MARIA DO SOCORRO MOURA COSTA
(Orientadora)[i]
RESUMO: A violência contra mulher marca a estrutura da sociedade, considerando a condição de inferioridade que fora submetida ao longo da história. Neste cenário, destacam-se várias formas de violência que antecedem o feminicídio, como a violência psicológica, física, moral e sexual. Nos últimos anos houve aumento de mortes de mulheres, em especial negras, conforme o Mapa da Violência de 2019. Diante disso, questionam-se quais são os fatores sociais que influenciam no aumento do feminicídio de mulheres negras no Brasil, em especial, racismo, classismo e sexismo. Desta forma, é pertinente analisar o contexto social, político e econômico em que estão inseridas as vítimas de feminicídio. O objetivo geral do estudo foi analisar os fatores sociais que influenciam no aumento do feminicídio de mulheres negras no Brasil, mais especificamente, revisar a bibliografia sobre feminicídio, discutir e apresentar conceitos e dados sociais acerca da temática, bem como sua tipologia. O estudo foi desenvolvido através de pesquisa bibliográfica, com abordagem dedutiva, através de livros e artigos científicos. Pode-se concluir que os fatores sociais estão enraizados na cultura brasileira, tendo em vista a discriminação e os estereótipos preconceituosos que permeiam e se fazem presentes neste ambiente de violência que leva a morte da mulher negra.
Palavras Chaves: Feminicídio, Mulher Negra, Violência de Gênero e Raça.
ABSTRACT: Violence against women marks the structure of society, considering the condition of inferiority that has been submitted throughout history. In this scenario, we highlight various forms of violence that precede femicide, such as psychological, physical, moral and sexual violence. In recent years there has been an increase in the deaths of women, especially black women, according to the 2019 Map of Violence. In view of this, the social factors that influence the increase of femicide among black women in Brazil, especially racism, are questioned. classism and sexism. Thus, it is pertinent to analyze the social, political and economic context in which the victims of femicide are inserted. The general objective of the study was to analyze the social factors that influence the increase of femicide of black women in Brazil, more specifically, to review the bibliography about femicide, discuss and present concepts and social data about the theme, as well as its typology. The study was developed through bibliographical research, with deductive approach, through books and scientific articles. It can be concluded that social factors are rooted in Brazilian culture, considering the discrimination and the prejudiced stereotypes that permeate and are present in this environment of violence that leads to the death of black women.
Keywords: Femicide, Black Woman, Gender and Race Violence
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Breve Histórico da Condição da Mulher Negra no Brasil. 3 Feminicídio. 3.1 Conceito. 3.2 Tipologia. 3.3 Legislação. 3.4 Discussão de dados sociais. 4 Dignidade da Pessoa Humana. 5 Fatores Sociais do Feminicídio: sexismo, racismo e classismo. 6 Conclusão. 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A violência de gênero e raça desencadeia uma série de fatores negativos do ponto de vista social, econômico e político, que marcam a estrutura da sociedade, considerando que as mulheres, em especial negras, são constantemente violentadas por atuais e ex–companheiros, desconhecidos e grupos de criminosos, tendo como principal consequência a morte, fator determinante para tipificação de um crime próprio no âmbito jurídico, a Lei nº 13.104/2015, conhecida como Lei de Feminicídio, que tem como objetivo punir de forma mais rígida o sujeito ativo do crime e consequentemente garantir os princípios constitucionais da liberdade, igualdade e dignidade.
Desse modo, busca-se realizar uma análise constitucional dos fatores sociais que influenciam no aumento do feminicídio de mulheres negras no Brasil, especificamente racismo, sexismo e classismo. Ocorre que a violência permanece na sociedade desde a antiguidade como manifestação de força e poder entre os homens e, ao penetrar no seio familiar tem como consequência a desestruturação do seu núcleo e a violação dos direitos humanos, em especial da mulher.
Este trabalho justifica-se pelo interesse da pesquisadora sobre o tema abordado, surgido através de cursos, palestras e estudos, e tendo em vista que o Brasil é o 5º país do mundo com mais mortes de mulheres, de acordo com o Mapa da Violência de 2018, apesar de toda legislação protetiva. Ou seja, não existe a plena efetividade e a segurança jurídica para a qual tal força normativa foi criada e se propõe cumprir.
Observa-se ao contrário do que foi exposto o descaso pela norma jurídica por parte daqueles que a violam por meio da prática de atos violentos que os tribunais julgam e sobre os quais proferem sentenças. Tais atos são amplamente divulgados pela mídia com intuito de dar visibilidade ao feminicídio, cuja tendência é de crescimento, caso não ocorram mudanças de comportamento e entendimento acerca dos direitos de todos, homens e mulheres, numa condição isonômica pela quais todos possam viver harmonicamente com dignidade, sem violação de direitos e garantias fundamentais.
Do ponto de vista da relevância, torna-se oportuna a pesquisa considerando três aspectos diante do aumento de mortes em razão do gênero e raça, em especial de mulheres negras, conforme o Mapa da Violência de 2019: primeiro, para a sociedade, por se tratar de um problema social, uma questão de justiça, de segurança e saúde pública, que atinge a todos de forma direta ou indireta. Segundo, para o meio acadêmico, ao buscar alcançar acréscimo ao debate intelectual e, por fim, para a UNIFSA ao desenvolver no estudante do curso de Direito, um olhar mais crítico acerca da temática. Desta forma, questionam-se quais os fatores que influenciam no aumento do feminicídio de mulheres negras no Brasil, tendo em vista estas serem as principais vítimas do ciclo de violência que antecede e culmina com o feminicídio.
