Resumo: Este trabalho discorre sobre os fundamentos e finalidades da lei 11340/06 (Lei Maria da Penha), a qual busca diminuir as desigualdades entre homens e mulheres, criando mecanismos de proteção e acolhimento que libertem a mulher de ações que a violentam e inferiorizam, agredindo sua dignidade. Segue a análise dos requisitos para incidência da lei, quando da ocorrência de violência de gênero nos âmbitos doméstico, familiar e afetivo, e seus aspectos práticos de aplicação, fazendo um estudo mais detalhado no tocante a delitos de lesão corporal e vias de fato. Trataremos da iniciativa da ação penal nos delitos mencionados e afastamento da aplicação da Lei 9099/95, trazendo esclarecimentos doutrinários e jurisprudenciais sobre o tema.
Palavras-chave: Lei Maria da Penha. Lesão Corporal de Natureza Leve. Contravenção Vias de Fato. Iniciativa Ação Penal.
Introdução
Este trabalho discorre sobre os fundamentos e finalidades da lei 11340/06 (Lei Maria da Penha) e a sua aplicação nas hipóteses de crime de lesão corporal de natureza leve e de contravenção penal de vias de fato.
Iniciará com a análise da finalidade da legislação em diminuir o desequilíbrio existente entre homens e mulheres, ocasionado por uma sociedade machista que trata a mulher de maneira desigual, inferior e submissa.
Dentro desta perspectiva legislativa de empoderamento feminino, tratará da aplicação da Lei Maria da Penha e da autonomia da vontade da vítima quanto à punição do seu agressor, através da apresentação de representação criminal, que desencadeia a atividade policial e o processo penal contra o infrator, nos delitos de ação penal de iniciativa privada e iniciativa pública condicionada à Representação.
O trabalho dá ênfase à análise da iniciativa da ação penal nos delitos de lesão corporal e vias de fato praticados contra a mulher, em razão de gênero, e no âmbito da convivência doméstica, familiar e afetiva.
Analisará, do ponto de vista doutrinário e jurisprudencial, a iniciativa da ação penal no crime de lesão corporal leve e na contravenção de vias de fato, trazendo esclarecimentos e conclusões que melhor se identificam com o espírito maior da lei, qual seja, diminuir as desigualdades históricas entre homens e mulheres de forma a promover uma efetiva igualdade de gêneros.
O artigo tem como objetivo reafirmar a necessidade de proteção estatal oferecida para a mulher vítima de violência, de forma que se deixe de analisar o tema dentro de uma perspectiva machista, em que se estimule o silêncio e omissão da vítima, como forma de manter a estrutura familiar, como se fosse apenas a mulher a responsável por zelar pelo bem estar e continuidade da família.
Iniciará tratando dos fundamentos da Lei Maria da Penha, seguindo para a análise das hipóteses de aplicação da norma, com esclarecimentos dos aspectos práticos da lei, com especial enfoque na coleta de representação da ofendida, dando ênfase ao estudo da iniciativa da ação penal nas hipóteses de ocorrência de lesão corporal de natureza leve e da contravenção de vias de fato.
A matéria requer que o intérprete se dispa do preconceito de que cabe à mulher abrir mão da punição do agressor, em que pese toda a pressão social e familiar que a vítima de violência sofre neste sentido, sob a alegação que o agressor não é um criminoso. Foi com este objetivo que a Lei 11340/06 afastou a aplicação do Lei 9099/95 para tormar pública incondicionada a ação penal nas hipóteses de lesão corporal e vias de fato praticadas no âmbito da violência doméstica, familiar e afetiva.
Dos fundamentos da Lei
A Lei 11340/06, também conhecida como lei Maria da Penha, foi criada com o intuito de punir e prevenir a violência contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar. Encontra fundamento no Art. 226 da Constituição Federal, o qual discorre ser a família base da sociedade, razão pela qual tem proteção especial do Estado. A proteção à Mulher é regulamentada, ainda, no âmbito de tratados e convenções internacionais, entre elas a Convenção sobre eliminação de todas as formas de violência contra a mulher e a Convenção Americana para Punir, Prevenir e Erradicar a violência contra a mulher, conforme dispões o Art. 1º da Lei 11.340/2006.
A DECLARAÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES, Proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas na sua resolução 48/104, de 20 de Dezembro de 1993, reconhece que “a violência contra as mulheres constitui uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres, que conduziram ao domínio e à discriminação das mulheres por parte dos homens e impediram o progresso pleno das mulheres, e que a violência contra as mulheres constitui um dos mecanismos sociais fundamentais através dos quais as mulheres são forçadas a assumir uma posição de subordinação em relação aos homens”.
O Decreto 1973/96 promulgou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 09 de junho de 1994.Tal documento, conhecido como Convenção de Belém do Pará, deixa claro os fundamentos que levaram à criação da Legislação Protetiva :
“ Afirmando que a violência contra a mulher constitui violação dos direitos humanos e liberdades fundamentais e limita todas ou parcialmente a observância, gozo e exercício de tais direitos e liberdades;
Preocupados porque a violência contra a mulher constitui ofensa contra a dignidade humana e é manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens;
Recordando a Declaração para a Erradicação da Violência contra a Mulher, aprovada na Vigésima Quinta Assembléia de Delegadas da Comissão Interamericana de Mulheres, e afirmando que a violência contra a mulher permeia todos os setores da sociedade, independentemente de classe, raça ou grupo étnico, renda, cultura, idade ou religião, e afeta negativamente suas próprias bases;
Convencidos de que a eliminação da violência contra a mulher é condição indispensável para seu desenvolvimento individual e social e sua plena e igualitária participação com todas as esferas devida; e
Convencidos de que a adoção de uma convenção para prevenir, punir e erradicar todas as formas de violência contra a mulher, no âmbito da Organização dos Estados Americanos, constitui positiva contribuição no sentido de protegeres direitos da mulher e eliminar as situações de violência contra ela...”
A mulher goza de todos os direitos e garantias individuais, nos termos do Art. 5º da CF/88, sendo a ela assegurados todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, entendidos como tais todo e qualquer direito que lhe assegure vida digna e sem violência. A tais direitos estão submetidos a família, a sociedade e o Estado, os quais devem assegurar condições necessárias para o efetivo exercício de tais direitos, nos termos do Art. 4º da Lei 11340/06.
Da Aplicação
A Lei Maria da Penha, em seu Art. 5º, anuncia o seu âmbito de aplicação, devendo ser observado que o referido diploma legal apenas deve ser aplicado quando a violência contra a mulher é baseada em gênero e no seio doméstico, familiar ou afetivo:
“Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: (Vide Lei complementar nº 150, de 2015)
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.”
A Lei restringe, portanto, a sua aplicação às hipóteses de ação ou omissão violenta, ocorrida no âmbito doméstico ou familiar, baseada no gênero, o que implica dizer que a violação deve estar atrelada à condição de vulnerabilidade da vítima mulher, sendo a motivação de gênero presumida nas hipóteses de violência descritas no Art. 5º da Lei Maria da Penha. A proteção da mulher em suas relações domésticas, familiares e íntimas de afeto é o fim social ao qual a Lei se destina e, portanto, de tal maneira deve ser interpretada de forma a considerar a condição peculiar da mulher vítima de violência, conforme dispõe o Art. 4º da lei 11.340/06.
Para aplicação da Lei é necessária a motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade que caracterize a situação de relação íntima, para tanto não sendo necessária a coabitação entre autor e vítima, nos termos da Súmula 600 do STJ: “Para configuração da violência doméstica e familiar prevista no artigo 5º da Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, não se exige a coabitação entre autor e vítima”. STJ. 3ª Seção. Aprovada em 22/11/2017.
Da Coleta da Representação
Diante da situação apresentada, delimitado o campo de atuação do referido diploma legal, seguimos para a análise dos aspectos práticos da Lei, quando a prática da violência chega ao conhecimento da Polícia Judiciária.Dispõe o Art. 12 da Lei 11340/06:
" Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:
I - ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada;
II - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias;
III - remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência;
IV - determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e requisitar outros exames periciais necessários;
V - ouvir o agressor e as testemunhas;
VI - ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou registro de outras ocorrências policiais contra ele;
VII - remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público.”.
Chegando ao conhecimento da Polícia Judiciária situação que envolva violência contra a mulher, provocada por ação ou omissão, no âmbito familiar, doméstico e afetivo, deve a autoridade policial, no primeiro momento, verificar a natureza do delito que lhe é apresentado do ponto de vista da vontade da vítima. Aqui se analisa se o crime é de ação penal de Iniciativa Pública, Iniciativa Pública Condicionada à Representação, ou de Ação de Iniciativa Privada, nestas duas últimas podendo a Autoridade Judicial agir apenas mediante prévia manifestação de interesse e representação da vítima.
