JULIANO DE OLIVEIRA LEONEL
(Orientador)[1]
RESUMO: A pesquisa tem por desígnio analisar os discursos presentes na defesa de um acusado pelo crime de Feminicídio, observando seu fundamento de existência e validade enquanto argumento caduco que subjuga a mulher colocando-a em segundo plano. Partindo desse princípio, de acordo com a metodologia utilizada do tipo pesquisa descritiva, bibliográfica e qualitativa, foi possível verificar que é na criação patriarcal, machista e misógina, que está o fundamento pelo qual se explica a ação ou omissão praticada pelo acusado. E que ainda, pelo uso do argumento de ampla defesa, advogados utilizam teses que colocam a culpa do crime na própria mulher, o que é antagônico à Constituição. Desse modo, por meio de estudo de teorias críticas sobre o método de como esse discurso é utilizado, chegou-se à conclusão que há uma necessidade de inversão do discurso utilizado pois à violência contra a mulher é resultado de séculos de discriminação, e não é justo imputa-la somente ao sujeito que está sentado no banco dos réus, mas há todos que contribuíram naquela criação.
Palavras-chave: feminicídio, criação patriarcal, constituição.
ABSTRACT: The research aims to analyze the speeches present in the defense of a defendant for the crime of Feminicide, observing its foundation of existence and validity as a lame argument that subjugates the woman putting her in the background. From this principle, according to the methodology used of the descriptive, bibliographical and qualitative research type, it was possible to verify that it is in the patriarchal, chauvinistic and misogynistic creation, that is the basis for explaining the action or omission practiced by the accused. And yet, by using the argument of wide defense, lawyers use theses that place the blame of the crime on the woman herself, which is antagonistic to the Constitution. Thus, through the study of critical theories about the method of how this discourse is used, it was concluded that there is a need to reverse the discourse used because violence against women is the result of centuries of discrimination, and is not fair to impute it only to the man who is sitting in the dock, but there are all who contributed to that creation.
Keywords: femicide, patriarchal creation, constitution.
Sumário: 1 Introdução. 2 Da Instituição do Júri. 3 Ampla Defesa e a Plenitude da defesa e sua diferenciação. 4 Feminicídio, Gênero e a Legítima defesa da honra para o conceito de Violação Estrutural de Direitos Humanos. 5 A Constituição Federal e a Violação Estrutural de Direitos Humanos. 6 Conclusão. 7 Referências.
1 INTRODUÇÃO
O Feminicídio recebeu sua designação própria de “assassinato de mulheres em contextos discriminatórios”, o marco de caracterização do crime se dá pela desigualdade de poder entre os gêneros masculino e feminino e ainda, por construções históricas, culturais, econômicas, políticas e sociais discriminatórias.
Para o julgamento destes que cometeram tal crime, é instituído o tribunal do Júri, previsto na Constituição Federal de 1988, ele é responsável por julgar crimes dolosos contra a vida, e no presente caso, os crimes dolosos contra a vida da mulher por razões da condição do seu sexo feminino.
Em assim sendo, esta pesquisa busca contestar uma conduta adotada pelo Tribunal do júri, qual seja: nos casos do crime de Feminicídio, subjuga a mulher-vítima, reiterando julgamentos morais ou alegando em defesa do homem- acusado o direito de matar através de doutrinas como a legítima defesa da honra, sendo esta uma criação dos advogados de defesa para conseguir chegar a um resultado mais favorável que o do homicídio privilegiado, colocando a culpa do homicídio na própria mulher.
A quantidade de absolvições reflete o pensamento da sociedade e serve para estruturar, ao longo dos anos, uma cultura que subjuga a mulher num segundo plano.
Desta forma, o presente estudo visa abordar o atual argumento utilizado pela defesa nos casos de Feminicídio no tribunal do júri visando à substituição de argumentos caducos no ordenamento jurídico e que ainda continuam em uso, na esteira, já foi natural uma tese de defesa que diminui a vítima, tentando atribuir-lhe a culpa pelo crime cometido pelo acusado.
2 DA INSTITUIÇÃO DO JÚRI
Como já mencionado, o tribunal do Júri previsto na Constituição Federal, na alínea “d”, do inciso XXXVIII do artigo 5° diz que o Tribunal do Júri é competente para julgar os crimes dolosos contra a vida, quais sejam: a) homicídio, b) infanticídio, c) participação em suicídio e d) aborto. Na mesma linha, o parágrafo primeiro do artigo 74 do Código de Processo Penal afirma que compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes previstos nos arts. 121, §§ 1o e 2o, 122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, consumados ou tentados. (Brasil, 1988).