Nesse sentido, Vidal (2015) explica que esse ciclo de violência inicia-se com a etapa da tensão, que se manifesta por meio de ameaças, humilhações, intimidações, constrangimento a vítima, dentre outros atos. Após essa etapa ocorre a fase da explosão do agressor em que acontece o ato de violência propriamente dito, pois toda tensão se materializa. Com o fim dessa etapa, segue-se para a fase da reconciliação, e nesta ocorrem novas promessas, desculpas e arrependimento. Desta forma, quando a mulher vítima de violência não consegue romper com o ciclo, fica sujeita a sofrer com maior intensidade as violências até que se atinja a figura do feminicídio.
Ressalte-se que o objetivo geral desse estudo se fez em analisar os fatores sociais que influenciam no aumento do feminicídio de mulheres negras no Brasil. Para tanto se buscou como objetivos específicos revisar a bibliografia sobre feminicídio, discutir juridicamente acerca do feminicídio apresentando conceitos, dados sociais e sua tipologia e, por fim, relacionar feminicídio e mulher negra no Brasil.
2. BREVE HISTÓRICO DA CONDIÇÃO DA MULHER NEGRA NO BRASIL
No Brasil, as mulheres negras, assim como os homens negros, foram escravizadas. Contudo, percebe-se que no caso feminino a condição teve como decorrência a submissão delas às várias formas de violência, dentre as quais destacam-se a violência sexual e a violência psicológica. E, para sobreviverem à desumanidade e perversidade características da escravidão, em conjunto com os homens, elas resistiram e lutaram incansavelmente através de movimentos e grupos raciais por justiça e condições de vida digna, visando à liberdade, e às vezes, quando conseguiam comprar a carta de alforria para a libertação do jugo escravagista, e a igualdade humana.
Note-se que os movimentos foram silenciados, contudo, ganharam visibilidade a partir da década de 1960 (GIDDENS, 2008; TOMAZI, 2010), em que isso pese, segundo a professora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea - CPDOC da Fundação Getúlio Vargas - FGV, Ynaê Santos, em entrevista a Blower (2019), a invisibilidade da mulher negra permanece como fruto do racismo e do machismo que estruturam a sociedade brasileira e fazem com que ela ocupe o lugar de subalternidade.
Segundo Carneiro (2003), todas as mulheres que viveram no período colonial brasileiro foram vítimas de violências, e como tal, as mulheres negras foram sujeitas a violência econômica própria do regime escravocrata em que a sua presença era parte da estrutura econômica. Ou seja, a violência abrangia todas as mulheres, especialmente a mulher negra, pois, esta constituía a estrutura econômica da sociedade colonial, considerando o sistema escravocrata em que viviam, ao serem submetidas ao trabalho escravo e, executarem diferentes tarefas para subsistência, sendo amas-de-leite, cozinheiras, lavadeiras, escravas de ganho e objeto sexual.
As mulheres indígenas também foram submetidas às mesmas condições e violações, entretanto, com algumas diferenciações. Já as mulheres brancas, ricas ou pobres, eram submetidas a outras formas de violência, mediante a posse e submissão masculina. Mesmo diante dessa condição de inferioridade da mulher negra em relação às mulheres brancas e as indígenas é preciso olhar a história do Brasil e reconhecer as mulheres negras que inspiraram e protagonizaram movimentos sociais e raciais em busca da liberdade e igualdade.
Neste cenário, Mott (1979, apud ROCHA, 2012) destaca Esperança Garcia, escrava piauiense, que em 1770 peticionou ao Governador do Piauí, denunciando os maus tratos que sofria. Observa-se que sua coragem e determinação na defesa da liberdade foi tão relevante para sua época, que em 2017 recebeu o título de primeira mulher advogada do Piauí pela OAB do estado. O referido historiador explica que talvez seja a segunda carta mais antiga até agora conhecida no Brasil, escrita e assinada por uma escrava negra e, que revela não só os sofrimentos dos negros, como o fato de haver mulheres negras alfabetizadas e politizadas para reivindicar direitos e denunciar práticas de atos violentos às autoridades.
Ocorre que não há muitos registros documentando acerca da existência e atuação das mulheres negras no cenário político racial. Como explica Hermann (2008), a história foi escrita sob a ótica masculina, entretanto, se reconhece a oralidade, que são as histórias contadas de geração em geração, ou retratadas em obras literárias sobre a resistência e coragem da mulher em face da dominação masculina.
Ao traçar um paralelo entre a questão social e os avanços políticos, o racismo afeta com mais intensidade a mulher negra, causando prejuízos à sua situação social. Diante disso, destaca-se a importância das normas de caráter protetivo no âmbito jurídico, como a criminalização do racismo e sua previsão constitucional, considerando a informação de que racismo é crime e, nos termos da Constituição Federal de 1988, é inafiançável e imprescritível, o que possibilita a modificação da postura discriminatória. No entanto, isso não significa o seu extermínio, embora restrinja certos comportamentos preconceituosos ou discriminatórios.
Neste sentido, observa Alda Facio (1994 apud PIOVESAN, 2009), que embora os homens sofram discriminações, nenhum homem sofre por pertencer ao sexo masculino, ao contrário das mulheres que sofrem discriminações por pertencer ao sexo feminino. Isto é, essa soma-se à discriminação por classe, etnia ou orientação sexual. Nesta abordagem, a mulher enquanto mulher é submetida a tratamentos diferentes em relação ao homem pelo simples fato de pertencer ao sexo feminino e, como consequência, percebe-se uma predominância no meio social da discriminação em relação à classe, raça e gênero.
