RESUMO: Crimes de perigo abstrato: antecipação da tutela penal face aos desafios da sociedade de risco. O presente artigo tem por objetivo demonstrar que a eleição dos crimes de perigo abstrato é uma estratégia legislativa legítima para combater as novas formas de criminalidade e enfrentar os novos riscos oriundos do atual estágio de desenvolvimento econômico e tecnológico. O trabalho é fruto de uma pesquisa exploratória da bibliografia relacionada ao tema e da utilização do método dialético, com a análise das várias teses sobre o assunto, a contextualização do momento de instabilidade social vivenciado nos dias de hoje e as influências que ele traz para a legislação e a dogmática penal. Após a abordagem aos temas citados, lançaremos uma proposta de adequação funcional dos crimes de perigo abstrato aos ditames do Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: sociedade de risco, crimes de perigo, crimes de perigo abstrato, princípios constitucionais.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. A SOCIEDADE DE RISCO. 1.1. ESPÉCIES DE RISCO. 1.1.1. RISCOS DE PERIGO GLOBAL. 1.1.2. RISCOS RELACIONADOS COM A POBREZA. 1.1.3. RISCOS DO USO DE ARMAS DE DESTRUIÇÃO EM MASSA. 1.2. CARACTERÍSTICAS DOS NOVOS RISCOS. 1.3. O PARADOXO DO RISCO. 1.4. IMPACTOS DO PARADIGMA DO RISCO PARA O DIREITO PENAL DA PÓS-MODERNIDADE. 1.5. DIREITO PENAL DO RISCO. 2. DO PERIGO. 2.1. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO. 2.1.1. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO COM PRESUNÇÃO “JURIS TANTUM”. 2.1.2 CRIMES DE PERIGO ABSTRATO-CONCRETO. 2.2. RAZÕES PARA A MASSIFICAÇÃO DO USO DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO. 2.3. PROPOSTA DE CONSTRUÇÃO FUNCIONAL DO TIPO DE PERIGO ABSTRATO. 2.3.1. PROTEÇÃO DE BENS JURÍDICOS COM REFRENTE INDIVIDUAL. 2.3.2. RISCO COMO SUBSTRATO MATERIAL MÍNIMO DOS DELITOS DE PERIGO ABSTRATO. 2.3.3. ÔNUS DA PROVA DA PERICULOSIDADE. 3. DA LEGITIMIDADE DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO. 3.1. CONFORMAÇÃO COM O PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE. 3.2. CONFORMAÇÃO COM O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. 3.3. CONFORMAÇÃO COM O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA. 3.4. CONFORMAÇÃO COM O PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem o objetivo de demonstrar que a eleição dos crimes de perigo abstrato é uma estratégia legítima para combater as novas formas de criminalidade e enfrentar os novos riscos oriundos do atual estágio de desenvolvimento econômico e tecnológico.
O foco do estudo recairá sobre a legitimidade do uso da técnica legislativa dos crimes de perigo abstrato como instrumento de combate aos novos riscos.
O trabalho será desenvolvido através dos métodos dedutivo e dialético e divide-se em três capítulos.
O primeiro deles trata da contextualização do momento de instabilidade vivenciado nas relações sociais da atualidade, ou seja, da apresentação da sociedade de risco, das espécies de perigo a que estamos vulneráveis e das principais características destes riscos.
Ainda no primeiro capítulo traremos uma análise sobre os impactos dos riscos para o estudo do direito penal da pós-modernidade. Neste ponto, serão abordados os principais aspectos que levaram ao surgimento do “Direito Penal do Risco”.
A seguir, será feito um corte para estudar o principal efeito da constatação dos novos riscos e do discurso pelo controle das atividades perigosas, qual seja, os crimes de perigo. Serão estudados de forma um pouco mais específica os crimes de perigo abstrato, eleitos como sendo o principal instrumento de antecipação de tutela penal no direito atual. Neste capítulo, serão apresentadas as razões para a massificação do uso desta técnica legislativa e uma proposta de construção funcional destes crimes, de modo a adequá-los com os princípios constitucionais.
Por fim, será analisada a legitimidade do uso desta técnica como meio de enfrentamento aos desafios da sociedade de risco. Demonstraremos que é possível fazer uma interpretação dos crimes de perigo abstrato conforme os princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito.
1. A SOCIEDADE DE RISCO
A sociedade atual caracteriza-se como uma sociedade de riscos. Essa constatação é feita diante do progresso tecnológico, de novas formas de relacionamento humano e dos problemas que se apresentam aos responsáveis pela produção e aplicação do direito.
Um dos responsáveis pela difusão do termo “sociedade de risco” foi o sociólogo Ulrich Beck. Em sua obra, intitulada Risk Society, o teórico alemão afirma que a sociedade industrial, caracterizada pela produção e distribuição em massa, foi deslocada pela sociedade de risco, que tem como característica marcante a dissipação do risco em relação às diferentes classes sociais, econômicas e unidades geográficas.
Segundo GUIVANT (2001),
o desenvolvimento da ciência e da técnica não poderiam mais dar conta da predição e controle dos riscos que contribuiu decisivamente para criar e que geram consequências de alta gravidade para a saúde humana e para o meio ambiente, desconhecidas a longo prazo e que, quando descobertas, tendem a ser irreversíveis.(GUIVANT, 2001, pág.96)
O professor BOTTINI (2010) corrobora o pensamento de Beck quando afirma que a sociedade de risco surgiu no período da Revolução Industrial, com a substituição da forma de produção artesanal pela industrial. Neste período, os produtores foram obrigados a buscar inovações tecnológicas que permitissem realizar a produção e a distribuição em massa de insumos, sob pena de ficarem obsoletos.
A consequência disso foi que o progresso da ciência não foi acompanhado da análise dos efeitos decorrentes do uso das novas tecnologias. Segundo BOTTINI (2010, pág.35), “do descompasso entre o surgimento de inovações científicas e o conhecimento das consequências de seu uso surge a incerteza, a insegurança, que obrigam o ser humano a lidar com o risco sob uma nova perspectiva”.
O risco passou a fazer parte do modelo de desenvolvimento econômico e passou a compor a o núcleo da atividade social, surgindo assim, a “sociedade de risco”.
O risco, antes periférico e acessório, passou a ser encarado como elemento nuclear da sociedade atual e isso trouxe reflexos para o direito penal e para as demais atividades de controle social.
Em passagem de sua obra, o festejado mestre GOMES (2011), admite que estamos diante de um novo modelo social e chega até a identificar algumas espécies de risco a que estamos vulneráveis hoje em dia. Segundo ele,
À sociedade atual, para além dos riscos tradicionais e dos emanados da sociedade industrial, foram agregados outros riscos inerentes à modernidade (ou pós-modernidade). Mais preocupantes ainda: riscos generalizados, riscos para toda a coletividade ou para um grande número de pessoas. Atividades contra o meio ambiente, ou informatizadas, ou que envolvem energia nuclear, produtos de massa, biológicos ou biotecnológicos, fabricação em massa, venda e consumo indiscriminados etc. produzem riscos que excedem os níveis de segurança coletiva. São riscos que podem gerar danos irreversíveis e que contam com origens difusas. (GOMES, 2011, p.40)
Podemos citar como exemplos deste tipo de risco, os desastres ambientais causados pelo rompimento das barragens de rejeito de minério, ocorridos nas cidades de Mariana/MG, no ano de 2015, e na cidade de Brumadinho/MG, em 2019, e o mais recente vazamento de óleo que atingiu as praias do Nordeste, também este ano.