São sorteados, a cada processo, 25 cidadãos que devem comparecer ao julgamento. Destes, apenas sete são sorteados para compor o conselho de sentença que irá definir a responsabilidade do acusado pelo crime. Ao final do julgamento, o colegiado popular deve responder aos chamados quesitos, que são as perguntas feitas pelo presidente do júri sobre o fato criminoso em si e as demais circunstâncias que o envolvem.
Fernando da Costa Tourinho Filho (2012, p. 149-150), definindo a seleção dos jurados, afirma que os juízes-presidentes devem ter uma maior cautela na seleção dos cidadãos que comporão o Conselho de Sentença, menciona assim:
É certo que muitas vezes as decisões do Júri deixam a desejar, mas, em compensação, quantas sentenças dos Juízes togados não são reformadas pela Instância Superior, e quantas decisões dos Tribunais não são anuladas pelos órgãos superiores do Poder Judiciário? Saibam os Juízes recrutar cidadãos idôneos para integrar o Tribunal leigo e muitos senões tendem a ser corrigidos. Mas em que consistiria essa idoneidade? Evidente que o cidadão que tem uma vida pública e privada sem mácula goza de idoneidade. O problema de avaliação compete ao Juiz Presidente do Tribunal do Júri ao proceder ao alistamento de que trata o art. 425 do CPP.
Os jurados são escolhidos ao acaso, retirados das listas dos cartórios eleitorais da região onde funciona o Tribunal do Júri, com a (única) cautela de se analisar: os antecedentes criminais de cada um. Há ainda o problema da seleção feita diretamente pelo juiz-presidente, pois, quando este assim procede, termina optando por pessoas de classe média, com um grau de instrução mais elevado. O ideal seria a formação do corpo de jurados com pessoas de todas as camadas sociais, para que possam assim participar de forma justa toda a classe social, ressalta-se ainda que estes jurados escolhidos, advém de uma criação patriarcal sexista, que ao escutar um discurso do advogado que julga a mulher, achando comum e normal.
3 O USO DA AMPLA DEFESA E A PLENITUDE DA DEFESA E SUA DIFERENCIAÇÃO
O direito à ampla defesa encontra respaldo constitucional, sendo erigido à condição de garantia fundamental ex vi art. 5º da Constituição Federal e precisamente no artigo 5º, inciso LV, in verbis: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. (Brasil, 1988).
Todavia, o direito à autodefesa pode ser renunciado pelo acusado, caso este prefira se manter em silêncio ou até mesmo não comparecer aos atos do processo. Já a defesa técnica não pode ser sob qualquer pretexto, objeto de renúncia. Além de ser necessária a presença de defesa técnica no processo, faz-se imprescindível que a mesma seja minimamente eficiente, conforme enuncia a súmula 523 do Supremo Tribunal Federal, que aduz: “No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”.
Para Leandro Razera (2015), a plenitude de defesa possui um significado mais abrangente do que ampla defesa, pois esta se vale de argumentos não jurídicos, tais como sociais, culturais, morais e religiosos.
Guilherme de Souza Nucci (2013, p. 30-31) no tocante ao assunto dispõe:
Vozes poderão surgir para sustentar o seguinte ponto de vista: o legislador constituinte simplesmente repetiu os princípios gerais da instituição do Júri, previstos na Constituição de 1946. Em razão disso, por puro descuido ou somente para ratificar uma ideia, acabou constando a duplicidade. Não nos soa correta a equiparação, até pelo fato de que o estabelecimento da diferença entre ambas as garantias somente é benefício ao acusado, com particular ênfase, em processos criminais no Tribunal Popular.
A expressão “ampla” indica algo vasto, extenso, enquanto a expressão “plena” significa algo completo, perfeito. A ampla defesa reclama uma abundante atuação do defensor, ainda que não seja completa e perfeita. Contudo, a plenitude de defesa exige uma integral atuação defensiva, valendo-se o defensor de todos os instrumentos previstos em lei, evitando-se qualquer forma de cerceamento. Em última análise, conforme Guilherme de Souza Nucci (2013, p. 31), “aos réus, no Tribunal do Júri, quer-se a defesa perfeita, dentro, obviamente, das limitações naturais dos seres humanos”.