No campo sociojurídico, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, ocorreram mudanças significativas no regime do governo, pois houve a ruptura do regime ditatorial, o que constitui o marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil, bem como a ruptura da ideologia patriarcal. Conforme explica Hermann (2008), acerca do fundamento do patriarcado, neste ocorre a dominação do mais forte sobre o mais fraco, afetando a edificação da estrutura politica hierarquizada, pela discriminação com base no gênero, na raça, na situação de classe, e outros preconceitos como mecanismos vivos de exclusão, cujos resquícios surtem efeito até os dias atuais, implicando em marginalização de mulheres, negros e pobres.
Ademais, entende-se que a ideologia do sistema patriarcal foi substituída por um sistema que adota como princípios a liberdade, a igualdade, a dignidade entre outros. Contudo, ainda existem resquícios dessa ideologia, sendo visível sua influência na sociedade atual, permanecendo viva em certos círculos onde a mulher ocupa uma posição de inferioridade em relação ao homem, sendo considerada como propriedade, objeto sexual, reprodutora da espécie humana, ou seja, coisificada em razão do gênero.
Neste sentido, Bianchini (2019), aborda o fato de que o papel de submissão feminino configura-se em processo de coisificação, no qual há a afronta à dignidade da pessoa humana, tendo em vista que decorre de condições concretas em que a mulher se encontra submetida por conta do papel que lhe é atribuído socialmente. Desta forma, é notória a impossibilidade de justiça no sistema patriarcal, na medida em que a violência contra a mulher se torna normal frente às atrocidades admitidas por esse sistema violento e desumano.
Segundo Saffioti (1999 apud MARCONDES, 2013) a sociedade e o Estado, por meio de suas políticas públicas, acabam, muitas vezes, considerando normal e natural a violência exercida por homens contra mulheres. Diante deste cenário, nota-se que a naturalização da violência causa a morte das mulheres, pois a impunidade do sujeito ativo permanece como fruto dessa naturalização, o que ocasiona o aumento das mortes, em especial das mulheres negras, que são discriminadas pela cor da pele, pelo baixo nível de escolaridade, considerando-se que o acesso à educação de qualidade é elitizado e poucas conseguem concluir os estudos, ainda se considera a gravidez precoce ou a necessidade de trabalhar precocemente para ajudar a família, e dessa forma deixam os estudos em segundo plano, sendo visível, assim, a situação de desigualdade social e econômica que isso gera.
Em que pese existirem instrumentos jurídicos que visam combater a violência contra a mulher, bem como agentes públicos para atuar na área, nota-se o despreparo no atendimento dos profissionais nas delegacias especializadas ao atendimento da mulher em situação de violência, o que se torna mais um obstáculo para o combate à violência contra a mulher e para evitar o feminicídio. Ou seja, isso pode ser considerado na desmotivação da vítima pelo medo de denunciar, aliado a falta de capacitação profissional e interesse do agente, o que leva, portanto, a não efetivação das normas jurídicas e o déficit na implantação das politicas públicas.
3. FEMINICÍDIO
3.1 Conceito
A respeito da construção conceitual do feminicídio, conforme Chakian (2018, apud BIANCHINI, 2019), a responsável por atribuir significado ao vocábulo feminicídio foi à antropóloga mexicana Marcela Lagarde, considerando-o como o conjunto de violações aos direitos humanos das mulheres, num contexto de violência sem limites frente à debilidade do Estado. Sustenta que o feminicídio trata-se de um crime de ódio contra as mulheres e, que as autoridades são responsáveis para prevenir e erradicar esses delitos que denotam crueldade e menosprezo às mulheres, razão pela qual seria um crime de Estado, diante da negligência e omissão estatal.
Nesta análise, a também antropóloga Rita Laura Segato (2018, apud BIANCHINI, 2019, p. 234) “ressalta que esse impulso de ódio com relação à mulher se explica como consequência à violação feminina às duas leis do patriarcado: a norma de controle e possessão sobre o corpo feminino e a norma de superioridade, de hierarquia masculina”. Desta forma, a reação de ódio ocorre quando a mulher adquire autonomia ao ascender posições de autoridade, de poder econômico ou político ou ainda quando exerce autonomia sobre o seu corpo, desrespeitando regras de fidelidade.
Importante destacar o conceito da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher (2013), com o intuito de apurar eventuais omissões do Estado e, analisar o feminicídio, quando definiu como a instância última de controle da vida e da morte da mulher pelo homem, e estabeleceu a ideia de posse que o homem tem em relação à mulher, considerando-a como um objeto e propriedade. Isso leva ao reconhecimento do pensamento presente nos ambientes machistas e preconceituosos em que a mulher é menosprezada por sua condição de gênero.
A violência destrói a identidade da mulher, principalmente quando deixa marcas externas irreversíveis e permanentes no corpo, como ter o rosto desfigurado por cicatrizes ou quando sofre mutilação dos órgãos genitais ou partes do corpo associadas ao feminino. É notório o abalo psicológico e emocional que as afeta, além da falta da autossuficiência, pois muitas vezes se sentirem culpadas pelo erro do outro. Isso é considerado como atos de tortura, tratamento cruel e degradante repudiados no Estado Democrático, em que se prezam direitos humanos.
De acordo com Romero (2014), feminicídio é todo e qualquer ato de agressão derivado da dominação de gênero, cometido contra indivíduo do sexo feminino, ocasionando sua morte. Tal conceito remete à ideia superioridade que envolve os relacionamentos de caráter abusivo, com menosprezo e estabelecimento de hierarquia de um sexo sobre outro, ou seja, o julgamento do homem como superior a mulher, que desta forma, deve-lhe obediência. Para o autor, é a perda desse controle que cria um ciclo contínuo de violências, tendo como principal consequência a morte.