Representação é o ato de a vítima manifestar a vontade de processar criminalmente o seu agressor, para que este responda a procedimento criminal pela prática da conduta delitiva. A manifestação de vontade da vítima deve ser reduzida a termo e, só então, a autoridade policial está “autorizada” a instaurar o inquérito policial, seja por meio de Portaria ou Auto de Prisão em Flagrante delito.
Quanto à Iniciativa da ação penal, deve-se reportar à tipificação e regramento geral previsto no Código Penal, sendo a regra ação penal de iniciativa pública incondicionada, salvo quando expressamente disposto em sentido diverso. Há de se observar, ainda, que a Lei 11340/06 afasta a aplicação da LEI 9099/90, razão pela qual não há falar-se em lavratura de termo circunstanciado de ocorrência na hipótese de crimes cometidos em razão de gênero e no âmbito das relações domésticas, familiares e íntimas de afeto.
Da Inciativa da Ação Penal no crime de Lesão Corporal Leve e na Contravenção da Vias de Fato.
No tocante à iniciativa da ação penal nos crimes praticados com violência doméstica e familiar, nos termos do disposto na Lei 11.340/06, surge questionamento a respeita da iniciativa da ação penal nas lesões corporais de natureza leve e na contravenção de vias de fato.
Quanto aos delitos não regulados pela Lei Maria da Penha, existe posicionamento consolidado no sentido de, por força do disposto no Art. 88 da lei 9099/95, a lesão corporal de natureza leve passar a ser de ação penal de iniciativa pública condicionada à Representação, razão pela qual o desencadeamento da ação não requer representação da ofendida.
Em decorrência do disposto no Art. 88 da Lei 9099/95, a doutrina passou a defender que para a contravenção penal de vias de fato, espécie de agressão física que não deixa vestígio ou marca aparente, teria a sua ação penal condicionada à Representação da Vítima, em que pese serem todas as contravenções penais infrações de natureza pública incondicionada. O argumento para tanto é que o cabimento representação para o delito mais grave, ou seja, para a lesão corporal, implicaria imediata aplicação ao delito menos grave, a contravenção de vias de fato.
O raciocínio acima exposto não vem sendo aplicado aos crimes praticados no âmbito doméstico familiar e afetivo, em razão de a Lei Especial ter afastado a aplicação dos dispositivos descriminalizadores da Lei 9099/90. Neste sentido STF em ADI 4424: “AÇÃO PENAL – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER – LESÃO CORPORAL – NATUREZA. A ação penal relativa a lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada – considerações.”.
Sobre o afastamento da aplicação da lei 9099/95 aos crimes praticados no âmbito da Lei Maria da Penha, afirma Porto, Pedro Rui da Fontoura (2007, pg.42): “É possível que o legislador tenha reavaliado esta questão, concluindo que não foi boa a política criminal deixar-se ao alvedrio de fragilizadas vítimas, a possibilidade de representar ou não em delito que causa tantos prejuízos à coletividade, pois, na base da violência doméstica estão todas as formas de violência.”..
Pedro Rui da Fontoura Porto se posiciona sobre o tema, entendendo pela admissão da representação, nos casos de lesão leve praticados com violência doméstica contra a mulher, em razão do caráter personalíssimo do fato, que recomenda, por respeito à intimidade da própria vítima e ao seu livre arbítrio, prevaleça sua vontade. Neste sentido, transcreve considerações de Maria Lúcia Karan:
“Quando se insiste em acusar da prática de um crime e ameaçar com uma pena o parceiro da mulher, contra a sua vontade, está se subtraindo dela, formalmente dita ofendida, seu direito e seu anseio a livremente se relacionar com aquele parceiro por ela escolhido. Isto significa negar-lhe o direito à liberdade de que é titular, para tratá-la como se coisa fosse, submetida à vontade de agentes do Estado que, inferiorizando-a e vitimizando-a, pretendem saber o que seria melhor para ela, pretendendo punir o homem com quem ela quer se relacionar — e sua escolha há de ser respeitada, pouco importando se o escolhido é ou não um “agressor” — ou que, pelo menos, não deseja que seja punido.” Cit Porto, Pedro Rui da Fontoura (2007, pg.53).