Para Nucci (2010), no Júri, onde vigora o princípio da oralidade e da imediatidade, a atuação da defesa deve ser perfeita, mais que ampla, deve ser plena, visto inexistir outra chance. Portanto, há uma grande diferença entre ampla defesa e plenitude de defesa, sendo que esta última é muito mais ampla e complexa, visto ser admitida somente no âmbito do Júri, com o escopo de conscientizar os juízes de fato.
Nesse trilhar é a lição de Guilherme de Souza Nucci (2010, p. 282):
A aplicação da plenitude de defesa, no âmbito do Tribunal do Júri, fomenta, de certo modo, o desequilíbrio das partes, privilegiando-se a atuação da defesa, em virtude das várias peculiaridades de sua situação processual. Há que se garantir ao defensor o amplo acesso às provas e sua produção, sem se importar, em demasia, com a forma ou com os prazos estipulados pela lei ordinária. Deve-se assegurar ao defensor, desde que haja justificativa, um tempo razoável de dilação para a sua manifestação, ainda que esgotado o tempo previsto pelo Código de Processo Penal. Todas as teses defensivas (autodefesa e defesa técnica) devem ser bem expostas aos jurados no momento da votação.
Desta forma, para que a plenitude de defesa seja devidamente atendida, é indispensável que se garanta ao acusado o acesso a todo meio probatório lícito, por meio de seu advogado.
Foi de grande relevância o presente estudo onde se verificou os limites da plenitude defesa nos crimes de Feminicídio, e ainda, trouxe para a problemática da pesquisa: o advogado do acusado não pode sustentar em favor do assistido a tese da legítima defesa da honra, e ainda, se o controle ético ou ideológico da defesa criminal não pode impedir a sustentação de determinado argumento, tal conclusão não veicula, porém, uma obrigação do advogado necessariamente encampar a fala do acusado, já que nem sempre haverá uma vinculação entre as defesas técnica e pessoal no processo penal, sendo o advogado e o acusado, conforme adverte Claus Roxin (2007), reciprocamente autônomos. Estando, pois incabível tal tese levantada, levando em consideração que a tese de defesa da honra do homem ou até mesmo movido por forte emoção, ou crime passional, é totalmente contrária aos Direitos Humanos.
4 FEMINICÍDIO, GÊNERO E A LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA PARA O CONCEITO DE VIOLAÇÃO ESTRUTURAL DE DIREITOS HUMANOS
De acordo com Diniz (2017), o Feminicídio pode ser entendido como um novo tipo penal, ou seja, aquilo que está registrado na lei brasileira como uma qualificadora do crime de homicídio. Mas, ele pode ser entendido também no sentido mais amplo, no seu aspecto sociológico e histórico. “Nesse sentido, Feminicídio é uma palavra nova, criada para falar de algo que é persistente e ao mesmo tempo terrível: que as mulheres sofrem violência ao ponto de morrerem.”.
Da mesma forma entende Wiecko (2019) em que a ‘condição do sexo feminino’, acaba ficando muito forte a ideia de que sexo é um conceito biológico, natural, e ocultando que há relações desiguais de poder que são construídas cultural e socialmente e que resultam repetidamente em violências, entender isso é fundamental para o enfrentamento dessas violências.
O número de Feminicídios no Brasil o coloca em 7º lugar no ranking mundial, ficando na frente de países como o México e Paraguai, conforme mostra o Mapa da Violência 2012 produzido por Júlio Jacobo (2012). Consta neste documento que de 1980 a 2010 morreram assassinadas mais de 91.000 mulheres. Crimes estes que apresentam algumas características como o local, especialmente na faixa etária de 20 a 29 e de 30 a 30 anos que registra o maior número de casos. Assim, quase 40% dos casos foram praticados na residência, onde o agressor é o cônjuge ou ex-cônjuge e o meio utilizado em quase 60% dos casos é a força e o espancamento. Por fim, cabe destacar que os índices de reincidência chegam a 50,2% na faixa etária entre 20-29 anos e 58,8% naquela entre 30-39%.
Consta neste documento ainda, uma pequena queda nos índices de homicídio no ano de 2007, ou seja, logo após a aprovação da Lei Maria da Penha. Mas, rapidamente, voltou a crescer.
Fato este que demonstra que a lei Maria da Penha não foi suficiente para frear a violência extrema contra a mulher no Brasil. O que demonstra que a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem razão quando responsabilizou o Estado Mexicano pelas mortes das mulheres em Cidade Juarez. Não pelo homicídio em si, mas por sustentar uma cultura de discriminação contra a mulher, caracterizada especialmente pela tolerância a violência.