Para o tratamento do fenômeno, a norma jurídica estabeleceu como sujeito passivo do feminicídio o sexo feminino. Em contrapartida, não definiu o sujeito ativo, assim, entende-se que tanto o homem quanto a mulher poderão cometê-lo. Ademais, nada impede que a mulher cometa homicídio em razão da condição de gênero, nutrindo sentimento de ódio, discriminação ou menosprezo em relação ao sexo feminino, o que caracteriza o feminicídio.
Nota-se, pelos conceitos apresentados que o feminicídio é um crime que tem origem no sentimento de posse, originário de uma cultura patriarcalista, pois esta tem uma ideologia do pátrio poder, em que este está originalmente concentrado nas mãos do homem, sendo ele provedor e instituidor da família, em função da definição do sujeito passivo como o elo “mais fraco” da relação.
3.2 Tipologia
No tocante à tipologia do feminicídio, destaca-se a classificação de Segato (2006, apud OLIVEIRA, 2016), que dividiu o feminicídio em quatros espécie: feminicídio íntimo, feminicídio corporativo, feminicídio infantil e feminicídio sexual. Em relação ao primeiro, define como aquele derivado da relação amorosa, pela qual a vítima conhece ou se relaciona de alguma forma com o agressor, podendo essa relação ser familiar ou íntima. Explica ainda que é o tipo mais comum na sociedade, tendo em vista ocorrer no âmbito doméstico.
No que tange ao feminicídio corporativo explica que está relacionado aos casos de vingança ou disciplinamento, através do crime organizado, como se verifica no tráfico internacional de mulheres. Já o feminicídio infantil considera como aquele imputado às crianças e adolescentes do sexo feminino através de maus-tratos dos familiares ou das pessoas que tem o dever legal de protegê-las.
Por fim, a autora supracitada explica o feminicídio sexual citando como exemplo o estupro seguido de morte, em que a vítima é violentada. Especificamente para este tipo, atente-se ao fato de que conforme pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha (2016), encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Púbica (FBSP), 33% da população brasileira considera que a vítima é culpada pelo estupro. E, que 42% dos homens concordam que a violência sexual acontece porque a vítima não se dá ao respeito ou usa roupas provocativas.
Tal pesquisa demonstra uma cultura de culpabilização da vítima, na medida em que as mulheres são vitimadas pela roupa que usam, e desta forma, consideradas culpadas do estupro, assim a sociedade afasta o verdadeiro criminoso, colocando-o num patamar de vítima, ou seja, a salvo das punições e, com isso a impunidade prevalece em face da violência contra mulher.
Segundo Gebrim (2014), o feminicídio decorre de condições socioculturais históricas que geram e permitem práticas atentatórias contra a vida, a dignidade e a liberdade da mulher. Desse modo, não cabe ao Estado nem a sociedade impor regras restritivas de direito, sobretudo quando a liberdade de expressão não atingirá outras pessoas. Ocorre que, essa responsabilização conferida à mulher é traço do perfil social brasileiro que traz em seu bojo o preconceito como reflexo de uma concepção moralista e social.
Ainda sobre as tipologias, é importante destacar a classificação de Pereira (apud GREGO, 2018), ao mencionar o feminicídio íntimo, feminicídio não íntimo e o feminicídio por conexão. O primeiro é aquele cometido por homens com os quais a vítimas tem ou teve uma relação íntima, familiar ou de convivência. O segundo é aquele cometido por homens com os quais a vítima não tinha relações íntimas, familiares ou de convivência. Por fim, o terceiro é aquele em que uma mulher é assassinada porque se encontrava na linha de tiro de um homem que tentava matar outra mulher.
Em acréscimo ao que foi colocado por Segato (2006), nota-se que Pereira coloca um tipo de feminicídio, qual seja, o por conexão, considerando que a morte da mulher ocorre por ocasião da situação em que se encontra, logo que o agente por erro acaba atingindo uma mulher diversa da pretendida. É de se observar que ambos os autores estabelecem o feminicídio íntimo, sendo que Pereira aborda o aspecto da convivência, no sentido de que o feminicídio pode ser fruto da convivência familiar ou não. Desta forma, o assassino é uma pessoa conhecida da vítima que pode ser parente, amigo, namorado ou uma pessoa próxima.
Em suma, conforme Lagarde (2018) citando Chakian (2018 apud BIANCHINI, 2019) são várias as motivações que levam à morte da vítima, como o ódio, o desprezo, o sentimento de perda, a não aceitação do fim do relacionamento, a perda do controle e da propriedade sobre a mulher.
3.3 Legislação
As inovações introduzidas pela Carta Magna de 1988 foram fundamentais para que o Brasil ratificasse instrumentos jurídicos internacionais de caráter universal de proteção dos direitos humanos das mulheres. Dentre eles, destacam-se a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, de 1994, que estabeleceu o direito das mulheres viverem uma vida livre de violência, considerando que a violência contra a mulher é uma violação aos direitos humanos.
Destaca-se também a Declaração sobre a Eliminação de Violência contra as Mulheres proclamada em dezembro de 1993, instituto que estabeleceu que as mulheres têm o direito ao gozo e à proteção, em condições de igualdade, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos aspectos político, econômico, social e cultural. Também, reconheceu a violência contra as mulheres como: uma manifestação de poder que tem origem nas relações historicamente desiguais entre homens e mulheres; uma forma de discriminação e violação dos direitos humanos; um ato de violência baseado no gênero.
Segundo Piovesan (2009), com as transformações internas decorrentes do processo de democratização houve a necessidade do Estado brasileiro se reorganizar, com objetivo de compor uma imagem melhor no contexto internacional. É visível a relação entre o processo de democratização e o da incorporação desses instrumentos sob a égide da Constituição Federal de 1988. Ademais, formam um sistema de proteção constitucional ampliado, pois cabe ao Estado assumir a responsabilidade e o dever de erradicar e sancionar as situações de violência contra as mulheres, criando e implementando mecanismos para combater a violência.
