpretação e aplicação da lei no caso concreto, variar a aplicação da pena, adequando às circunstâncias, condições pessoais e consequências do delito e do agente em análise. Acerca do tema, destaca Cezar Roberto Bitencourt (2018, p. 1218):
Essa constatação determinou a evolução para uma indeterminação relativa: nem determinação absoluta, nem absoluta indeterminação. Finalmente, abriu-se um grande crédito à livre dosagem da pena, pelo juiz, estabelecendo o Código Penal francês de 1810 limites mínimo e máximo, entre os quais pode variar a mensuração da pena. Essa concepção foi o ponto de partida para as legislações modernas, fixando os limites dentre os quais o juiz deve — pelo princípio do livre convencimento — estabelecer fundamentadamente a pena aplicável ao caso concreto.
É iniciado assim um sistema de individualização da pena, o qual traz a possibilidade de o juiz ter a discricionariedade de, individualmente, a depender dos fatores envolvidos dentro da realidade fática dos atos ilícitos praticados, bem como da realidade pessoal de cada agente, aplicar a pena correspondente, dentro de um parâmetro legal prévio.
Frise-se que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, XLVI, trouxe expressamente a ideia de que a pena deverá ser individualizada, senão vejamos: “Art.5º.[...] XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: [...]”.
Ao falar em pena, está a Constituição se referindo a uma sanção penal destinada a pessoa que foi condenada, em razão da prática d uma infração penal, com o objetivo de retribuição pelo crime praticado e de prevenção da prática de outra conduta delituosa. Ao determinar a necessidade de individualização, está a Carta Maior exigindo que, no momento da aplicação da pena, sejam considerados aspectos do delito, de quem o cometeu e das circunstâncias envolvidas.
A individualização da pena determinada pela Constituição Federal de 1988 possui três aspectos distintos, que se manifestam em diferentes momentos (BITENCOURT, 2018, p. 1217-1218). Inicialmente, há uma individualização efetuada pelo próprio legislador ordinário, determinando-se os limites máximos e mínimos e critérios de fixação da pena, a depender do grau de relevância do bem jurídico tutelado.
Neste momento, é fundamental um juízo de proporcionalidade acerca do bem jurídico tutelado e da pena que será imposta. Quanto mais relevante o bem afetado, maior deverá ser a pena in abstrato prevista pelo legislador. Neste sentido, destaque o entendimento de Bitencourt (2018, p. 93):
Conjuga-se, pois, a união harmônica de três fatores essenciais: a) adequação teleológica: todo ato estatal passa a ter uma finalidade política ditada não por princípios do próprio administrador, legislador ou juiz, mas sim por valores éticos deduzidos da Constituição Federal — vedação do arbítrio (Ubermassverbot); b) necessidade (Erforderlichkeit): o meio não pode exceder os limites indispensáveis e menos lesivos possíveis à conservação do fim legítimo que se pretende; c) proporcionalidade “stricto sensu”: todo representante do Estado está, ao mesmo tempo, obrigado a fazer uso de meios adequados e de abster-se de utilizar meios ou recursos desproporcionais.
Em um segundo momento, será realizada uma individualização judicial, que é a que ocorre no momento da sentença Esta será realizada de acordo com os parâmetros do Código Penal para fixação da pena, bem como de acordo com a pena mínima e máxima indicada pelo legislador para o delito praticado.
Por fim, seguindo a determinação constitucional, deverá haver também uma individualização executória ou administrativa, que é aquela que ocorre no momento do cumprimento de pena. Tal individualização está prevista no art. 5º da Lei de Execução Penal, e ocorrerá conforme os antecedentes e personalidade do condenado, fatores que influenciarão nas permissões de saída, na progressão de regime e na concessão do livramento condicional.