Um famoso caso que marcou a violência contra a mulher foi o caso do Campo Algodoneiro, em que a Corte Interamericana foi instada a se manifestar sobre a morte de três jovens mexicanas na Cidade Juarez. As três moças desapareceram em dias diferentes mais muito próximos no mês de outubro de 2001. Imediatamente suas famílias foram comunicar o desaparecimento na Unidade Policial. Os policiais trataram com desprezo, dizendo que as meninas teriam fugido com os namorados. Um chegou até a dizer que se fosse boa moça, estaria dentro de casa. Dias após, seus corpos foram encontrados numa plantação de algodão com sinais de violência sexual e tortura.
Fatalmente há muitas formas de violência contra mulher, das mais específicas: o assédio sexual nas ruas (caracterizado pelo simples elogio), a violência sexual em ambientes universitários, e ainda sua relativização nos crimes de estupro (como: a vítima não estava pedindo?), e por fim e não menos importante a violência doméstica. Vale ressaltar que homens também sofrem violência – violências, aliás, que podem ser agravadas por questões de gênero: se é fato que os homens morrem mais que mulheres, e em decorrência de conflitos interpessoais com armas de fogo e acidentes de carro, é razoável cogitar que estas mortes acontecem porque “homem que é homem não leva desaforo pra casa”, e porque “homem que é homem dirige feito macho”, fazendo com que o sexismo estruturante da sociedade é bem menos vantajoso para meninos e homens do que geralmente se imagina.
A defesa costuma explorar o perfil “transgressor” da mulher ao passo que no procedimento do Tribunal do Júri vigora o princípio constitucional da plenitude de defesa, o que abarcaria, segundo tal entendimento, toda e qualquer argumentação para salvaguardar a liberdade do réu, sobreposta a todo o resto – inclusive a dignidade da vítima do homicídio, se necessário for, versus o do homem trabalhador violado em sua honra para justificar o comportamento do acusado.
Nesta perspectiva faz-se relevante tal pesquisa em que pese o sexismo como fundamento estruturante das relações entre homens e mulheres na sociedade brasileira, e a notória persistência da violência contra a mulher decorrente desta estrutura cultural, seria válido recorrer ao argumento de estereotipia negativa da mulher vítima de homicídio, em nome da plenitude de defesa?
No mesmo sentido, entende Renata Tavares (2016, p. 207) que em relação à violência contra a mulher é resultado de séculos de discriminação, e que não é justo imputa-la somente ao sujeito que está sentado no banco dos réus:
Então aquele menino que nasce num lar onde não pode chorar, não pode brincar de boneca ou de amarelinha; é separado das meninas desde os primeiros anos de escola; vira um adolescente destinado aos esportes, lutas e etc..., não pode demonstrar seus sentimentos; torna-se um adulto que toma a cerveja cuja propaganda é uma mulher “gostosa”, assiste aos programas de TV onde essas moças dançam quase nuas; acha muito chato discurso de mulher, especialmente quando tem opinião, odeia a esposa do melhor amigo, pois ela “manda nele”, etc... Caso esta pessoa seja abandonada pela esposa, irá reagir de forma desproporcional.
Dessa forma, é necessária uma análise dos tipos de argumentos utilizados no Tribunal do Júri de Feminicídio que aprofundam ainda mais a cultura de discriminação contra a mulher, e analisando os Direitos humanos que visa à proteção para essa minoria.
Para Ferrajoli (2008, p. 77-91.) o direito de defesa, em essência é o direito de refutar a acusação. E se assenta sobre três fundamentos teóricos a seguir expostos:
O primeiro refere-se ao caráter de direito fundamental que impede que seja confiada a lógica do mercado como se tratasse de um direito patrimonial, devendo ser garantido pela esfera pública. O segundo revela-se no interesse público não só de condenar um culpado, mas especialmente de proteger um inocente. Por fim, no próprio processo em si, na participação dialética que vai influir na correta comprovação da verdade, que é a verdade processual, expressa processo em contraditório.
Em assim sendo, a ausência da garantia da defesa é uma abertura insustentável de nosso sistema processual, e que de acordo com Ferrajoli (2008): “debemos reconocer, además, que esta laguna, es decir la falta de defensa, termina por volver vanas todas las otras garan tías del correcto proceoso”.
É neste sentido que a prática do Tribunal do Júri, nos casos de Feminicídio, trata de revitimizar a mulher-vitima, reiterando julgamentos morais ou alegando em defesa do homem- acusado o direito de matar através de doutrinas como a legítima defesa da honra.