No plano infraconstitucional, é pertinente destacar a Lei nº 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, um instituto normativo criado em 07 de Agosto de 2006, uma lei especifica para o enfrentamento da violência contra mulher, que aborda no seu contexto diversas formas de violência como a física, a moral, a patrimonial, a psicológica, a sexual entre outras, assim um rol meramente exemplificativo, ou seja, não se limita apenas ao estabelecido na legislação.
Em que pese a importância da Lei Maria da Penha neste cenário de combate da violência contra mulher, tendo em vista que instituiu medidas protetivas com a finalidade de coibir o agressor, no entanto, não foi suficiente para diminuir as mortes de mulheres, em especial da mulher negra. Logo, deduz-se que não houve alterações dos números de mortes com a entrada em vigor da referida lei.
Assim, foi necessário avançar mais na legislação e criar outros mecanismos de defesa para o combate da violência contra mulher, dessa vez, voltado para evitar as mortes. Foi então, que surgiu a Lei de Feminicídio como grau de extensão da Lei Maria da Penha, tendo em vista que o feminicídio é uma consequência oriunda de um ciclo de violências contínuas em que por questões de gênero a mulher é a principal vítima.
Devido ao aumento de morte de mulheres o Brasil, por meio do Jus Puniendi - o direito de punir do Estado, procurou no legislativo uma solução para combater os crimes violentos que estavam sendo cometidos contra as mulheres. Assim, foi criada a Lei nº 13.104/15, conhecida como Lei de Feminicídio, fundamentada em compromissos firmados pelo Estado Brasileiro no combate a violência contra a mulher na ordem internacional, pelo sistema interamericano de Direitos Humanos e no próprio compromisso de trazer uma resposta legislativa à sociedade brasileira, com intuito de combater a impunidade, proteger a dignidade da vítima e punir através de penas mais rígidas os assassinos de mulheres.
Com efeito, a Lei de Feminicídio, alterou significativamente o artigo 121 do Código Penal Brasileiro, conforme leciona Greco (2017), ao inserir como modalidade de homicídio qualificado, o feminicídio, que ocorre quando for cometido contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, ou seja, a tipificação do crime se exterioriza quando for cometido contra a mulher, por razão de ser do sexo feminino, desde que ocorram as hipóteses previstas em lei. Desse modo, a lei do feminicídio pode ser considerada um instrumento jurídico de proteção às mulheres, bem como uma efetiva responsabilização criminal daqueles que matam mulher em razão de ser mulher, através da aplicação da pena de reclusão de 12 a 30 anos, sendo maior do que a do homicídio simples.
Com o objetivo de garantir os direitos humanos das mulheres, a dignidade e manutenção do núcleo familiar e social, bem como a promoção dos direitos fundamentais, o Código Penal abarcado pela ideologia humanitária, definiu no artigo 121 parágrafo 2º-A o que seriam as condições do sexo feminino, estabelecendo duas hipóteses que configuram a qualificadora do crime, quais sejam, quando envolver violência doméstica e familiar e, quando ocorrer menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Desta forma, segundo Greco (2017), há situações em que a vítima mesmo sendo mulher, contudo, não incidirá a qualificadora do feminicídio, tendo em vista que não restaram configuradas as hipóteses previstas na legislação.
O Estado enfrenta a violência contra mulher com intuito de lhe dar proteção tanto no âmbito familiar como no social, através de normas rígidas para punir o sujeito ativo do crime. Para Greco (2017), o feminicídio pode ser praticado por qualquer pessoa seja ela do sexo masculino ou do sexo feminino, ou seja, ambos os sexos são considerados sujeito ativo do crime em estudo. Contudo, quanto ao sujeito passivo, é necessário que seja mulher para que se configure o feminicídio. Assim, há uma discussão doutrinária acerca de quem pode ser considerada mulher para fins de reconhecimento da qualificadora em estudo.
Segundo Greco (2017), há critérios psicológicos, biológicos e jurídicos para definir o conceito de mulher. O autor se filia a este último tendo em vista tratar-se de uma norma penal incriminadora que deve ser interpretada de forma restrita. Denomina critério jurídico “aquele que for portador de um registro oficial (certidão de nascimento, documento de identidade), em que figure, expressamente, o seu sexo feminino, é que poderá ser considerado sujeito passivo do feminicídio”. (GRECO, 2017, p.44).
A alteração realizada no artigo 121 do Código Penal incluiu o crime de feminicídio no rol dos crimes hediondos com previsão expressa na lei nº 8.072/90. O legislador no parágrafo 7º do artigo mencionado definiu as causas de aumento de pena, e estabeleceu as seguintes hipóteses em que a pena do feminicídio é aumentada de 1/3 até a metade quando: o crime for praticado durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto; contra pessoa menor de 14 anos, maior de 60 anos ou com deficiência; na presença de descendente ou de ascendente da vítima.
Contudo, dentro da sociedade encontram-se as causas impeditivas para efetivação dos instrumentos jurídicos no combate do feminicídio no Brasil, em especial quando se trata de mulheres negras, na medida em que os fatores sociais como o racismo, sexismo e classismo prevalecem nas relações sociais e, desencadeiam consequências como impunidade, impossibilidade de justiça e inviabilização da efetivação dos instrumentos jurídicos criados pelo Estado para oferecer proteção e segurança às vítimas, o que ocasiona o reflexo do feminicídio com maior intensidade e, em suas várias espécies.