1.1 ESPÉCIES DE RISCOS
Depois desta breve apresentação do contexto social atual, no qual estão inseridos os novos riscos, cumpre-nos apresentá-los de forma mais detalhada.
É importante que se diga que nem todos os riscos que serão apresentados podem ser rotulados de novos, eles apenas ganharam maior importância e investigação sob foco diversos, como é o caso da degradação ambiental.
Recorremos mais uma vez a lição de GUIVANT (2001), na qual ela afirma que Beck apresenta três grandes categorias de riscos globais que se complementam e se acentuam entre si. São elas:
1.1.1. Riscos de perigo global: são vinculados a destruição ecológica causada pelo alto nível de desenvolvimento industrial. Estão presentes em nações mais desenvolvidas. São exemplos dessa categoria de riscos o buraco na camada de ozônio, efeito estufa, os riscos da manipulação genética de plantas e animais.
1.1.2. Riscos relacionados com a pobreza: distinguem-se dos primeiros, pois estão localizados em países subdesenvolvidos, em desenvolvimento ou com processos de industrialização não concluídos. Têm seus efeitos limitados geograficamente e as consequências globais desses riscos são sentidas apenas a médio prazo e de maneira secundária. São exemplos dessa espécie, os riscos provenientes do uso de tecnologias ultrapassadas, acidentes em usinas atômicas em países subdesenvolvidos, problemas decorrentes do descarte do lixo e resíduos tóxicos etc.
1.1.3. Risco do uso de armas de destruição em massa - NBC (“nuclear, biological and chemical”): são os perigos da manipulação de matérias primas para construção de armas nucleares, químicas ou biológicas. Este risco se agrava ainda mais em países onde existem organizações fundamentalistas ou terroristas privadas.
1.2. CARCTERÍSTICAS DOS NOVOS RISCOS.
A primeira característica dos novos riscos, e talvez a mais importante para o nosso estudo, é o fato de eles estarem relacionados com as atividades humanas. Antes os riscos eram apenas decorrentes da natureza e por isso não podiam sofrer nenhuma forma de controle. Na pós-modernidade, com o desenvolvimento das técnicas industriais, o homem também passou a ameaçar os interesses mais importantes à vida em sociedade. E agora, se a periculosidade tem origem em comportamentos humanos, pode também ser controlado por medidas de restrição, por sistemas de gerenciamento de riscos.
Outra característica marcante dos novos riscos sociais diz respeito a extensão dos danos possíveis. Os danos aos bens jurídicos pessoais não ficam mais restritos aos locais onde são desenvolvidas atividades perigosas. A manipulação errada de materiais químicos e nucleares, por exemplo, pode colocar em risco a existência do planeta. Por isso hoje, o legislador tende a optar pela norma de prevenção, na qual a atividade passa a ser o núcleo do injusto penal. Diante das graves consequências, importa mais evitar ou controlar condutas perigosas do que reprimir os resultados.
A dificuldade de estabelecer o nexo causal entre a realização de uma atividade e seus resultados é outra característica dos riscos atuais. As noções de espaço e tempo não podem mais ser aplicadas a sociedade atual como eram antes. As técnicas inovadoras utilizadas pelo modelo de produção da sociedade de risco não foram acompanhadas pelos mecanismos de avaliação. Para BOTTINI (2010, pág.40), “a possibilidade de uma ação causar um resultado em tempo e espaços distintos e distantes desafia os modelos estáveis de determinação de relações causais utilizados até agora”.
Estamos vivendo em uma época de total desconhecimento. Segundo BOTTINI (2010, pág.40), “os avanços científicos no desenvolvimento de técnicas de produção não são acompanhados por avanços que levem ao conhecimento dos efeitos da utilização destas técnicas”. O desconhecimento do nexo de causalidade e a insuficiência de meios de cálculo dos riscos implica na dificuldade de determinar critérios claros de imputação, o que por sua vez dificulta o funcionamento dos mecanismos de controle.
Outra peculiaridade da sociedade de risco atual é o chamado “efeito bumerangue”. Os riscos agora são democratizados, ou seja, passaram a atingir todas as camadas sociais. Tanto aqueles que produzem como aqueles que se beneficiam da produção são alvos dos novos riscos. Isto traz como consequência o aumento das reinvindicações pelo controle dos riscos. Antes, apenas a classe social que suportava os riscos é que cobrava um maior controle das atividades perigosas. A camada social proprietária dos meios de produção estava preocupada em desenvolver ainda mais as técnicas para agregar valor aos insumos. Agora, esta mesma camada social sofre as consequências do progresso tecnológico e também passa a integrar o coro pela melhoria dos mecanismos de controle dos riscos. Cria-se aí o conflito: qual o risco pode ser tolerado e qual precisa ser restringido?
1.3 O PARADOXO DO RISCO.
Pelo que podemos observar, o modelo de produção da sociedade atual, pautado na busca constante por modernização, pelo desenvolvimento de tecnologias que permitam aumentar a produtividade e diminuir os custos, trouxe como consequência o desconhecimento sobre os perigos da utilização dessas mesmas tecnologias e o acirramento dos discursos por um maior controle das atividades perigosas.
O paradoxo do risco surge do conflito entre o discurso dos que clamam por um endurecimento do controle de comportamentos perigosos e daqueles que dependem do risco para a manutenção de seus sistemas de produção e enriquecimento.
O grande paradoxo da sociedade atual é que o risco, inerente às atividades de desenvolvimento, também coincide com o seu próprio fator de desequilíbrio. Para BOTTINI (2010, pág.50) “as novas dimensões do risco desequilibram a ordem social e econômica e colocam em questão a própria funcionalidade dos institutos e afetam todas as esferas de relacionamento, público e privado”.
Este fenômeno também traz repercussões para o direito, pois ele está inserido no contexto social e seus critérios devem ser eficazes para manter o equilíbrio das relações sociais basilares.
Em decorrência do conflito entre o discurso de defesa do risco, como motor do desenvolvimento, e o discurso pela restrição do mesmo risco, como ameaça, surge a atividade de gestão do risco, cada vez mais relevante e presente em nossos dias.
O direito penal tem nítido caráter de controle social e inegavelmente é um instrumento de gerenciamento de riscos.
O direito penal não é indiferente ao seu entorno, sofre influências das discussões e dos anseios da sociedade e reflete suas angústias em tentativas de superar os conflitos que se apresentam.
A nova criminalidade e os novos conflitos revelam a dificuldade de tratar o mundo atual por intermédio de perspectivas ultrapassadas. Os elementos tradicionais da dogmática penal têm de ser superados. Os conceitos de autoria, causalidade, culpabilidade e de resultado não estão mais adequados à realidade e aos paradoxos percebidos pelo atual modelo de organização social.
Recorremos mais uma vez a lição do mestre GOMES (2011), que faz a seguinte constatação: “o que importa, numa sociedade de riscos (tal qual a que vivemos na atualidade, segundo Ulrich Beck), é o desvalor da ação (criação de riscos), não o do resultado”.
O direito penal, tradicionalmente utilizado como meio de intervenção estatal de repressão de condutas socialmente indesejáveis, transmuda-se e passa a ser um dos mecanismos mais utilizados pelo Estado na luta pela contenção preventiva de condutas hipoteticamente arriscadas. Seu campo de atuação é largamente expandido, para que possa intervir em campos que até então lhe eram estranhos, como na economia, no meio ambiente, nas relações de consumo, na manipulação genética etc. Mas, ao se expandir para cumprir os ideais prevencionistas, norteados pela teoria dos riscos, depara-se o Direito Penal com dilemas estruturais internos, pois essas novas áreas demandam um atuar completamente novo de seus mecanismos. Assim, o arcabouço fundamental do Direito Penal tradicional passa a ser redesenhado para que surja o que se pode chamar de “Direito Penal do Risco”.