Acerca dos momentos de individualização da sanção penal, destaque-se o entendimento de Cléber Masson (2018, p. 50):
No prisma legislativo, é respeitado quando o legislador descreve o tipo penal e estabelece as sanções adequadas, indicando precisamente seus limites, mínimo e máximo, e também as circunstâncias aptas a aumentar ou diminuir as reprimendas cabíveis. A individualização judicial (ou jurisdicional) complementa a legislativa, pois esta não pode ser extremamente detalhista nem é capaz de prever todas as situações da vida concreta que possam aumentar ou diminuir a sanção penal. É efetivada pelo magistrado, mediante a aplicação da pena, utilizando-se de todos os instrumentais fornecidos pelos autos da ação penal, em obediência ao sistema trifásico delineado pelo art. 68 do Código Penal (pena privativa de liberdade), ou ainda ao sistema bifásico inerente à sanção pecuniária (CP, art. 49). Finalmente, a individualização administrativa é efetuada durante a execução da pena, quando o Estado deve zelar por cada condenado de forma singular, mediante tratamento penitenciário ou sistema alternativo no qual se afigure possível a integral realização das finalidades da pena: retribuição, prevenção (geral e especial) e ressocialização.
Quanto aos critérios de individualização da pena adotados pelo Brasil, Masson (2018, p. 705-706) destaca que, no Direito Penal brasileiro, há dois sistemas principais: o critério bifásico e o critério trifásico. O primeiro, idealizado por Roberto Lyra, prevê que a pena deverá ser calculada em duas fases. Na primeira, a pena base seria fixada considerando as circunstâncias judiciais e as atenuantes e agravantes. Num segundo momento, incidiriam as causas de aumento e diminuição de pena.
Já o critério trifásico, elaborado por Nelson Hungria, sustenta que a pena deverá ser calculada em três fases. Na fixação da pena base, seriam consideradas apenas as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal. Posteriormente, incidiriam as atenuantes e agravantes, e então, na terceira fase, as causas de aumento e diminuição de pena.
Segundo a doutrina amplamente majoritária, o art. 68 do Código Penal adotou o critério trifásico para aplicação da pena privativa de liberdade, ao passo em que, para a pena de multa, foi adotado o critério bifásico (art. 49, § 1º, do CP). Assim, atualmente, no Brasil, a pena é calculada em três fases distintas.
No primeiro momento, o juiz deverá fixar a pena base com fulcro no art. 59 do Código Penal, levando em consideração a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima. Considerando os critérios previstos pela lei, deverá o juiz estabelecer a pena base, sem ultrapassar o limite máximo e nem o limite mínimo previsto no tipo penal pelo legislador.
Num segundo momento, o juiz poderá reduzir ou aumentar a pena base aplicada, de acordo com a presença ou não de circunstâncias agravantes ou atenuantes previstas nos art. 61, 62, 63, 65 e 66 do Código Penal. As referidas circunstâncias legais podem ser de natureza objetiva (de acordo com o fato) ou subjetiva (de acordo com o agente), não integram a estrutura do tipo penal e são de aplicação compulsória pelo magistrado (MASSON, 2018, p. 723-724).
Quanto às agravantes, estas estão previstas em um rol taxativo, não podendo o juiz considerar como agravante circunstância não prevista no Código Penal ou na legislação especial. Já as atenuantes estão previstas em um rol exemplificativo, na medida em que o art. 66 do Código Penal possibilita que qualquer circunstância favorável ao réu, anterior ou posterior ao crime, seja considerado pelo magistrado para reduzir a pena base fixada. Exemplificando, Damásio de Jesus afirma que o juiz deverá considerar circunstâncias como ser o “réu portador de doença incurável, influência religiosa, ser portador de defeito físico relevante” etc. (2014, p. 278).
Por fim, na terceira fase de dosimetria da pena, o julgador irá avaliar as minorantes (causas de diminuição de pena) e as majorantes (causas de aumento de pena) previstas na parte geral ou na parte especial do Código Penal ou da legislação especial, aplicando as frações correspondentes à obtida após a segunda fase da dosimetria, ou seja, à pena intermediária. Chegar-se-á, assim, à pena definitiva aplicável ao caso concreto.
Conforme narrado, é na segunda fase da dosimetria da pena que são avaliadas as circunstâncias atenuantes e agravantes, de modo a reduzir ou aumentar a pena base anteriormente fixada pelo juiz na primeira fase do cálculo da pena.