Neste aspecto, as leis simbólicas são normas utilizadas para coibir o agressor, porém, sem muito efeito, considerando os números assustadores de mortes violentas contra mulheres, em especial de mulheres negras. Desta forma, anseia-se pela efetivação dessas normas de caráter protetivo, em que as ações do poder público estejam focalizadas no sentido de reverter esse cenário de violência.
3.4 Discussão de dados sociais
Conforme o Mapa da Violência de 2019 “enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras teve crescimento de 4,5% entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 29,9%.” Em análise superficial é possível perceber que há diferença considerável nos dados apresentados ao se considerar os dois grupos.
Neste cenário, é visível a desigualdade de cunho racial, logo que, existem fatores sociais, como o racismo, sexismo e classismo, que estão enraizados na cultura brasileira, e desta forma podem influenciar no aumento de mortes das mulheres negras, tendo em vista serem as mais vulneráveis ao feminicídio.
O Mapa da Violência de 2019 destacou ainda que no último ano disponível “a taxa de homicídios de mulheres não negras foi de 3,2 a cada 100 mil mulheres não negras, ao passo que entre as mulheres negras a taxa foi de 5,6 para cada 100 mil mulheres neste grupo”. O que evidencia mais ainda a desigualdade racial e a enorme dificuldade que o Estado brasileiro tem de garantir a universalidade de suas políticas públicas.
Importante salientar que a presente edição do Mapa da Violência de 2019 indica que houve um crescimento dos homicídios femininos no Brasil em 2017 com cerca de 13 assassinatos por dia, totalizando um número assustador de 4.936 mulheres mortas, sendo o maior número registrado desde 2007. Divulgou ainda a evolução dos homicídios contra mulheres por unidades federativas em que se verifica crescimento expressivo de 30,7% no número de homicídios de mulheres no país durante 2007 a 2017.
Segundo o Mapa da Violência de 2018, o Brasil ocupa o 5º lugar no mundo entre os países com mais vítimas de feminicídio, e que apesar de toda legislação não há uma redução significativa desta forma de violência, fazendo com que o país se encontre no ranking como um dos primeiros países com maiores taxas de homicídios de mulheres, ficando atrás de países como El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia em número de casos.
Observa-se que, de acordo com os dados apresentados, que a Lei do Feminicídio desde que entrou em vigor em 2015 não tem mostrado resultados satisfatórios e eficazes, tendo em vista o aumento dos números de mortes, em especial das mulheres negras. Deduz-se que isso pode ser ocasionado pela carência de políticas públicas, pela falta de profissionais capacitados e preparados para o atendimento das mulheres em situação de violência, bem como pela não conscientização da população acerca desse fenômeno.
4. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A dignidade da pessoa humana está consagrada no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988, e é considerada fundamento da República Federativa do Brasil, princípio norteador de todo ordenamento jurídico brasileiro. Sua relevância é inquestionável para o meio jurídico-social, tendo em vista ser um instrumento constitucionalizado que tem por finalidade a promoção e efetivação das normas de caráter social, sendo que a violação aos direitos fundamentais e sociais postulados, consequentemente fere este princípio.
Conforme Sarlet (2010), ao tratar da noção de dignidade da pessoa na perspectiva jurídico-constitucional definiu-a como a qualidade intrínseca de cada ser humano que o faz merecedor do respeito por parte do Estado e da comunidade, implicando, em direitos e deveres fundamentais, bem como condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.
Nesse sentido, Nunes (2010), explica que a dignidade é intrínseca à pessoa, logo que, nasce com ela o que a torna inerente a sua essência. Desse modo, tem caráter irrenunciável e inalienável, devendo ser respeitada, reconhecida e atribuída ao ser humano. No entanto, o indivíduo não é isolado, tendo em vista que nasce, cresce e vive no meio social.
Segundo Sarmento (2016), o principal déficit de efetividade da dignidade da pessoa humana deriva da cultura enraizada, que não concebe a todas as pessoas como igualmente dignas, mas consagra privilégios para uns à custa do tratamento indigno a outros. Assim, é necessário combater as práticas sociais de hierarquia e da exclusão, para promover o ideal constitucional de igual dignidade das pessoas.
Neste contexto, a legislação por meio de normas de natureza instrumental, constitui práticas interventivas que tendem a coibir os agressores e consequentemente reduzir os altos índices de mortes violentas de mulheres. Desta forma, visa garantir a possibilidade de justiça e a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana.
Nota-se que o feminicídio viola o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, tendo em vista que os fatores sociais permeiam a sociedade e influenciam no modo de pensar e ser das pessoas, assim, não obstante, é necessário garanti-la por meio de normas jurídicas de cunho protetivo em que as politicas públicas se fazem presentes por meio da gestão pública dentro do contexto social.
Neste cenário, observa-se que há interferências de fatores sociais como o racismo, sexismo e classismo que influenciam no aumento de morte das mulheres, em especial da mulher negra, pois o preconceito e a discriminação colocam a mulher negra num grupo de pessoas mais vulneráveis, bem como violam a sua dignidade quando há o menosprezo pela condição de ser mulher.
O princípio em estudo visa o respeito às pessoas, independentemente de classe social, raça, sexo, etnia ou religião, tanto por parte da sociedade quanto do Estado e, que a liberdade sem o mínimo de igualdade fere a dignidade, considerando que ambos os princípios são fundamentais para a efetivação dos direitos das mulheres.
Nesse contexto, o Estado visa proteger a dignidade humana das mulheres contra as atividades lesivas a integridade física, psíquica, intelectual, moral, utilizando-se de leis como a Lei de Feminicídio e a Lei Maria da Penha, que constituem diretrizes para a atividade estatal cujo intuito é dar proteção e coibir os agentes. Contudo, apesar de todo o aparato jurídico verificado, existe uma tendência de violência concentrada no gênero e raça, considerando indicadores expressivos que mostram índices de mortes violentas mais altos em relação às mulheres negras do que as mulheres não negras.