Neste sentido, BOTTINI (2010, pág.88) diz que, “o direito penal passa a orientar seus institutos à prevenção, à inibição de atividades, no momento antecedente à causação do mal, antes da afetação do bem jurídico protegido. A norma penal visa reprimir comportamentos potencialmente danosos”.
Esse fenômeno expansivo que vive o direito penal é fruto da reflexividade dos riscos oriundos da sociedade atual. Se as categorias economicamente dominantes não estivessem sofrendo as consequências danosas das atividades arriscadas, este alargamento que o direito penal vem sofrendo seria muito mais lento. O “efeito bumerangue”, característica dos riscos atuais, traz unidade ao discurso por maior controle e é um estímulo para a expansão do direito penal.
Aliado a isso, ainda temos a influência da mídia. A todo o tempo os meios de comunicação de massa transmitem uma sensação de insegurança para a população, que responde com mais demandas por intervenção penal.
Esse clamor por uma atuação mais incisiva do direito penal é decorrência da aparente inoperância dos outros meios de controle social. O direito civil não dispõe de meios eficazes para inibir a criação dos danos, seus institutos são voltados muito mais a reparação do que a prevenção. O direito administrativo também não possui poder intimidativo suficientemente forte para inibir a realização de atividades arriscadas, seja pela falta de estrutura estatal, existente em todas as esferas do Poder Público, seja pelo fato de suas sanções pecuniárias não causarem temor aos agentes.
Diante disso, sobra ao direito penal a ilusão de ser a tábua de salvação da sociedade atual contra os perigos decorrentes do uso das novas tecnologias. A população passa a se organizar, a reivindicar a intervenção penal nas atividades de controle dos riscos e começa também a ter participação nas decisões políticas e judiciais. BOTTINI (2010, pág.92) resume bem esse fenômeno quando diz que, “o público deixa de ser um simples destinatário da norma jurídica, para se tornar, ao mesmo tempo, um elemento indutor deste sistema, interferindo na produção legislativa e orientando a construção de um novo direito penal”.
1.4. OS IMPACTOS DO PARADIGMA DO RISCO PARA O DIREITO PENAL DA PÓS-MODERNIDADE.
Depois de vistas algumas das razões sociais e políticas para o fenômeno expansivo, nos deteremos à análise dos principais impactos que o paradigma do risco trouxe para a atividade legislativa e para a dogmática penal.
A primeira mudança que vem sendo observada e encarada como consequência do paradigma do risco é o aumento da atividade legislativa de criação de tipos penais. Vários diplomas legais foram editados ou modificados para atender aos clamores por maior controle de atividades arriscadas. No Brasil, podemos citar como produtos desse fenômeno, as Leis n°7.492/86, n°8.137/90, n°9.503/97, n°9.605/98, Lei nº 11.705/2008, Lei nº11.343/2006, Lei nº11.105/2005, Lei nº 10.826/2003, dentre outras.
Em consequência disto, houve também uma ampliação dos campos de proteção dos bens jurídicos. O direito penal antes voltado para a proteção de bens individuais como vida, liberdade e patrimônio, passou a estender sua proteção para bens de titularidade coletiva ou difusa.
As ameaças atuais transcendem a lesão de bens jurídicos individuais, ligados a uma vítima definida, elas podem afetar interesses tidos como supraindividuais, interesses da sociedade considerada como um todo. Por isso, bens jurídicos como o meio-ambiente, ordem econômica, sistema financeiro, saúde pública, dentre outros, passaram a ser objeto de proteção do direito penal.
Outra consequência da dinâmica de produção e desenvolvimento dos novos riscos é a utilização pelo legislador das normas penais em branco. O uso dessa técnica no direito penal não é novidade, porém observa-se que diante da rapidez das inovações tecnológicas o legislador tem deixado de lado os mandados de determinação, os tipos fechados e tem recorrido a descrição de condutas ilícitas de maneira genérica, remetendo o preenchimento do conteúdo a regulamentos mais flexíveis.
Outro instrumento que vem sendo largamente utilizado pelo legislador penal como forma de enfrentamento aos riscos da sociedade atual é o crime de perigo abstrato. Os crimes de perigo abstrato sempre estiveram presentes na legislação penal pátria, porém eram utilizados de forma excepcional.
Hoje, essa técnica é adotada com o nítido caráter de antecipação da tutela penal, visando garantir de forma mais eficaz a proteção aos bens eleitos como indispensáveis à vida em comum.
A legitimidade dos crimes de perigo abstrato é o tema central de nosso estudo e voltaremos a falar sobre eles mais adiante.
Continuando com a análise dos impactos trazidos pelo paradigma do risco para o direito penal, temos que suas consequências foram sentidas não só no campo legislativo. A dogmática penal também sofreu as influências da nova estrutura social e precisou reconstruir seus conceitos para se adaptar à nova realidade.
A primeira mudança notada no campo da dogmática penal diz respeito ao conceito de causalidade. Segundo BOTTINI (2010, pág.97), “a imputação de um resultado a uma conduta, com a consequente responsabilização do agente passa a ser auferida por outros critérios, que não a mera relação causal naturalística”.
O risco também passou a ser elemento da construção dogmática das modernas teorias da imputação objetiva. “A ação penalmente relevante não é mais aquela que causa, no sentido naturalístico, um resultado danoso, mas aquela que cria um risco relevante e intolerável para o bem jurídico protegido”. (BOTTINI, 2010, pág.98).
Nos dizeres de NETTO (2006, pág.130), “a correlação, portanto, entre direito penal e sociedade de risco faz-se exatamente na noção do risco, a qual, funcionalmente, deve ‘contaminar’ toda a interpretação e alcance dos tipos incriminadores, utilizando-se para isso dos instrumentos da imputação objetiva”.
Os conceitos de autoria e participação também sofrem as influências das complexas relações sociais. É preciso reavaliar os critérios de responsabilização por atos danosos ou perigosos em virtude das complexas estruturas empresariais. No interior das organizações empresariais, os atos decisórios são construídos por vários agentes e em diferentes etapas, o que torna difícil a atribuição de um resultado a uma só pessoa. É neste contexto que se começa a falar da responsabilidade penal da pessoa jurídica, tema bastante controvertido e que já conta com previsão legal em nosso país.
O movimento de expansão do direito penal, visando atender às expectativas sociais pela contenção de riscos tem trazido também uma mitigação dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito e por isso tem sofrido duras críticas da doutrina.
Esse direito penal de novos contornos também se depara com o paradoxo do risco. Ao mesmo tempo em que há uma demanda social pela expansão dos instrumentos de controle, não se requer uma mudança drástica na estrutura econômica. Cobra-se do Estado uma postura mais enérgica no combate aos novos riscos, mas não se postula uma ruptura do modelo produtivo. Isso acaba por dificultar o estabelecimento de critérios, parâmetros e definições dogmáticas precisas e por isso o recurso cada vez mais frequente a normas abertas e a fluidez dos bens jurídicos protegidos.
O que tentaremos demonstrar com o presente estudo é que é possível superar algumas dessas dificuldades e apresentar, pelo menos no que diz respeito aos crimes de perigo abstrato, uma construção metodológica que se adeque aos primados do Estado Democrático de Direito.
1.5. DIREITO PENAL DO RISCO.
Alguns teóricos do direito penal contemporâneo admitem sem maiores problemas o uso do direito penal para enfrentar os novos riscos. Para isso, propõem uma mitigação de alguns princípios, o emprego de mecanismos de antecipação de tutela e o abandono de algumas garantias dos cidadãos.