No entanto, por vedação expressa da Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça, a incidência de circunstancias atenuantes não poderá reduzir a pena abaixo do mínimo legal previsto abstratamente pelo legislador para o delito praticado, o que gera uma controvérsia doutrinária acerca da constitucionalidade da referida Súmula.
3 DA SÚMULA 231 DO STJ
O enunciado da Súmula 231 foi publicado em 15 de outubro de 1999 pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, e seu enunciado dispõe: “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal.”
O referido enunciado de Súmula não possui caráter vinculante. Contudo, vem sendo aplicado de forma amplamente majoritária pelos Tribunais pátrios, bem como defendida pela doutrina majoritária. O conteúdo do enunciado determina que, na segunda fase de dosimetria da pena, ainda que presentes circunstâncias atenuantes aptas a reduzir a pena base obtida na primeira fase, esta não poderá ser reduzida aquém da pena mínima em abstrato prevista pelo legislador para o tipo penal em análise.
Ou seja, se num determinado caso concreto, considerando a inexistência de circunstâncias judiciais desfavoráveis e a existência de circunstâncias judiciais favoráveis (art. 59 do CP), o juiz fixou a pena base no mínimo legal, ainda que incidam atenuantes como a confissão espontânea, a menoridade relativa ou a existência de coação à qual podia resistir, não poderá o juiz reduzir a pena base anteriormente fixada, devendo assim desconsiderar as circunstâncias atenuantes existentes no caso concreto.
Ocorre que o artigo 65 do Código Penal estipula, sem qualquer ressalva, que a pena será atenuada sempre que for constatada a presença de uma das circunstâncias ali previstas, nos seguintes termos (grifo nosso): “Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) […]”. Malgrado não haja ressalvas acerca da impossibilidade de aplicação da atenuante, o Superior Tribunal de Justiça entende que estas não serão aplicáveis caso reduzam a pena abaixo do mínimo legal. Em uma análise crítica acerca dos precedentes que determinaram a edição da Súmula 231 do STJ, Aline Cássia Bozza (2014, p. 41-42, grifo nosso) afirma:
O mais antigo, o REsp 7.287/PR (Rel. Ministro Willian Patterson, Sexta Turma, julgado em 16/04/1991, DJ 06/05/1991). O recurso foi interposto contra decisão que diminuiu a pena abaixo do mínimo em virtude da incidência de uma circunstância atenuante. No voto, o recorrente afirma que em nenhum momento da história foi permitido estabelecer pena inferior ao mínimo legal por causa de uma atenuante. O Relator citou trechos do recurso, em que o recorrente diz não ser possível agravantes e atenuantes levaram a pena para fora dos limites mínimos e máximos estabelecidos. Para isso fez referência a Damásio de Jesus (Direito Penal, vol. 1, p. 506, 1985) “em face de uma circunstância agravante ou atenuante, nem sempre a aplicação de seu efeito é obrigatória. Isso porque, tratando-se de circunstâncias legais genéricas, a pena não pode ser fixada aquém do mínimo ou além do máximo”. […] Passa-se a análise desse julgado. Inicialmente, mesmo que estivesse exato o primeiro argumento colacionado, o qual afirma que nunca na história fora permitido aplicar uma circunstância atenuante quando a pena base estivesse no mínimo, apenas o fato de isso nunca ter ocorrido não pode ser motivo capaz de impedir que se reveja o tema, estudando-o de acordo com a Constituição Federal de 1988, e seus princípios norteadores, pois o direito está em constante desenvolvimento. As doutrinas citadas nesse julgado se limitaram a afirmar que as circunstâncias atenuantes não podem incidir quando a pena base encontra-se no mínimo legal. Desta forma, não houve sequer alguma explicação jurídica que justificasse a ocorrência de tal afirmação. Em um ordenamento como é o brasileiro, pautado no princípio da legalidade, tal afirmação feita da maneira como foi, só seria possível se houvesse lei expressamente determinado essa imposição.