A Jurisprudência já entendeu neste sentido e, embora tese já tenha sido superada, é relevante se ter conhecimento do julgamento a seguir colacionado:
“RECURSO ESPECIAL REPETITIVO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. PROCESSO PENAL. LEI MARIA DA PENHA. CRIME DE LESÃO CORPORAL LEVE. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA. IRRESIGNAÇÃO IMPROVIDA. 1. A ação penal nos crimes de lesão corporal leve cometidos em detrimento da mulher, no âmbito doméstico e familiar, é pública condicionada à representação da vítima.2. O disposto no art. 41 da Lei 11.340/2006, que veda a aplicação da Lei 9.099/95, restringe-se à exclusão do procedimento sumaríssimo e das medidas despenalizadoras.3. Nos termos do art. 16 da Lei Maria da Penha, a retratação da ofendida somente poderá ser realizada perante o magistrado, o qual terá condições de aferir a real espontaneidade da manifestação apresentada. 4. Recurso especial improvido.” (REsp 1097042 / DF RECURSO ESPECIAL 2008/0227970-6)
Sobre o tema, acatando a possibilidade de renúncia da representação perante o Juiz e com a assistência de defensor, mesmo com o advento da Nova Lei Maria da Penha, dispõe a professora Maria Berenice Dias:
“Com todos os cuidados, nada justifica afastar a possibilidade de a vítima renunciar à representação levada a efeito quando do registro da ocorrência. Na hora do acertamento das questões de ordem familiar a possibilidade de retratar a representação adquire um efeito simbólico. Confere à vítima certo “poder de barganha” frente ao agressor, pois está em suas mãos a possibilidade de ele ser processado, condenado, preso ou absolvido sem qualquer registro de antecedentes. Esse “empoderamento” da vítima restabelece o equilíbrio da relação. Assim, a mulher dispões da possibilidade de dar prosseguimento ou não à ação penal, além de poder levar o agressor a concordar com a separação nos termos por ela propostos, rompendo-se o ciclo da violência.”. Dias, Maria Berenice (2010, pg.160).
A professora entende, ainda, que o principal objeto da mulher que procura a polícia para denunciar a pessoa que ama é fazer cessar a violência e não em ver o seu companheiro processado e condenado criminalmente. A intenção maior da vítima, segundo a autora, é restabelecer a paz familiar, razão pela qual a irreversibilidade da medida desestimularia a procura pela polícia, provocando o silêncio da vítima em razão de ver o seu companheiro ou esposo, único provedor da família, processado e preso.
Na mesma obra citada, a professora Maria Berenice Dias cita posicionamento do professor Damásio de Jesus:
“é contraditório afirmar, em face do Art. 41 da Lei Maria da Penha, que a ação penal é incondicionada, e, ao mesmo tempo, defender, perante o Art. 16, que não se pode interpretar a expressão renúncia no sentido de desistência da representação. Adotada a tese da ação penal pública incondicionada, como falar em renúncia ou retratação da representação retratação da representação? Continua o mesmo autor: Não pretendeu a lei transformar em pública incondicionada a ação penal por crime de lesão corporal cometido contra mulher no âmbito doméstico e familiar, o que contraria tendência brasileira de admissão de um Direito Penal de Intervenção Mínima e dela retiraria meios de restaurar a paz no lar. Conclui afirmando que: considerar a ação penal por vias de fato e lesão corporal comum pública incondicionada, consistiria em retrocesso legislativo inaceitável”. Citação Dias, Maria Berenice (2010, pg.162).