Os defensores do direito penal do risco querem que o direito penal assuma uma “posição de enfrentamento antecipado e preventivo das situações de possível perigo para a estabilidade social e garanta as expectativas e a segurança do normal funcionamento dos contextos de interação” (BOTTINI, 2010, pág.106).
Schünemann (1998), apud Medeiros (2009) conclui que a peculiaridade da sociedade industrial atual reside unicamente no extraordinário incremento de interconexões causais. A sociedade de risco se caracteriza pela existência de relações causais múltiplas, cujo esclarecimento em detalhes de suas causas é de todo ponto impossível com os métodos e instrumentos científico-naturais atuais. Com base nesse ponto de apoio, Schünemann traça uma proposta metodológica na qual é reconhecida a legitimidade dos delitos de perigo abstrato como mecanismo de trânsito evolutivo do direito penal na proteção de bens que o legislador reputa como indispensáveis.
Para o autor, uma atuação racional do direito penal contemporâneo passa pela utilização sistemática de incriminações de perigo abstrato. No entanto, esta sistemática deve seguir parâmetros de direcionamento traçados em quatro níveis. No primeiro nível, para que o direito penal possa seguir no cumprimento de sua missão de proteger bens jurídicos, há que se averiguar quais bens coletivos são dignos de proteção. Num segundo nível de exame, deve-se assegurar que o comportamento descrito na norma como proibido não se ache abarcado pelo legítimo âmbito de liberdade do indivíduo. Portanto, antes da criação de um delito de perigo abstrato sempre há que se delinear que interesse legítimo poderia ter o indivíduo na realização da modalidade apreciada. No terceiro nível, para que se cumpra o princípio “nullum crimem sine lege”, há que se ter em conta o princípio da determinação. E, finalmente, no quarto nível, deve-se reexaminar a proporcionalidade, isto é, a existência de uma relação adequada entre o injusto típico e a intensidade da pena.
García Martín (2003), citado na obra de Bottini (2010), dispõe que os institutos do direito penal clássico estão obsoletos e não servem para fazer frente aos desafios postos pela sociedade de risco. Para ele, a criminalidade empresarial, a globalização, a utilização de redes logísticas complexas e eficientes são fenômenos da sociedade atual que precisam de um olhar atento do direito penal. Porém, uma resposta adequada para os riscos oriundos destes fenômenos sociais não pode ser dada por um sistema repressivo liberal e garantista.
García Martín (2003), apud Bottini (2010, pág.107) dispõe que o “enfrentamento destas situações não pode ser feito eficientemente somente por meio de alterações formais e quantitativas na legislação penal, mas exige uma ruptura material, substancial, em relação ao direito penal liberal”.
As proposições acima oferecem mecanismos mais aptos ao controle dos riscos, porém a flexibilização excessiva aos limites do “ius puniendi” poderia levar a arbitrariedades. A observação aos princípios do Estado Democrático de Direito é necessária para que não se crie um sistema criminal excessivamente repressor e disfuncional.
2. DO PERIGO.
Conforme podemos perceber pelo que foi exposto, um dos instrumentos preferidos de enfrentamento dos riscos da sociedade atual é a utilização dos crimes de perigo, notadamente os crimes de perigo abstrato, objeto central do nosso estudo.
Pode-se afirmar que os tipos de perigo abstrato constituem o núcleo central do direito penal do risco. Como ensina BOTTINI (2010, pág.96), “a criminalização de condutas por meio desta técnica visa a antecipação da incidência da norma, para afetar condutas antes de qualquer resultado lesivo”.
O objetivo do legislador penal com o uso desta técnica é garantir, de forma mais eficaz, a proteção dos bens jurídicos eleitos como indispensáveis à vida em comum.
Antes de nos aprofundarmos no estudo do crime em si é necessário ter em mente o que os doutrinadores consideram como “perigo”. Existe muita discussão em torno do conceito de perigo, mas ficaremos com aquele apresentado pelo mestre Miguel Reale Júnior, citado por SILVA (2003, pág.54), que define o perigo como sendo “a aptidão, a idoneidade de um fenômeno de ser causa de dano, ou seja, é a modificação de um estado verificado no mundo exterior com a potencialidade de produzir a perda ou diminuição de um bem, o sacrifício ou a restrição de um interesse”.
Com base nesse conceito, a doutrina passou a travar novos debates. Indaga-se: para a configuração do perigo é necessário a probabilidade de dano ou apenas a possibilidade?
A corrente majoritária defende que é necessária a probabilidade de um dano para existência do perigo. A doutrina minoritária contenta-se apenas com a possibilidade de dano.
Para SILVA (2003, pág.54) “a probabilidade situa-se em um nível mais intenso em confrontação com a possibilidade, configurando uma situação de real potencialidade para a ocorrência do evento, excluindo a eventualidade”.
Quando se fala em probabilidade de ocorrência do resultado não se requer a probabilidade matemática ou estatística. Basta que os fatores de risco tenham uma acentuada potencialidade de realização para que estejamos diante de uma situação que merece ser restringida pelo gestor de risco, neste caso o operador do direito.
Depois de tecidos alguns comentários sobre o perigo, passaremos a estudar especificamente os crimes de perigo abstrato.
2.1. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO.
SILVA (2003, pág.72) define os crimes de perigo abstrato como “aqueles cujo perigo é ínsito na conduta e presumido, segundo a doutrina majoritária, ‘juris et de jure’”.
Os crimes de perigo concreto trazem o perigo como elemento típico e precisam de uma análise caso a caso, “a posteriori”, enquanto nos crimes de perigo abstrato, o perigo é apenas a motivação para a edição da norma e a análise da situação perigosa é feita “a priori”.
O professor Miguel Reale Júnior, citado por SILVA (2003), assinala que, “na construção do modelo típico dos crimes de perigo abstrato, o legislador, adstrito à realidade e à experiência, torna puníveis condutas que, necessariamente, atendida a natureza das coisas, trazem ínsito um perigo ao bem objeto de tutela”. (SILVA, 2003, pág.73)
SILVA (2003, pág.73) arremata o pensamento do mestre Miguel Reale Júnior quando diz que, “deve-se atender, na técnica de tipificação dos crimes de perigo abstrato, a uma necessidade decorrente da natureza das coisas, ou seja, as figuras delituosas assim tipificadas devem atender ao reclamo de tutela baseado na lesividade que a ação encerra, em razão da inerência do perigo que guarda em si”.
A utilização desta técnica de tipificação sofre duras críticas da doutrina. Autores de renome afirmam que os crimes de perigo abstrato vão de encontro aos ditames e princípios do Estado Democrático de Direito, como o princípio da ofensividade, intervenção mínima, culpabilidade e proporcionalidade.
Defendemos que a utilização desta técnica legislativa é legítima e adiante, em capítulo próprio, apresentaremos os fundamentos que legitimam o uso dos crimes de perigo abstrato como meio de enfrentamento aos riscos oriundos da sociedade industrial.
2.1.1. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO COM PRESUNÇÃO “JURIS TANTUM”.
Parte da doutrina vem afirmando que os crimes de perigo abstrato devem gozar, em alguns casos, de uma presunção “juris tantum” no que diz respeito a afetação do bem jurídico, isso porque em algumas oportunidades o bem jurídico penalmente tutelado não sofre uma turbação relevante, o que ocasionaria a atipicidade da conduta.
SILVA (2003) cita a posição do mestre argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, que não admite a presunção absoluta de perigo para os crimes de perigo abstrato. Para Zaffaroni (1981), apud (SILVA, 2003, pág.75), os crimes de perigo abstrato são tipos em que “opera uma presunção ‘juirs tantum’ do perigo”.