A autora (BOZZA, 2014, p. 47) afirma que nos recursos que foram utilizados para a edição da Súmula, um dos principais argumentos utilizados pelos Ministros do STJ era que, “ao incidir uma circunstância atenuante quando a pena estivesse no patamar mínimo, estaria ocorrendo uma interferência entre os poderes, pois era o Legislativo quem ditava a pena, e o Judiciário não poderia de forma alguma diminuí-la”. Porém, salienta que os próprios ministros reconheciam não haver proibição legal para tal redução (BOZZA, 2014, p. 51)
Numa análise detida dos diversos precedentes que foram considerados para edição da Súmula 231 do STJ, Bozza (2014, p. 54) conclui que os argumentos utilizados nos votos que serviram de precedentes carecem de fundamentação condizente com a Constituição Federal de 1988, ignoram os princípios trazidos pela Carta Magna, bem como não trazem explicação jurídica suficiente para o entendimento.
Assim, a autora entende que a referida Súmula é inconstitucional, pois viola o princípio da individualização da pena, da culpabilidade e da legalidade. Com posicionamento também contrário à Súmula 231 do STJ, Rogério Greco, ex-Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais, expõe que (2017, p. 314):
Objeto de muita discussão tem sido a possibilidade de se reduzir a pena-base aquém do mínimo ou de aumentá-la além do máximo nesse segundo momento de fixação da pena. O STJ, por intermédio da Súmula nº 231, expressou o seu posicionamento no sentido de que a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal. Essa, infelizmente, tem sido a posição da maioria de nossos autores, bem como de nossos tribunais, que, numa interpretação contra legem, não permitem a redução da pena base, em virtude da existência de uma circunstância atenuante, se aquela tiver sido fixada em seu patamar mínimo. […] Dissemos que tal interpretação é contrária à lei porque o art. 65 não excepciona sua aplicação aos casos em que a pena-base tenha sido fixada acima do mínimo legal. Pelo contrário. O mencionado artigo afirma, categoricamente, que são circunstâncias que sempre atenuam a pena. Por que razão utilizaria o legislador o advérbio sempre se fosse sua intenção deixar de aplicar a redução, em virtude da existência de uma circunstância atenuante, quando a pena- -base fosse fixada em seu grau mínimo?
Também discorrendo sobre o tema, Paulo Queiroz (apud BOZZA, 2014, p.47). ensina que “o que realmente importa é aplicar uma pena justa pra o caso, proporcional ao delito, conforme as múltiplas e variáveis que o envolvem, e fundamentalmente, ainda que para tanto tenha de fixá-la aquém do mínimo legal.”
Em crítica mais aflorada ao enunciado da Súmula 231 do STJ, Bitencourt (2018, p. 1242-1243) afirma:
Enfim, deixar de aplicar uma circunstância atenuante para não trazer a pena para aquém do mínimo cominado nega vigência ao disposto no art. 65 do CP, que não condiciona a sua incidência a esse limite, violando o direito público subjetivo do condenado à pena justa, legal e individualizada. Essa ilegalidade, deixando de aplicar norma de ordem pública, caracteriza uma inconstitucionalidade manifesta. Em síntese, não há lei proibindo que, em decorrência do reconhecimento de circunstância atenuante, possa ficar aquém do mínimo cominado. Pelo contrário, há lei que determina (art. 65), peremptoriamente, a diminuição da pena em razão de uma atenuante, sem condicionar seu reconhecimento a nenhum limite; e, por outro lado, reconhecê-la na decisão condenatória (sentença ou acórdão), somente para evitar nulidade, mas deixar de efetuar sua atenuação, é uma farsa, para não dizer fraude, que viola o princípio da reserva legal. Seria igualmente desabonador fixar a pena-base acima do mínimo legal, ao contrário do que as circunstâncias judiciais estão a recomendar, somente para simular, na segunda fase, o reconhecimento de atenuante, previamente conhecida do julgador. Não é, convenhamos, uma operação moralmente recomendável, beirando a falsidade ideológica.