Como menciona Costa Júnior (2017), no Júri vigora o princípio da plenitude de defesa, o defensor poderá, ainda, suscitar teses subsidiárias, devendo sempre esclarecer aos jurados a possibilidade de entendimento divergente, homenageando-se a lógica da eventualidade. Desta forma, a tese da legitima defesa da honra é fruto do desenvolvimento histórico que tem seu ponto remoto no Código Penal de 1890 com a ideia de “perturbação do sentido e da inteligência”. Mas também é consequência jurídica da representação das mulheres nas sociedades de seu tempo: o repúdio do direito das mulheres que cometem adultério (ou exercitam seu direito ao sexo) à vida.
Mas, de acordo com Renata Tavares (2016, p. 204) foi com o Código Penal de 1940 que chegou a ser depurada. Se bem que retirou o CP a emoção e a paixão como excludentes de culpabilidade, estabeleceu a noção de violenta emoção para diminuir a pena. Os advogados criminalistas então desenvolveram a noção da legitima defesa da honra como tese empírica, época em que o padrão era fazer justiça com as próprias mãos.
De acordo com Evandro Lins e Silva (2018, p. 25), que:
O crime passional era muito comum. A tal ponto a concepção da vida era diferente que havia quase que um direito do homem, reconhecido pela sociedade, de matar a mulher se ela o enganasse. No interior, então! O sujeito era vítima da chacota pública, perdia a respeitabilidade na sua cidade se não tirasse um desforço contra a mulher. Depois as mulheres começaram a ter a mesma reação. Eu próprio defendi no júri algumas mulheres que mataram os maridos. Isso era muito frequente antigamente.
Sendo assim, é nítido perceber que a legitima defesa da honra foi uma criação dos advogados de defesa para conseguir chegar a um resultado mais favorável que o do homicídio privilegiado, colocando a culpa do homicídio na própria mulher. Esclarece Renata Tavares (2016) que a quantidade de absolvições reflete o pensamento da sociedade naquele tempo e serviu para estruturar, ao longo dos anos, uma cultura que subjuga a mulher num segundo plano. Cultura esta que persiste até os dias de hoje onde a violência contra a mulher é capaz de fazer um número absurdo de vítimas, contraindo o processo histórico de positivação dos direitos humanos no plano nacional e internacional.
5 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A VIOLAÇÃO ESTRUTURAL DE DIREITOS HUMANOS
Segundo Nash (2009, p. 109) é uma questão de violação estrutural de direitos humanos: as violações em que é o Estado e suas instituições que as permitem e facilitam. Assim sendo, funcionam as estruturas jurídicas, políticas sobre a base de certos parâmetros culturais que mantem viva tais práticas violadores, tornando invisíveis tais direitos. Tais condições culturais devem, então, apresentar os seguintes elementos: a ordem institucional e as estruturas do Estado atuando para excluir um determinado grupo de pessoas; a sociedade em seu conjunto adota certa posição em relação ao grupo, seja em razão do preconceito ou omite-se em relação a outros grupos (presos e criança e adolescente, respectivamente); por fim, a resposta está vinculada a necessidade de intervenção de várias entidades, requerendo a adoção de um conjunto completo e coordenado de ações.
Para Campos (2015, p. 90), é a decisão que conduz o Estado a observar a dignidade da pessoa humana e a garantir os direitos humanos onde há violação sistemática destes direitos.
Situação esta que se aplica perfeitamente ao caso da violência de gênero no Estado do Piauí e no Brasil. Assim, a violação sistemática dos direitos das mulheres, sendo resultado de uma cultura de discriminação, impõe ao Estado uma série de obrigações que não só um órgão, mas vários deles devem atuar.
De acordo com a Constituição Federal: A toda a pessoa humana é reconhecida uma gama de direitos que só serão eficazes caso possam ser exigidos, ao menos, judicialmente. Seu nome é acesso à justiça e envolve a obrigação dos Estados de assegurarem tal direito por meio de acesso a um advogado.
Como menciona Renata Tavares (2016, p. 2018), vindo da tradição latino-americana, a Defensoria Pública é a instituição estatal dotada da capacidade de fazer efetivo tais direitos as pessoas que não possuem condições de apontar um advogado. No Brasil, é a defensoria pública instituição essencial ao estado democrático de direito e instrumento da democracia bem como possui o dever de promover os direitos humanos.