Sobre o Tema se posiciona o STJ em HABEAS CORPUS Nº 280.788 - RS (2013/0359552-9):
“EMENTA HABEAS CORPUS. WRIT SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. LEI MARIA DA PENHA. CONTRAVENÇÃO PENAL. TRANSAÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. MANIFESTO CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. 1. O Superior Tribunal de Justiça, alinhando-se à nova jurisprudência da Corte Suprema, também passou a restringir as hipóteses de cabimento do habeas corpus, não admitindo que o remédio constitucional seja utilizado em substituição ao recurso ou ação cabível, ressalvadas as situações em que, à vista da flagrante ilegalidade do ato apontado como coator, em prejuízo da liberdade do(a) paciente, seja cogente a concessão, de ofício, da ordem de habeas corpus. 2. Uma interpretação literal do disposto no artigo 41 da Lei n. 11.340/2006 viabilizaria, em apressado olhar, a conclusão de que os institutos despenalizadores da Lei n. 9.099/1995, entre eles a transação penal, seriam aplicáveis às contravenções penais praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher. 3. À luz da finalidade última da norma e do enfoque da ordem jurídico-constitucional, tem-se que, considerados os fins sociais a que a lei se destina, o artigo 41 da Lei n. 11.340/2006 afasta a incidência da Lei n. 9.099/1995, de forma categórica, tanto aos crimes quanto às contravenções penais praticados contra mulheres no âmbito doméstico e familiar. Vale dizer, a mens legis do disposto no referido preceito não poderia ser outra, senão a de alcançar também as contravenções penais. 4. Uma vez que o paciente está sendo acusado da prática, em tese, de vias de fato e de perturbação da tranquilidade de sua ex-companheira, com quem manteve vínculo afetivo por cerca de oito anos, não há nenhuma ilegalidade manifesta no ponto em que se entendeu que não seria aplicável o benefício da transação penal em seu favor. 5. Habeas corpus não conhecido.”.
A maioria da Doutrina e Jurisprudência entende que condicionar a ação penal no crime de lesão corporal à representação da vítima fere o espírito da Lei Protetiva, a qual não pode ter processo criminal dependente de uma vítima fragilizada física e emocionalmente pela exposição a todos os tipos de violência e, muitas das vezes, dependente financeiramente do seu agressor. Neste diapasão, seguem os julgados:
“PETIÇÃO. QUESTÃO DE ORDEM. RECURSOS REPETITIVOS. TEMA N. 177. CRIME DE LESÕES CORPORAIS COMETIDOS CONTRA A MULHER NO ÂMBITO DOMÉSTICO E FAMILIAR. NATUREZA DA AÇÃO PENAL. REVISÃO DO ENTENDIMENTO DAS TERCEIRA SEÇÃO DO STJ. ADEQUAÇÃO AO JULGAMENTO DA ADI N. 4.424/DF PELO STF E À SÚMULA N. 542 DO STJ. AÇÃO PÚBLICA INCONDICIONADA. 1. Considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia, deve ser revisto o entendimento firmado pelo julgamento, sob o rito dos repetitivos, do REsp n. 1.097.042/DF, cuja quaestio iuris, acerca da natureza da ação penal nos crimes de lesão corporal cometidos contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, foi apreciada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em sentido oposto, já incorporado à jurisprudência mais recente deste STJ. 2. Assim, a tese fixada passa a ser a seguinte: a ação penal nos crimes de lesão corporal leve cometidos em detrimento da mulher, no âmbito doméstico e familiar, é pública incondicionada. 3. Questão de ordem acolhida a fim de proceder à revisão do entendimento consolidado por ocasião do julgamento do REsp n. 1.097.042/DF - Tema 177.”.( Pet 11805 / DF PETIÇÃO 2016/0296937-8)
HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. DESCABIMENTO. COMPETÊNCIA DAS CORTES SUPERIORES. MATÉRIA DE DIREITO ESTRITO. MODIFICAÇÃO DE ENTENDIMENTO DO STJ, EM CONSONÂNCIA COM O STF. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. LESÕES CORPORAIS LEVES. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. RETRATAÇÃO DA VÍTIMA. IMPOSSIBILIDADE. AÇÃO PÚBLICA INCONDICIONADA. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE FLAGRANTE QUE, EVENTUALMENTE, PUDESSE ENSEJAR A CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. 1. O Excelso Supremo Tribunal Federal, em recentes pronunciamentos, aponta para uma retomada do curso regular do processo penal, ao inadmitir o habeas corpus substitutivo do recurso ordinário. Precedentes: HC 109.956/PR, Primeira Turma, Rel. Ministro Marco Aurélio, julgado em 07/08/2012, acórdão pendente de publicação; HC 104.045/RJ, Primeira Turma, Rel. Ministra Rosa Weber, julgado em 28/08/2012, acórdão pendente de publicação. Decisões monocráticas dos ministros Luiz Fux e Dias Tóffoli, respectivamente, nos autos do HC 114.550/AC (DJe de 27/08/2012) e HC 114.924/RJ (DJe de 27/08/2012). 