No entanto, a doutrina majoritária é consonante com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, defendendo a legalidade da Súmula 231. Neste sentido, é o entendimento defendido por Guilherme de Souza Nucci (2017, p. 909):
Utilizando o raciocínio de que as atenuantes, segundo preceito legal, devem sempre servir para reduzir a pena (art. 65, CP), alguns penalistas têm defendido que seria possível romper o mínimo legal quando se tratar de aplicar alguma atenuante a que faça jus o réu. […] Parece-nos incorreta essa visão, pois as atenuantes não fazem parte do tipo penal, de modo que não têm o condão de promover a redução da pena abaixo do mínimo legal. O mesmo se dá com as agravantes. Quando o legislador fixou, em abstrato, o mínimo e o máximo para o crime, obrigou o juiz a movimentar-se dentro desses parâmetros, sem possibilidade de ultrapassá-los, salvo quando a própria lei estabelecer causas de aumento ou de diminuição. Estas, por sua vez, fazem parte da estrutura típica do delito, de modo que o juiz nada mais faz do que seguir orientação do próprio legislador.
No mesmo sentido é a doutrina de Lycurgo de Castro Santos (O princípio de legalidade no moderno direito penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 15/182, apud NUCCI, 2017, p. 909-910):
Com efeito, dois são os motivos pelos quais não se pode admitir tal individualização da pena abaixo do mínimo legal: em primeiro lugar contraria o princípio da legalidade, já que a pena mínima estabelecida pelo legislador é o limite mínimo a partir do qual a pena pelo injusto culpável cumpre seus pressupostos de prevenção especial e geral. Em segundo lugar, a adoção do critério de rebaixar a pena aquém do marco mínimo traz consigo um perigo, desde o ponto de vista político criminal, à segurança jurídica.
Neste contexto, conclui-se que, malgrado as crescentes críticas da doutrina acerca da inconstitucionalidade da Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça, esta vem sendo aplicada de forma majoritária pelos Tribunais pátrios. Como fundamento, consideram os defensores que, a redução da pena aquém dos limites fixados pelo legislador, supostamente implicaria em violação à legalidade e ao princípio da separação dos poderes, bem como possibilitaria ao juiz uma maior discricionariedade na aplicação da pena.
4. DOS PRINCÍPIOS DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA E DA ISONOMIA
Malgrado a aplicação majoritária do enunciado da Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça pelos tribunais pátrios, é possível observar que a aplicação da referida orientação implica em violação aos princípios constitucionais da individualização da pena (art. 5º, XLVI, CRFB) e da isonomia (art. 5º, caput, CRFB).
Ora, o princípio da individualização da pena – consectário do princípio da igualdade material – determina que as singularidades do indivíduo e do fato a ele imputado devem ser consideradas quando do momento da aplicação da pena.
Neste contexto, a aplicação da Súmula 231 do STJ desrespeita a garantia da individualização da pena, na medida em que impede que o julgador de considerar as particularidades do caso concreto, adequando assim a pena ao merecimento do agente. Destarte, a aplicação da Súmula contribui para uma punição desproporcional e mais gravosa do que a efetivamente merecida (FREIRE, 2016, p. 27).
É exatamente nessa perspectiva que fica evidenciada a inconstitucionalidade da Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça, pois ela não permite uma verdadeira individualização da pena. Basta considerar o fato de que ela poderá acarretar com que uma pessoa acabe por ser penalizada de forma desproporcional quando comparada com outro indivíduo que, apresentando mais circunstâncias desfavoráveis, acabará com a mesma pena.
A referida Súmula também viola o princípio constitucional da isonomia, em seu caráter material. A igualdade material determina que todos os seres humanos recebam tratamento igual caso estejam na mesma situação fática, ao passo em que,se as situações forem distintas, deverão ser tratadas de formas diferentes.
Acerca do princípio da igualdade, ensina José Afonso da Silva (2014, p. 216-217):
Nossas constituições, desde o Império, inscreveram o princípio da igualdade, como igualdade perante a lei, enunciado que, na sua literalidade, se confunde com a mera isonomia formal, no sentido de que a lei e sua aplicação tratam a todos igualmente, sem levar em conta as distinções de grupos. A compreensão do dispositivo vigente, nos termos do art. 5º, caput, não deve ser assim tão estreita. O intérprete há que aferi-lo com outras normas constitucionais, conforme apontamos supra e, especialmente, com as exigências da justiça social, objetivo da ordem econômica e da ordem social. Considerá-lo-emos como isonomia formal para diferenciá-lo da isonomia material, traduzido no art. 7º, XXX e XXXI, que já indicamos no n. 1 supra.