No que tange à responsabilidade do Estado na consolidação da dignidade da pessoa humana, destacam-se os ensinamentos de Piovesan (2009, p.324), ao afirmar que “da Constituição de 1988 emerge uma ordem jurídica própria dos Estados intervencionistas, cuja dinâmica está condicionada à eficiência e competência na obtenção de resultados, que se subordinam à concretização de políticas públicas”. É notório que a Carta de 1988 consagra a aplicabilidade imediata dos direitos e garantias fundamentais, contudo, os grupos de pessoas consideradas vulneráveis tendem a sofrer sem a aplicabilidade desses direitos, na medida em que o Estado privilegia uns em detrimento de outros.
5. ASPECTOS SOCIAIS DO FEMINICIDIO: Sexismo, Racismo e Classismo
A incidência do feminicídio na sociedade ocorre de forma marcante, tendo em vista o cenário político, econômico e social em que se encontram suas vítimas. Dentro desse contexto que alcança a todos indistintamente, em âmbitos local, regional e nacional, é fundamental o conhecimento acerca desse fenômeno, na medida em que as mulheres negras são as maiores vítimas. Assim, é pertinente fazer uma abordagem sobre o trinômio sexismo, racismo e classismo para compreendê-lo, tendo em vista que essa forma de violência é uma violação aos direitos humanos.
De acordo com King (1992, p. 43 apud MARCONDES, 2013 p.138):
Aprende-se muito pouco sobre as mulheres negras a partir do paralelismo existente entre racismo e sexismo, pois nele a experiência destas mulheres é assumida aparentemente, mas nunca explicitamente. Ao se tornar um mero sinônimo para o grupo de homens negros ou de mulheres brancas e na medida em que ambos os grupos são equivalentes, a discussão sobre as mulheres negras se torna desnecessária.
A abordagem acerca desses elementos é indispensável para compreender a existência da violência contra mulheres negras. Com efeito, esses fatores sociais influenciam no modo de pensar e viver das pessoas em sociedade. Dentro desse contexto, nota-se que os tribunais manifestam posicionamento de inconformismo sobre o sexismo dentro de julgamentos, pois é proibido fazer distinção entre gênero, conforme ressalta a Juíza Federal Maria Cândida Carvalho Monteiro de Almeida Relatora da 2ª Turma Recursal do TRF1 no acórdão a seguir:
PREVIDENCIÁRIO. SALÁRIO-MATERNIDADE. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. SEGURADO ESPECIAL. NÃO COMPROVAÇÃO. SENTENÇA MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS (ART. 46 DA LEI 9.099/95). RECURSO DESPROVIDO.
Não cabe ao julgador supor modelo de divisão sexual do trabalho e aplicá-lo, sem comprovação fática, à parte autora. Deve o julgador ser cauteloso para evitar vieses implícitos. Com efeito, “2. Rejeita-se o menosprezo e a inferiorização do trabalho rural feminino em comparação ao masculino, percepção que contraria tanto a realidade sociológica devidamente documentada, quanto a proibição de discriminação por sexo e por gênero, conforme salientado no voto-vista do Desembargador Federal Roger Raupp Rios. (...)” (TRF4, AC 0004364-17.2015.4.04.9999, SEXTA TURMA, Relator para Acórdão JOÃO BATISTA PINTO SILVEIRA, D.E. de 03/08/2016). (TRF1, Acórdão 2854-62.2016.2.01.4002, Relatora: Maria Cândida Carvalho Monteiro de Almeida, Segunda Turma, Dje 16/05/2019).
No tocante à classe social, a distribuição de renda de forma desigual, torna-se um dos fatores econômicos que estimulam o aumento da desigualdade social afetando a população brasileira de modo que desfavorece certos grupos de pessoas e coloca-as em riscos, tendo como consequência o aumento da miserabilidade/hipossuficiência econômica, criando um círculo vicioso. A divisão por classe é fruto da desigualdade racional do homem enquanto homem, e promove uma limpeza social quando pessoas são separadas pela condição financeira e agregadas por grupos conforme suas culturas, crenças, origens e etnias.
Conforme Silveira (2006, p.35), “o racismo constitui um conjunto de discursos, fincados no senso comum, pelos quais a questão racial é obscurecida ou alijada do debate político e que coincidem com manifestações do próprio preconceito racial.” Na história, o Brasil foi o último país a abolir a escravidão, contudo, a mentalidade caturra racista da época persiste muitas vezes de forma velada e implícita.
Neste ambiente surge o racismo como divisor da sociedade, impondo ou estabelecendo regras discriminatórias para a vida em grupo, onde emergem grupos divididos por classe, raça e sexo. Percebe-se então uma categorização, ou seja, uma maneira de classificar as coisas, a fim de lidar com elas com mais facilidade.
Segundo Soares (2000, apud MARCONDES, 2013), as mulheres negras sofrem um duplo impacto, primeiro em relação aos homens negros e, segundo quando comparadas as mulheres brancas. Desta forma arcam com substancial peso da discriminação de gênero e cor, além da discriminação setorial, regional e ocupacional.
Com efeito, as mulheres negras são colocadas em um grupo de pessoas vulneráveis, logo, são as maiores vitimas de feminicídio, e por sofrerem constantes violências pelo fato de serem mulher e negra. Em que pese não existir justificativa para a violência contra a mulher, são as dificuldades sociais relacionadas com a educação, emprego, saúde, que constituem uma série de fatores que impossibilitam uma nova postura frente à sociedade discriminatória e capitalista.