A tese que admite a presunção relativa nos tipos de perigo abstrato vem encontrando certa receptividade nos Tribunais Superiores e em alguns tribunais estaduais.
SILVA (2003) se mostra contrário a presunção relativa para os delitos de perigo abstrato quando a experiência demonstrar a inerência insuperável do perigo à conduta. O autor até admite a presunção relativa, mas apenas naquelas hipóteses em que o legislador optou pelo modelo abstrato de forma equivocada. Ao discorrer sobre o tema, SILVA (2003) diz que,
Tratando-se de crime de perigo abstrato, em que o perigo é (deve ser) ínsito na conduta, hipótese verdadeiramente possível de presunção relativa ocorre quando o legislador, de forma equivocada, empreende uma tipificação sem atender ao bom senso e à natureza da ação criando um modelo de perigo abstrato de forma artificial, ou seja, em situações nas quais o perigo não é, no plano da realidade, inerente à conduta. Noutras palavras, o delito se ajustaria a um modelo de perigo concreto em que o perigo poderá ocorrer ao desencadear a conduta, mas não necessariamente ocorre (...). (SILVA, 2003, págs.77 e 78)
2.1.2. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO-CONCRETO.
Há autores que apontam a existência de uma terceira categoria de crimes de perigo, intermediária, superando a clássica divisão entre crimes de perigo concreto e crime de perigo abstrato.
Para BOTTINI (2010),
“os delitos de perigo abstrato-concreto descrevem a conduta proibida e exigem expressamente, para a configuração da tipicidade objetiva, a necessidade da periculosidade geral, ou seja, que a ação seja apta ou idônea para lesionar ou colocar em perigo concreto um bem jurídico. Estes tipos penais atrelam a conduta proibida a um critério material de injusto, que será a criação de um risco não permitido, mesmo que não realizado concretamente” (BOTTINI, 2010, pág.118).
O autor cita os artigos 306 e 308 da Lei n°9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro) e o artigo 54 da Lei n°9.605/98 como exemplos desse tipo de delito. Nas situações descritas, o legislador prevê um dano potencial, intermediário entre a mera realização da conduta e a colocação de um bem efetivo e concreto sob ameaça objetiva. BOTTINI (2010, pág.118 e 119) conclui que “a criação de um ambiente de periculosidade, decorrente do comportamento proibido, é o elemento que caracteriza os delitos de perigo abstrato-concreto e o distingue, formalmente dos demais”.
SILVA (2003) prefere a divisão clássica e já consagrada dos crimes de perigo em concreto e abstrato, mas admite para os delitos de perigo abstrato-concreto a presunção relativa excepcional, conforme já mencionado.
2.2. RAZÕES PARA A MASSIFICAÇÃO DO USO DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO.
Os crimes de perigo abstrato foram eleitos como o principal instrumento de controle contra os riscos da sociedade atual e agora tentaremos demonstrar o porquê.
O primeiro motivo para a proliferação dos crimes de perigo abstrato é o aumento do potencial lesivo de algumas atividades e produtos. Os resultados do uso descontrolado de algumas inovações tecnológicas têm o poder de afetar um volume crescente de bens jurídicos.
Algumas atividades e produtos que trazem ínsitos um alto risco para a sociedade e esta é a razão para tentar evitar ou controlar algumas condutas e não apenas reprimir o resultado danoso do seu implemento. O operador do direito, como gestor de riscos que é, deve antecipar-se a ocorrência da lesão em virtude do alto potencial destrutivo de algumas atividades e produtos. Aqui, recorremos mais uma vez a lição de BOTTINI (2010) quando diz que,
“Nestas circunstâncias, a norma penal surge como elemento de antecipação de tutela, sob uma perspectiva que acentua o papel preventivo do direito. Para isso, o tipo penal deve estar dirigido à conduta e não ao resultado. A atividade, em si, passa a ser o núcleo do injusto. A insegurança que acompanha estas condutas e a extensão da ameaça levam o legislador a optar pela norma de prevenção, por meio de descrições típicas que não reconheçam o resultado como elemento integrante do injusto, ou seja, pelos tipos penais de perigo abstrato. (BOTTINI, 2010, pág.121).
Outro fator determinante para o aumento do uso dos crimes de perigo abstrato é a dificuldade de estabelecer os nexos causais derivados da aplicação das novas tecnologias. Como afirma BOTTINI (2010, pág.121), “a imprevisibilidade no manejo das atividades inovadoras e os efeitos desconhecidos de novos produtos afetam a análise dos cursos causais possíveis e, consequentemente, tornam ineficazes os tipos de resultado, incitando o direito penal, quando interessado em interceder nestes âmbitos, à criação de tipos com configuração cada vez mais abstrata e formalista”.
Em decorrência disso, surge outro motivo para a utilização dos crimes de perigo abstrato, qual seja, os problemas no campo da responsabilidade penal. A complexidade das relações de produção e distribuição e a massificação do consumo dificultam a identificação da relação de causalidade entre uma conduta e um resultado danoso e, por consequência, a imputação deste resultado a um único ator social, tendo em vista que os comportamentos que contribuíram para a ocorrência de um dano ou lesão são diluídos, ramificados e segmentados.
Também contribui para a significativa aparição dos delitos de perigo abstrato, a proteção cada vez maior de bens jurídicos supra individuais ou coletivos. Cada vez mais interesses difusos, como o meio ambiente, a ordem econômica e tributária, a saúde pública, as relações de consumo, têm sido tutelados pelo direito penal e isso tem por consequência uma mudança da compreensão do delito no tocante a análise dos sujeitos ativo e passivo. Na visão de BOTTINI (2010), a dificuldade de limitar e caracterizar os sujeitos passivos reduz o espaço dos delitos de resultado, que exigem um titular do bem ou do objeto atacado pelo comportamento ilícito, e dá lugar ao injusto de perigo abstrato.
O fenômeno social dos novos contextos de risco interacional, como o sistema de tráfego viário e de armazenamento e transporte de alimentos e medicamentos também influenciam na massificação dos crimes de perigo abstrato. O desenvolvimento de novas tecnologias e sua utilização por parcela significativa da população cria contextos de interação arriscados, inexistentes em outros tempos. Por isso, surgem regulamentos que têm por objetivo o controle e segurança destes contextos de risco, sem, contudo, proibir a utilização das tecnologias disponíveis.
Por último, temos os atos perigosos por acumulação como razão para implementação de crimes de perigo abstrato. Conforme afirma BOTTINI (2010), “trata-se de ações que, isoladamente, não representam uma ameaça, em potencial para bens jurídicos tutelados, mas sua reiteração ou multiplicação acaba por consolidar um ambiente de riscos efetivos para estes interesses protegidos”. O legislador aqui, não se preocupa com a lesividade da conduta individual, mas sim com o risco que a repetição destas ações traz para o bem jurídico tutelado. Os interesses não seriam plenamente tutelados pelo uso dos crimes de resultado, pois nestes casos, não seria possível atrelar o dano potencial a um ato isolado. Assim, o único meio possível de impedir a repetição de condutas que podem causar um dano ao bem jurídico, é tipificá-las como crimes de perigo abstrato, mais especificamente, crimes de perigo abstrato por acumulação. O clássico exemplo desse tipo de ilícito é o crime de tráfico de drogas.
Ante o exposto, podemos perceber o porquê da presença representativa deste tipo de crime nos diplomas repressivos contemporâneos. Conforme assinala BOTTINI (2010, pág.128), “o perigo abstrato representa o sintoma mais nítido da expansão do direito penal, na ânsia por fazer frente aos temores que acompanham o desenvolvimento científico e econômico da atualidade”.