A Constituição procura aproximar os dois tipos de isonomia, na medida em que não se limitara ao simples enunciado da igualdade perante a lei; menciona também igualdade entre homens e mulheres e acrescenta vedações a distinção de qualquer natureza e qualquer forma de discriminação.
Nesse sentido, percebe-se que além da afronta ao princípio da individualização da pena, a Súmula 231 também afronta o princípio constitucional da isonomia, dado o fato de tratar de forma igual réus que se encontram em situações distintas.
A aplicação da referida orientação do STJ acaba por gerar situações completamente contraditórias. Basta imaginar, por exemplo, o caso de duas pessoas (A e B) terem cometido o crime de roubo simples, tendo ambos menos de 21 (vinte e um) anos e tendo ambos confessado o crime em juízo. No entanto, A apresenta antecedentes criminais como circunstância judicial desfavorável, ao passo em que B não apresenta nenhuma circunstância judicial desfavorável.
Ocorre que, na aferição da dosimetria, o juízo verifica que a pena base de A seria 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses em decorrência dos antecedentes, mas seria reduzida para 4 (quatro) anos em razão da incidência das atenuantes. Já para B, tanto a pena base quanto a pena definitiva ficariam em 4 (quatro) anos, tendo em vista que, em decorrência da Súmula 231 não seria possível a redução da pena aquém do mínimo legal.
Trata-se, portanto, de evidente afronta ao princípio da individualização da pena e da igualdade material, na medida em que a conduta de A, malgrado mereça uma reprovação maior, receberá o mesmo tratamento da conduta de B, o qual não possuía nenhuma circunstância desfavorável.
No mesmo sentido, e citando exemplo narrada no artigo de Letícia Caixeta Lima Bossi e Gylliard Matos Fontecelle, destaca Pedro Fellipe Araújo Freire (2016, p. 27):
“Dois furtos cometidos por pessoas diferentes. A primeira praticou o crime sem a presença de qualquer circunstância legal, seja atenuante ou agravante. A outra, por sua vez, era menor de 21 anos ao tempo da ação (Art. 65, I, CP), furtou para alimentar seu filho que se encontrava desnutrido (Art. 65, III, a, CP) e confessou espontaneamente a prática do delito (Art. 65, III, d, CP). Em sentença penal condenatória, ambos tiveram a pena base fixada em seu mínimo. No entanto, o segundo agente não se viu beneficiado por três circunstâncias atenuantes, justamente em razão do disposto na Súmula 231 do STJ”. E concluem: “Nota-se, ainda, que a aplicação da Súmula nega ao acusado o direito de ver-se beneficiado com uma circunstância atenuante, que é de aplicação obrigatória, fazendo com que réus em situações distintas, tenham tratamentos iguais”. Diante do exemplo, indaga-se: merece o indivíduo que furtou para alimentar os filhos, confessou o fato e era menos de 21 anos, receber a mesma pena que o indivíduo que não faz jus a nenhuma circunstância atenuante? Nos parece que não.
Destarte, não resta dúvidas de que a incidência da Súmula 231 do STJ, a depender do caso concreto, acaba gerando situações de evidente afronta aos princípios da igualdade e da individualização da pena, ensejando assim o seu afastamento, sob pena de afronta aos referidos princípios. Neste sentido, destaque-se o entendimento de Rogério Sanches Cunha (2016, p. 419):
Esta orientação, no entanto, merece críticas, pois, não existindo previsão legal, a proibição viola a legalidade. Aliás, não permitir ao juiz reduzir a pena intermediária aquém do mínimo quando diante de uma atenuante, significa impedi-lo de individualizar a reprimenda, culminando, não raras vezes, por tratar sentenciados com condições distintas, com penas iguais (afrontando a isonomia).