Desse ponto de vista, tem-se que educação influencia na construção da personalidade do indivíduo desde a infância até a fase adulta. Neste sentido, destacam-se os ensinamentos de Castelo Branco (2005, p.68), sobre a educação feminina no início do século XX:
No final do império e começo da República, as novas perspectivas sociais que surgiam com o crescimento econômico e a urbanização tornam-se campo fértil para ideias novas que iam de encontro às concepções tradicionais e conservadoras. Essas novas correntes de pensamento queriam, entre outras coisas, implantar uma nova postura perante a educação da mulher, visando não emancipação feminina, mas a dar às moças melhor preparo para que pudessem exercer com mais competência suas funções de esposa e mãe.
Observa-se que este cenário foi sendo modificado gradativamente na medida em que a sociedade evoluiu e possibilitou o trabalho para as mulheres num ambiente de incertezas e desafios, em que foram conquistando espaços, assumindo funções e cargos importantes dentro das organizações, e como consequência ocorreu a descaracterização da dependência que a mulher tinha em relação ao homem e criou-se uma nova perspectiva acerca do trabalho feminino. Assim, isso vem servindo de exemplo para outras mulheres que vivem em situação de violência por causa da dependência financeira, como resultado de uma educação apenas voltada para os afazeres domésticos.
No entanto, como explica Abreu (2011), as mulheres adquiriram a sobrecarga de trabalho ao se responsabilizarem por suas famílias e exercerem atividades profissionais, de caráter exaustivo e revelador da desigualdade de gênero, pois ainda persiste a herança patriarcal e escravocrata nas desigualdades interseccionais de gênero e raça no país.
Para romper com ideias tradicionais sobre os comportamentos sociais é preciso contrapor-se a visão do senso comum de que a mulher tem uma condição natural de submissão, pois é visível que pensamentos de tal ideologia surgem como forma de expressão de exclusão social. Isso, todavia, leva a visualizar-se um retrato de uma sociedade ultrapassada no instante em que a mulher está sendo criada para servir e obedecer às ordens do marido ou companheiro durante o convívio matrimonial, assumindo uma postura típica do patriarcalismo, em que mutilação e agressões são normais e a dignidade é rebaixada da forma mais perversa possível. Contudo, acredita-se que não exista tal fundamento para dar proteção às mulheres pelo fato do costume e a cultura autorizarem esses comportamentos.
Revela Castelo Branco (2005), ao tratar do pensamento da educação feminina vista pelas mulheres no início do século XX, que suas opiniões são de reinvindicação por outras atividades além das domésticas. Nesta abordagem observa-se que o baixo nível de ensino influencia nas oportunidades de emprego oferecidas às mulheres, em especial a mulher negra, que tendem a serem menos valorizadas que os homens independentemente do grau de instrução ou da formação no ensino superior.
6. CONCLUSÃO
Concluo a necessidade de consolidar no meio social os princípios da dignidade, igualdade e liberdade, bem como reconhecer de forma plena os direitos das mulheres, em especial das mulheres negras, sem julgamento pela cor da pele, pela classe social, bem como pelo gênero. Observa-se que os grupos de lutas sociais com ênfase em movimento negro, vêm desenvolvendo agenda em prol da igualdade, tendo em vista a tutela dos direitos fundamentais e sociais válidos para todos.
Neste contexto, faz-se necessário ao Estado investir em projetos que visem à igualdade racial e social e, politicas públicas que possibilitem a conscientização da sociedade, com fins de desconstruir qualquer forma de violência, seja contra mulher negra ou não negra. Ocorre que a omissão estatal compromete a existência digna, e desse modo o poder público deve pautar suas decisões na concretização da dignidade da pessoa humana, que é o núcleo intangível do ordenamento jurídico.
Apesar dos avanços no campo jurídico com a promulgação de leis como a do Feminicídio e a Lei Maria da Penha, ainda é preciso efetiva-las de forma concreta em relação às mulheres, em especial as negras, através da instituição de politicas públicas para a redução do fenômeno, com intuito de proporcionar melhores condições de vida e, possibilitando o acesso à justiça, a educação e a saúde.
Com efeito, cabe ao Estado o papel de garantidor dos direitos das mulheres através da aplicação da lei com mais rigidez, no sentido de que a execução da norma ocorra de maneira eficaz. Desta forma, torna-se uma questão relevante o enfretamento da violência contra mulheres negras no Brasil, partindo do ideário que as leis são elaboradas e sancionadas com fundamentos em princípios universais de direitos humanos, na medida em que o Brasil assume compromissos de caráter internacional.
Portanto, nota-se que o feminicídio engloba as mulheres em geral, independentemente de classe social, raça, religião, etnia e idade, no entanto atinge com mais intensidade as mulheres negras, tendo em vista os fatores sociais que ensejam a desigualdade social, racial e cultural, e sendo a violência que as atinge subproduto de uma sociedade machista e preconceituosa. Assim, não há dúvidas da influência dos fatores sociais acerca da violência contra as mulheres negras no Brasil, tendo em vista que ainda persiste uma cultura enraizada de discriminação e de estereótipos preconceituosos que permeiam e se fazem presentes neste cenário de violência que leva a morte da mulher negra.
7. REFERÊNCIAS
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[i] Professora, Mestra e Orientadora deste artigo. Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/6248527380887330
Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA, Teresina-PI e Graduada em Administração pela Faculdade Adelmar Rosado - FAR, Teresina-PI.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Natália Pereira da. Feminicídio: Uma Análise Constitucional dos Fatores Sociais da Violência Contra Mulheres Negras no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 nov 2019, 04:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53720/feminicdio-uma-anlise-constitucional-dos-fatores-sociais-da-violncia-contra-mulheres-negras-no-brasil. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: LEONARDO DE SOUZA MARTINS
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