2.3. PROPOSTA DE CONSTRUÇÃO FUNCIONAL DO TIPO DE PERIGO ABSTRATO.
O que faremos agora é apresentar uma proposta metodológica de construção do tipo de perigo abstrato que se adeque aos ditames do Estado Democrático de Direito.
O direito penal funcional de um Estado Democrático de Direito tem por missão principal, proteger a dignidade da pessoa humana, consubstanciada na tutela de bens e interesses relevantes para a sua existência.
2.3.1. PROTEÇÃO DE BENS JURÍDICOS COM REFRENTE INDIVIDUAL.
Como veremos mais adiante, a escolha dos bens jurídicos merecedores de tutela penal será feita com base nos valores expressos nas normas constitucionais. Apenas os interesses fundamentais para garantir o livre desenvolvimento dos indivíduos podem compor o rol de bens passíveis de proteção penal.
Sendo assim, uma proposta de construção do tipo material dos crimes de perigo abstrato passa pela escolha correta e descrição taxativa dos bens jurídicos tutelados. Os bens jurídicos protegidos pelos crimes de perigo abstrato devem sempre conter um referencial antropocêntrico. Bens jurídicos coletivos, como o meio ambiente, saúde pública, ordem econômica, dentre outros, podem sim ser objeto de tutela por estes tipos de crime, mas desde que sua referência última seja a proteção da dignidade da pessoa humana.
Conforme afirma BOTTINI (2010, pág.187) “os bens jurídicos universais serão legítimos desde que sejam referentes dos interesses dos indivíduos e assegurem as possibilidades vitais do ser humano”.
A premissa de tutelar apenas bens jurídicos relevantes e com referente individual será importante para afastar a utilização de normas penais com caráter exclusivamente simbólico. Logicamente, toda norma penal tem um conteúdo simbólico, porém o que deve ser rechaçado é a utilização da norma apenas para simbolizar a proteção de valores sociais, sem que haja fundamento nos bens jurídicos relevantes.
Nos dizeres de BOTTINI (2010, pág.193), “a fixação do referente individual nos bens jurídicos cumpre o papel de pautar a construção e a interpretação dos tipos penais, corrigindo desvirtuamentos que surgem da ansiedade estatal em recuperar uma legitimidade de atuação, perdida diante dos novos riscos”.
BOTTINI (2010) aponta outra consequência da normatização dos bens jurídicos por intermédio de um referente individual, qual seja, as implicações para o concurso de delitos, especialmente no tocante aos crimes de perigo abstrato. Segundo o autor,
A absorção do crime de perigo abstrato pelo crime de lesão, sempre que todas as potenciais vítimas expostas ao perigo forem efetivamente lesionadas, só pode ser feita sob a ótica do referente individual dos bens jurídicos coletivos. A definição de bem jurídico difuso como valor autônomo, sem lastro em interesses individuais, não permitiria este raciocínio. (BOTTINI, 2010, pág.197)
Por fim, a fixação do referente individual para os bens jurídicos tutelados também serve para afastar a utilização das normas penais como mero instrumento de reforço das ordenações administrativas. Os crimes de perigo abstrato que não fazem referência alguma a proteção de bens jurídicos e apenas fazem a menção a própria efetividade do direito administrativo, devem ser extirpados do ordenamento jurídico.
2.3.2. RISCO COMO SUBSTRATO MATERIAL MÍNIMO DOS DELITOS DE PERIGO ABSTRATO.
Como vimos no decorrer do trabalho, a proteção de bens jurídicos apenas por crimes de dano ou de perigo concreto não é apta para fazer frente aos novos riscos e os novos contextos de interação social. Não é possível, na sociedade de risco, reduzir o conteúdo do injusto penal apenas ao desvalor do resultado. Porém, fundar a legitimidade de atuação penal apenas no desvalor da conduta, sem observar as consequências que o comportamento traz para o contexto social, seria se afastar da função do direito de proteger bens jurídicos.
Por isso, é preciso buscar um elemento objetivo que sirva de substrato mínimo do injusto penal que possa ser observado tanto sob uma perspectiva “ex ante”, ou seja, que a potencialidade lesiva seja de logo perceptível e reconhecível pelo agente no momento da prática do ato. Este elemento objetivo buscado é justamente o risco, a periculosidade.
Na precisa lição de BOTTINI (2010, pág.220), “o risco, que caracteriza a tipicidade material, deve acompanhar uma conduta humana (desvalor da ação), pois a norma penal se dirige unicamente a esta categoria de ações e, ainda, refletir uma imagem de resultado prejudicial possível ou provável, que justifique a ameaça de repressão (desvalor do resultado)”.
O risco lentamente foi sendo incorporado à dogmática penal e hoje constitui elemento de ligação material entre uma conduta e um resultado nas teorias da imputação objetiva desenvolvidas por Roxin e Jakobs.
O risco passou a ser encarado como elemento central da conduta típica, em qualquer espécie delitiva e não só nos delitos de resultado. Como afirma BOTTINI (2010, págs.221 e 222) “a alusão à necessidade de criação de um risco relevante e não permitido para bens jurídicos permitia a construção de um critério material básico aplicável a todos os tipos penais (...)”.
É nesse contexto que BOTTINI (2010) chega a dizer que,
(...) não existe diferença qualitativa entre os crimes de perigo abstrato, os crimes de perigo concreto e os crimes de lesão, pois os três estão atrelados ao mesmo fundamento valorativo, que é a periculosidade do comportamento humano. A distinção entre estas espécies típicas não está no aspecto material, mas na atualidade ou na intensidade do risco que apresentam. (BOTTINI, 2010, pág.223).
Nos crimes de perigo abstrato, o que será observado para a materialização do delito é a periculosidade potencial que a ação ou omissão trouxe para o bem jurídico tutelado, não sendo necessária a concretização da ameaça ou lesão de um objeto específico.
O juízo do risco será feito sob uma perspectiva “ex ante”, ou seja, o gerente do risco precisará se colocar no lugar do agente no momento da prática do ato e avaliar se aquela conduta oferece um rico potencial para a produção de um resultado lesivo ou um perigo concreto.
Essa avaliação não pode ser feita de maneira isolada do contexto social vivenciado pelo agente. O gerente do risco, neste caso, o operador do direito penal, deverá levar em consideração a intolerabilidade social ao risco gerado pela conduta. É por isso que alguns comportamentos que apresentam um risco estatisticamente demonstrado podem ser admitidos pelos participantes da realidade em que se produz o risco. O risco permitido servirá como elemento de exclusão de tipicidade objetiva da conduta.
O juízo de valoração do comportamento arriscado, portanto, será feito em dois momentos: um ontológico, realizado por um observador que incorpore os conhecimentos do agente sobre os contextos de risco; e um nomológico, onde serão observados a experiência e os conhecimentos gerais acerca dos cursos causais e da projeção futura de risco.
O elemento nomológico é de fundamental importância para a materialização dos delitos de perigo abstrato. Sem ele, o elemento ontológico fica comprometido e a conduta deixará de ser típica. Para que os crimes de perigo abstrato sejam completos e legítimos é necessário o juízo de periculosidade que agregue os dois elementos acima descritos e que se conheçam os cursos causais passíveis de afetar os interesses tutelados.
2.3.3. ÔNUS DA PROVA DA PERICULOSIDADE.
Dentro da proposta de construção e utilização funcional dos crimes de perigo abstrato a que nos propusemos a analisar, não poderia faltar um capítulo sobre o ônus da prova da periculosidade.