Dessa função extrai-se uma obrigação positiva, ou seja, de assegurar o efetivo acesso de gozo de tais direitos, bem como uma posição negativa, qual seja de abster-se de determinadas atitudes que aprofundem a violação destes direitos.
Isso, em hipótese alguma, pode significar uma limitação de atuação no campo de defesa, que deve ser amplo. Mas efetivamente no reconhecimento de que esta defesa deve ser ética e feita dentro dos parâmetros institucionais previstos na Constituição. Ou seja, o Defensor não pode ter a esquizofrênica posição de promover os direitos humanos e, ao mesmo tempo, sustentar teses que sustentem tais violações de direitos.
Neste sentido é que o argumento da legitima defesa da honra nos casos no Feminicídio no Tribunal de Júri deve ser substituído pelo argumento da cultura de discriminação produzida uma serie de omissões estatais que fazem o agressor uma espécie de vítima cultural.
E assim resiste o grande argumento para os Advogados e Defensores com suas teses primárias e subsidiárias de que no júri estão para a defesa daqueles que perpetraram a violência extrema contra a mulher, e em assim sendo, se essa violência é resultado de muito tempo de discriminação, é legítimo ou proporcional imputa-la somente ao sujeito que está sentado no banco dos réus?
Ainda assim persiste a angústia de se ela deve pagar sozinha por uma violação estrutural direitos humanos.
E como esclarece Renata Tavares (2015, p. 209):
O argumento defensivo: ao invés de alegar a legitima defesa da honra, contribuindo para aprofundar uma cultura de discriminação contra a mulher, o Defensor Público, em sua função de promover os direitos humanos, e a Defensoria como metagarantia, servirá para, além de fazer uma defesa ética do usuário da Defensoria, sem recorrer a recursos que aprofundem a discriminação contra a mulher, vai colocar em relevo a questão cultural que sustenta tal discriminação, problematizando o papel do agressor, fruto desta cultura.
Da mesma forma, o Advogado de defesa deve, ao elaborar seu plano de defesa com teses primárias e secundárias, analisar a Constituição Federal e os Direitos Humanos, visando a garantia destes, que, ao aplicando teses de desvalorização da mulher e culpando-a pelo próprio crime, estará violando com vigor os Direitos Fundamentais.
6 CONCLUSÃO
O discurso feminista é argumento necessário para na defesa de um acusado por Feminicídio onde há a substituição do argumento de legítima defesa da honra que contribui na discriminação contra a mulher. Tal discurso analisaria a posição do homem ao praticar este crime, homem este que foi criado em uma sociedade patriarcal, machista e sexista, que cresceu ouvindo e vendo comportamentos violentos do pai, tios, primos, irmãos e amigos, contra as mulheres.
Ressalta-se ainda, que todos esses comportamentos influenciam na criação e desenvolvimento deste em comunidade, pois quando se fala da criação (ato de dar existência aos seres e ao mundo), é justamente nessa fase que todo o crescimento dele como pessoa se sobressairá. E em uma criação onde ele recebeu todos os ensinamentos de homem patriarcal em que deve “lavar sua honra”, este tipo de discurso de criação acaba interferindo em suas atitudes futuras.
Dessa maneira, é necessário a criação do respeito e igualdade às mulheres, pois a disponibilidade isolada é um ato de cortesia, a sonoridade é a disponibilidade responsável. Se compreender como parte de um todo é somatizar vitórias, numa luta diária, dolorosa, injusta e milenar. É aprender a se conhecer em vivências que não necessariamente viveu, nem viverá.
Dessa forma, é inteligível que o argumento utilizado por defensores e advogados em teses de defesa de um acusado do crime de Feminícidio não esteja em conformidade com a Magna Carta, onde não se analisa sua criação enquanto homem integrante de uma sociedade patriarcal machista e injusta.
REFERENCIAS
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[1] Orientador professor do Curso de Bacharelado em Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA Teresina-PI. Doutorando em Ciências Criminais pela Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. E-mail: [email protected].
Advogada especialista em ciências criminais
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Vitória Andressa Loiola dos. O discurso feminista como argumento primordial na defesa de um acusado por feminicídio: a substituição do argumento de legítima defesa da honra que contribui na discriminação contra a mulher Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 nov 2019, 04:58. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53724/o-discurso-feminista-como-argumento-primordial-na-defesa-de-um-acusado-por-feminicdio-a-substituio-do-argumento-de-legtima-defesa-da-honra-que-contribui-na-discriminao-contra-a-mulher. Acesso em: 22 nov 2024.
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