2. Sem embargo, mostra-se precisa a ponderação lançada pelo Ministro Marco Aurélio, no sentido de que, "no tocante a habeas já formalizado sob a óptica da substituição do recurso constitucional, não ocorrerá prejuízo para o paciente, ante a possibilidade devir-se a conceder, se for o caso, a ordem de ofício." 3. O Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADI 4.424/DF, reconheceu a natureza incondicionada da ação penal na hipótese de crime de lesão corporal praticada mediante violência doméstica e familiar contra a mulher, superando, assim, entendimento do Superior Tribunal de Justiça. Assim, conclui-se pela inaplicabilidade, na espécie, do art. 16, da Lei n.º 11.340/06. 4. Ausência de ilegalidade flagrante que, eventualmente, ensejasse a concessão da ordem de ofício. 5. Habeas corpus não conhecido. (HC 242458 / DF HABEAS CORPUS 2012/0098835-5)
PETIÇÃO RECEBIDA COMO AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EM HABEAS CORPUS. RETRATAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. MANUTENÇÃO DA PERSECUÇÃO ESTATAL. ADI Nº 4.424/DF. - O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIn n. 4.424/DF, deu interpretação conforme aos arts. 12, I, 16 e 41 da Lei n. 11.340/2006, estabelecendo que a ação penal nos crimes de lesão corporal em situação de violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente do grau da lesão, é sempre pública incondicionada - A retratação da representação pela vítima não tem o condão de impedir o prosseguimento da ação penal, conforme entendimento desta Corte, em harmonia com o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIn n. 4.424/DF. Agravo regimental desprovido.” (RHC44798 / RJ PETIÇÃO NO RECURSO EM HABEAS CORPUS 2014/001848 ).
Sobre a matéria o STJ editou súmula 542, não deixando qualquer dúvida sobre o tema: “A ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada.” (Súmula 542, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 26/08/2015, DJe 31/08/2015).
No tocante à contravenção de vias de fato, em sede de violência doméstica, familiar e afetiva, permanece a incondicionalidade de iniciativa da ação penal, pelos mesmos fundamentos legais já mencionados, uma vez que a aplicação extensiva do Art. 88 da Lei 9099/95 não mais se aplicava em razão do afastamento da Lei de Juizados Especiais para os delitos praticados nos âmbitos doméstico, familiar e íntimo de afeto.
Sobre contravenções penais, STJ - HABEAS CORPUS Nº 280.788 - RS (2013⁄0359552-9):
“ HABEAS CORPUS. WRIT SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. LEI MARIA DA PENHA. CONTRAVENÇÃO PENAL. TRANSAÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. MANIFESTO CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. 1. O Superior Tribunal de Justiça, alinhando-se à nova jurisprudência da Corte Suprema, também passou a restringir as hipóteses de cabimento do habeas corpus, não admitindo que o remédio constitucional seja utilizado em substituição ao recurso ou ação cabível, ressalvadas as situações em que, à vista da flagrante ilegalidade do ato apontado como coator, em prejuízo da liberdade do(a) paciente, seja cogente a concessão, de ofício, da ordem de habeas corpus. 2. Uma interpretação literal do do disposto no artigo 41 da Lei n. 11.340/2006 viabilizaria, em apressado olhar, a conclusão de que os institutos despenalizadores da Lei n. 9.099/1995, entre eles a transação penal, seriam aplicáveis às contravenções penais praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher. 3. À luz da finalidade última da norma e do enfoque da ordem jurídico-constitucional, tem-se que, considerados os fins sociais a que a lei se destina, o artigo 41 da Lei n. 11.340/2006 afasta a incidência da Lei n. 9.099/1995, de forma categórica, tanto aos crimes quanto às contravenções penais praticados contra mulheres no âmbito doméstico e familiar. Vale dizer, a mens legis do disposto no referido preceito não poderia ser outra, senão a de alcançar também as contravenções penais. 4. Uma vez que o paciente está sendo acusado da prática, em tese, de vias de fato e de perturbação da tranquilidade de sua ex-companheira, com quem manteve vínculo afetivo por cerca de oito anos, não há nenhuma ilegalidade manifesta no ponto em que se entendeu que não seria aplicável o benefício da transação penal em seu favor. 5. Habeas corpus não conhecido.”.
Passada a celeuma quanto à iniciativa da ação penal, sendo de iniciativa privado ou condicionada a representação, deverá a autoridade policial ouvir a vítima de maneira preliminar e questionar sobre sua intenção de Representar Criminalmente contra o Autor, o que ficará a critério da Vítima, a qual não poderá sofrer qualquer tipo de assédio, seja para estimular ou desencorajar a sua manifestação de vontade.