Para que o crime de perigo abstrato possa ser aplicado de forma legítima será necessária a demonstração do risco inerente à conduta, porém, indaga-se: a quem cabe o ônus da apresentação da prova da periculosidade do ato? Duas posições surgem como pacificadoras da presente questão.
A primeira proposição aponta a aplicação da chamada fórmula negativa para resolver o problema do ônus da prova da periculosidade nos crimes de perigo abstrato.
Os defensores desse posicionamento entendem que a tipicidade material do fato poderia ser excluída quando ficasse demonstrada a falta de possibilidade de lesão ao bem jurídico.
Neste sentido, os crimes de perigo abstrato deixariam de ter uma presunção “iuris et de iure” de perigo e passariam a admitir a demonstração de inocuidade do comportamento. Nos dizeres de BOTTINI (2010, pág.247) “por esta construção, a ação é tida por arriscada aprioristicamente, e caberá ao agente a demonstração de sua inocuidade, seja por sua essência não lesiva, seja pela adoção de mecanismos de proteção eficazes em relação aos bens protegidos”.
BOTTINI (2010) apresenta uma crítica a adoção da fórmula negativa por ser ela, segundo ele, incompatível com o princípio da presunção de inocência. O autor afirma que a inversão do ônus da prova é admitida no direito brasileiro em situações de “desequilíbrio processual”, nas hipóteses de hipossuficiência de uma das partes, o que não se verifica no plano penal.
A segunda corrente de pensamento, defensora da aplicação da fórmula positiva, afirma que é do órgão acusador o ônus da demonstração da periculosidade “ex ante” da conduta. Para os que assim entendem, a relevância da conduta e os atributos de antijuridicidade, ou seja, a tipicidade material da ação, deveria ser demonstrada no curso da ação penal. “Para esta metodologia de aferição do injusto penal, a dúvida sobre os riscos que envolvem a conduta implicaria o afastamento da legitimidade de incidência da reação repressiva, em consonância com o princípio constitucional da presunção de inocência” (BOTTINI, 2010, pág.249).
3. DA LEGITIMIDADE DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO.
Chegamos a um ponto crucial de nosso trabalho que é a análise da legitimidade do uso dos crimes de perigo abstrato como instrumento de combate aos riscos da sociedade moderna.
A legitimidade e até mesmo a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato são questionadas por vários doutrinadores nacionais e estrangeiros. A corrente que sustenta a inconstitucionalidade dos delitos em estudo fundamenta sua crítica na suposta incompatibilidade destes crimes com os preceitos do Estado Democrático de Direito.
O principal questionamento feito pelos os expoentes da corrente doutrinária que pugnam pela inconstitucionalidade é que os crimes de perigo abstrato ferem o princípio da ofensividade ou lesividade. Alega-se que os tipos de perigo abstrato trazem uma presunção “juris et de jure” de resultado, incompatível com um direito penal garantista. Além disso, segundo esses autores, a previsão de crimes sem resultado implicaria na incriminação de mera conduta e na repressão de atos de desobediência, que não fazem nenhuma referência a bens jurídicos.
Respeitamos o posicionamento dos que defendem a inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, mas esse não é nosso entendimento e é isso que tentaremos demonstrar nas linhas que adiante seguem.
Porém, antes de adentrarmos de fato na conformação dos crimes de perigo abstrato com os princípios constitucionais é necessário tecermos alguns comentários sob o enfoque que daremos a análise de legitimidade desse tipo de delito.
Conforme assevera SILVA (2003, pág.147) “a ideia de legitimidade está, assim, ligada à de justificação. A norma legal será legítima quando estiver em conformidade com o justo: é norma que se justifica mediante um processo avaliativo e por isso aberto”.
Como vimos, o processo de avaliação da legitimidade é aberto, porém necessita de alguns parâmetros, os quais devem decorrer da Constituição. Para nós, importa saber se os crimes de perigo abstrato estão em conformidade com os ditames do Estado Democrático de Direito e os princípios dele decorrente, como a dignidade da pessoa humana, os princípios da ofensividade, proporcionalidade, culpabilidade, intervenção penal mínima, dentre outros.
3.1. CONFORMAÇÃO COM O PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE.
Pelo princípio da ofensividade ou lesividade, não há crime sem que haja lesão ao bem jurídico ou ao menos a sua exposição à perigo. Para estar em conformidade com o princípio em comento, a conduta descrita como crime deverá ser apta a vulnerar ou pelo menos colocar em risco um bem digno de tutela penal.
Ao tratar do princípio da ofensividade, Nilo Batista (1996), citado por SILVA (2003) enumera quatro funções principais do enunciado, quais sejam: a proibição da incriminação de atitudes internas; a proibição de incriminação de condutas que não excedam a esfera do próprio autor, ou seja, que não sejam dotadas de alteridade; a proibição de incriminação de estados ou condições existenciais, pela qual se impede o recurso ao direito penal do autor; e, por fim, a proibição de incriminação de condutas que não afetem qualquer bem jurídico.
No que diz respeito a última função, em virtude de sua íntima relação com os crimes de perigo abstrato, objeto de nosso estudo, é necessário trazer à tona os ensinamentos do mestre Farias Costa (1992). Citado por SILVA (2003, pág.95), o professor português afirma que a potencialidade lesiva pode “estruturar-se em três níveis, todos eles tendo como horizonte compreensivo e integrativo a expressiva nomenclatura do bem jurídico: dano/violação; concreto pôr-em-perigo e cuidado de perigo”.
Ao explicar o posicionamento de Farias Costa (1992), SILVA (2003) diz que os três níveis de ofensividade apresentados correspondem, respectivamente, aos crimes de dano, de perigo concreto e de perigo abstrato.
Os crimes de perigo abstrato, como visto, visam proibir a realização de um ato que seja apto a colocar um bem jurídico relevante em perigo e que, por sua própria natureza, exija uma tutela antecipada. Porém, o recurso a esta técnica legislativa deve ser feito com cautela, apenas quando for próprio da conduta a vulneração de um bem e atendendo-se à experiência e ao bom senso, sendo ainda necessária a delimitação do âmbito do proibido.
SILVA (2003, pág.147) afirma que “ao constatar-se a necessidade de incriminar, por meio de tipos de perigo abstrato, certas condutas que, isoladamente não sejam danosas em um nível relevante ou empiricamente perceptível, mas, que somadas, apresentem um dano relevante, não se poderia imputar ao legislador um desatendimento ao princípio da lesividade”.
Isso é o que ocorre, por exemplo, com a tipificação do crime de tráfico de entorpecentes e drogas afins, da maioria dos crimes contra o meio ambiente e de alguns crimes contra a ordem econômica. Nestes crimes, algumas condutas descritas no tipo, se consideradas individualmente, são meramente perigosas, potencialmente lesivas, mas se somadas, acarretam significativo dano.
Desta forma, conclui-se que é equivocado o entendimento segundo o qual os crimes de perigo abstrato não respeitam o princípio da ofensividade. Em brilhante lição a respeito do tema, SILVA (2003) afirma que,
O princípio da lesividade ou da ofensividade é, portanto, observado, sempre que o tipo penal tiver por finalidade proteger bens jurídicos, sendo que alguns, por suas características, tais como o meio ambiente, a ordem econômica, a fé pública e a saúde pública, entre outros, só podem ser, em certos casos, eficazmente tutelados de forma antecipada mediante tipos de perigo abstrato, seja em razão dos resultados catastróficos que um dano efetivo traria, seja pela irreversibilidade do bem ao estado anterior, seja pelo fato de não se poder mensurar o perigo imposto em certas circunstâncias, ou a inviabilidade de se estabelecer o entrelaçamento entre múltiplas ações e um determinado resultado danoso nos moldes rigorosos do processo penal. (SILVA, 2003, pág.101).