Neste sentido, Juarez Cirino dos Santos (2014, p. 563-564) destaca que a aplicação da referida Súmula também implicaria em violação da legalidade, bem como configuraria analogia in malam partem, a qual é vedada em nosso ordenamento jurídico:
Não obstante, crescente posição minoritária admite atenuação da pena abaixo do mínimo da pena cominada, por duas razões principais: primeiro, não existe nenhuma proibição legal contra atenuar a pena abaixo do mínimo legal, porque o princípio da legalidade garante a liberdade do indivíduo contra o poder punitivo do Estado - e não o poder punitivo do Estado contra a liberdade do indivíduo; segundo, o critério dominante quebra o princípio da igualdade legal (no concurso de pessoas, o co-réu menor de 21 anos é prejudicado pela fixação da pena no mínimo legal, com base nas circunstâncias judiciais), porque direitos definidos em lei não podem ser suprimidos por aplicação invertida do princípio da legalidade. Aliás, a proibição de reduzir a pena abaixo do limite mínimo cominado, na hipótese de circunstâncias atenuantes obrigatórias, constitui analogia in malam partem, fundada na proibição de circunstâncias agravantes excederem o limite máximo da pena cominada - precisamente aquele processo de integração do Direito Penal proibido pelo princípio da legalidade. Mais não é preciso dizer.
Portanto, conclui-se que malgrado o entendimento doutrinário em contrário, que considera que a redução da pena abaixo do mínimo legal implicaria em violação à legalidade e a separação dos poder, tem-se que uma leitura do art. 65 do Código Penal, seja em sua literalidade, seja através de uma leitura pelo filtro constitucional – de cunho protetivo e garantista – revela a inconstitucionalidade da Súmula 231 do STJ, a qual viola os princípios da individualização da pena e da igualdade.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise feita, verifica-se que a Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça gera intensa controvérsia doutrinária, malgrado sua aplicação recorrente nos Tribunais pátrios. Isto porque, de um lado, os defensores da Súmula alegam que a redução da pena aquém do mínimo fixado pelo legislador no tipo penal implicaria em violação á legalidade e à separação dos poderes. De outro lado, é sustentada a violação sobretudo ao princípio da igualdade e da individualização da pena, ambos de cunho constitucional.
Ocorre que é perceptível a referida Súmula implica em violação aos princípios da individualização da pena e da igualde, na medida em que, conforme demonstrado, ela acaba gerando situações contraditórias e desproporcionais, nas quais réus em situações distintas, acabam recebendo a mesma sanção penal de réus em situação mais gravosa, que possuem circunstâncias judiciais ou mesmo agravantes em seu desfavor.
Destarte, uma leitura constitucional do sistema de aplicação da pena previsto no Código Penal, bem como a literalidade do art. 65 conduzem à conclusão de que é sim possível a redução da pena aquém da mínima prevista abstratamente, caso incidem atenuantes na situação concreta, sob pena de violação dos referidos princípios constitucionais.
Em razão de tais motivos, considerando a doutrina crescente neste sentido, de expoentes como Cezar Roberto Bitencourt, Juarez Cirino dos Santos, Rogério Greco e Paulo Queiroz, e com fundamento nos princípios constitucionais da individualização da pena e da isonomia, bem como no princípio da legalidade e na impossibilidade de analogia in malam partem, deve ser reconhecida a inconstitucionalidade da Súmula nº 231 do STJ.
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BITENCOURT, Cezar Roberto; Tratado de direito penal : parte geral 1– 24. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
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GRECO, Rogério. Código Penal: comentado. – 11. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2017.
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Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Pós-graduanda em Tutela Coletiva e Direitos Difusos pela Universidade Anhanguera – LFG. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, YASMIN SOUZA DA. Uma análise da Súmula nº 231 do Superior Tribunal de Justiça à luz da Constituição Federal de 1988 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 set 2019, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53477/uma-anlise-da-smula-n-231-do-superior-tribunal-de-justia-luz-da-constituio-federal-de-1988. Acesso em: 22 nov 2024.
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