Não havendo a Representação da Ofendida, deverá ser colhido o termo de negativa da Representação, cientificada a vítima que terá o prazo decadencial de seis meses para voltar à Delegacia e dar continuidade ao procedimento criminal.
Mesmo não tendo a intenção de Representar Criminalmente contra o Acusado, a vítima poderá requerer medidas protetivas de urgência, as quais serão protocoladas junto ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar da Cidade no prazo de 48 horas. Nas Comarcas onde não existam Juizados Especializados, o pedido é encaminhado à Vara Criminal.
Vencida a fase de Representação da Ofendida, devem ser coletadas as suas declarações, ser dada ciência das medidas protetivas de urgência, seguindo a elaboração do pedido de medida protetiva de urgência, se for neste sentido a manifestação de vontade da vítima, seguindo o quanto disposto no tocante ao atendimento pela autoridade policial, nos termos do Art.12 e seguintes da lei 11.340/06.
CONCLUSÃO
Diante da situação apresentada, restou esclarecido que a Lei pretende afastar institutos jurídicos que deixem a vítima a mercê das pressões causadas pelo afeto, extinto de preservação da família e dependência financeira, que a impedem de denunciar ou continuar o processo contra o seu agressor.
Entender que a mulher deve ser titular da iniciativa da ação penal e utilizar de tal ferramenta para conseguir negociar termos da separação com o seu agressor violentaria sobremaneira a vítima, a qual deve ser protegida e acolhida pelo Estado, resguardando-a de pressões externas que a impedem de buscar a realização da justiça. Nesta hipótese, o Agressor continua o comportamento agressivo por confiar na falta de “coragem” da vítima em denunciar e, o fazendo, não suportar a pressão familiar para fazer cessar o processo criminal. No mesmo sentido Informativo Criminal nº 287 - Maria da Penha - Vias de Fato – do MP/SP:
“A Lei nº 11.340/06 é resultado de uma política criminal voltada ao tratamento mais severo e efetivo aos casos de violência doméstica contra a mulher. Por isso, a hermenêutica adequada de tal legislação deve ser a que propicia maior proteção às ofendidas.
Nessa ótica, anexamos abaixo julgados afirmando o caráter incondicionado da ação penal pública referente à contravenção penal de vias de fato, quando cometidos no âmbito da Lei Maria da Penha.
Os entendimentos jurisprudenciais referidos amparam-se na decisão do STF na ADI 4.424, por meio da qual se firmou que independentemente da extensão da lesão causada, o processamento de tal infração prescinde da representação, ou seja, não há condição de procedibilidade para o início do processo.
Ainda, salienta-se que não são aplicáveis os institutos despenalizantes previstos na Lei 9.909/95, vez que expressamente afastada a sua incidência pelo art. 41 da Lei Maria da Penha.”.
Toda a discussão sobre o tema foi superada em julgamentos de ADIN 4424/DF e ADC 19/DF, as quais deixaram evidente o entendimento Jurisprudencial no sentido de a ação penal ser de iniciativa pública incondicionada, nas hipóteses de crime de lesão corporal de natureza leve praticados no âmbito da violência doméstica, familiar e afetivo, com motivação de gênero. Neste sentido, também, súmula 542 do STJ, que a todos vincula.
BIBLIOGRAFIA
Cunha, Rogério Sanches, Violência Doméstica: Lei Maria da Penha, comentada artigo por artigo/Rogério Sanches Cunha, Ronaldo Batista Pinto. 6ª Edição- São Paulo, Editora Revista dos Tribunias, 2015.
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Dias, Maria Berenice, a Lei Maria da Penha: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher/ Maria Berenice Dias-2. ed. rev. atual. e ampli.- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,2010.
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Graduada em Direito pela Universidade Católica do Salvador, pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade Venda Nova do Imigrante. Delegada de Polícia Civil do Estado de Pernambuco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACHADO, Sara Elibia Rodrigues da Rocha Ferreira. Iniciativa da ação penal nos delitos de lesão corporal de natureza leve e vias de fato no âmbito da Lei 11.340/06 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 out 2019, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53646/iniciativa-da-ao-penal-nos-delitos-de-leso-corporal-de-natureza-leve-e-vias-de-fato-no-mbito-da-lei-11-340-06. Acesso em: 22 nov 2024.
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