E continua dizendo que,
Há que se pensar um direito penal de forma mais atualizada, desprendido do individualismo extremado e voltado tanto para tradicionais quanto para os novos bens, que, por suas características, só possam ser protegidos de forma eficaz mediante a tutela antecipada, que se traduz na adoção de tipos de ilícito de perigo abstrato. Contudo, não é demais repetir: faz-se mister uma rigorosa técnica de tipificação, com uma precisa e taxativa descrição do modelo legal, além de outros condicionamentos, como a observância do princípio da proporcionalidade (...). (SILVA, 2003, pág.101)
D’ÁVILA (2009, pág.30 e 31), apresenta o posicionamento de Fernando Mantovani (1997) que, conquanto assevere o “principio di offensivitá”, “como baricentro de uma ordem penal garantista e democrática, além de princípio recepcionado constitucionalmente, admite seu afastamento, para fins de política criminal”.
A derroga do princípio da ofensividade nestes casos, segundo a visão de Mantovani (1997), citado por D’Ávila (2009), serviria para preservar o próprio conteúdo da garantia, que poderia ser ameaçada por uma excessiva abertura, ocasionada por tentativas inúteis de recuperação da ofensa em crimes desprovidos dela.
D’ÁVILA (2009, pág.31) afirma que, “os crimes de perigo abstrato, v.g., são para muitos, incompatíveis com ‘os princípios elementares do direito penal de um Estado de Direito’. Incompatibilidade, entretanto, que simplesmente desaparece quando se tem, do outro lado, interesses de prevenção geral por atender”.
O autor defende a conformação dos crimes de perigo abstrato com o princípio da ofensividade ao dizer que,
A ofensa de cuidado-de-perigo, tal qual a concebemos, consiste em uma hipótese de ofensividade que deve ser exigida e acertada no âmbito dos denominados crimes de perigo abstrato, de modo a sobrepor-se a leituras meramente formais, em termos de simples desobediência – hoje, por tudo já exposto, constitucionalmente inadmissíveis –, e a permitir uma importante recuperação hermenêutica da correspondente técnica de tipificação. Trata-se em termos substanciais, de uma interferência, jurídico-penalmente desvaliosa, na esfera de manifestação do bem jurídico, capaz de representar uma concreta situação de desvalor, e, consequentemente, consubstanciar um verdadeiro resultado jurídico. Concepção que é verificada, no caso concreto, através de um juízo ex ante, de base total, e mediante um critério objetivo-normativo, nomeadamente, uma possibilidade, não insignificante, de dano ao bem jurídico. (D’ÁVILA, 2009, pág.100)
Para D’ÁVILA (2009) restringir a noção jurídico-penal de perigo às situações de perigo concreto, relegando aos crimes de perigo abstrato uma exangue presunção de absoluta de perigo ou à mera violação de um dever, é desnecessário e equivocado.
3.2. CONFORMAÇÃO COM PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
O princípio da proporcionalidade visa limitar o poder do Estado no âmbito do direito penal e administrativo. Tem por objetivo proibir os excessos do legislador e resguardar os direitos fundamentais.
Alberto Silva Franco (1997), apud Greco (2008, ) afirma que “o princípio da proporcionalidade exige que se faça um juízo de ponderação sobre a relação existente entre o bem que é lesionado ou posto em perigo (gravidade do fato) e o bem de que pode alguém ser privado (gravidade da pena)”.
O princípio da proporcionalidade se decompõe em três subprincípios: princípio a adequação ou idoneidade; princípio da necessidade ou exigibilidade; e princípio da proporcionalidade em sentido estrito.
A adequação deve ser entendida como aptidão da medida para atender os objetivos por ela propostos. Quando inadequada para atingir seus fins, a medida restritiva deverá ser questionada e retirada do ordenamento por padecer de um vício.
A necessidade exige do legislador e do intérprete que seja escolhido o meio menos gravoso para se alcançar ao objetivo proposto por uma medida de restrição. A medida adotada deverá ser necessária para se atingir determinado fim e da maneira que atente o menos possível contra os direitos fundamentais.
A proporcionalidade em sentido estrito decorre da análise de razoabilidade entre meio e fim. Nos dizeres de SILVA (2003) deve ser aferido “o resultado pretendido à luz de um prognóstico de justa medida entre este e o meio coativo”.
O fato é que os direitos fundamentais estão consagrados na Constituição Federal e exigem uma proporcionalidade no tocante aos atos estatais de restrição. Porém, é um exagero dizer que a tipificação de condutas por meio dos delitos de perigo abstrato é desproporcional pelo simples fato de presumirem o perigo.
O princípio da proporcionalidade não será afastado “a priori” pelo fato de o legislador ter optado pelo modelo de incriminação de perigo abstrato. A análise de proporcionalidade deverá ser feita caso a caso e não de forma genérica.
3.3. CONFORMAÇÃO COM PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO PENAL MÍNIMA.
O direito penal só deve se preocupar com a proteção dos bens mais importantes e necessários à vida em sociedade.
O princípio da intervenção mínima, também conhecido por “ultima ratio”, é responsável pela seleção dos bens jurídicos que merecem a tutela do direito penal, mas se presta também a retirar do ordenamento jurídico certos tipos incriminadores que tutelam valores não mais considerados relevantes, a chamada descriminalização.
O professor Cezar Roberto Bitencourt (1995), citado por GRECO (2008) resume bem o conteúdo do princípio em comento:
O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanções ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização será inadequada e desnecessária. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais. Por isso, o Direito Penal deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade. (GRECO, 2008, pág.50).
SILVA (2003, pág.121) afirma que o princípio da intervenção mínima se situa em uma posição intermediária entre os movimentos radicais e inconciliáveis, como o movimento da lei e ordem e o movimento abolicionista. Segundo ele, “isso implica descriminalizar condutas que não ofereçam nocividade social, ou adotar um sistema de penas alternativas à pena privativa de liberdade para fatos de menor gravidade, mas ao mesmo tempo significa que se deva criminalizar novas condutas vulneradoras de bens de especial relevância e, quando necessário, por meio de tipos de perigo presumido”.
Sendo assim, podemos concluir que os crimes de perigo abstrato estarão em conformidade com os ditames do princípio da intervenção mínima quando a tutela de bens pelos crimes de dano ou de perigo concreto resulte insuficiente. SILVA (2003, pág.129) diz que “se a norma não comportar uma tipificação como delito de dano ou, ainda, de perigo concreto, terá de ser de perigo abstrato, sob pena de, com a inação estatal, punir-se toda a comunidade”.
3.4. CONFORMAÇÃO COM O PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE.
Atualmente, a culpabilidade está diretamente relacionada com o juízo de reprovabilidade que se faz sobre a conduta típica e ilícita praticada pelo agente. Nos dizeres de GRECO (2008, pág.89), “reprovável ou censurável é aquela conduta levada a efeito pelo agente que, nas condições em que se encontrava, podia agir de outro modo”.
Assis Toledo (1994), citado por GRECO (2008) afirma que, “deve-se entender o princípio da culpabilidade como a exigência de um juízo de reprovação jurídica que se apoia sobre a crença – fundada na experiência da vida cotidiana – de que ao homem é dada a possibilidade de, em certas circunstâncias, ‘agir de outro modo’”.
O princípio da culpabilidade tem como uma de suas principais funções, impedir a responsabilidade penal objetiva, ou seja, a responsabilidade penal sem culpa. Isso quer dizer que para um resultado ser atribuído a um agente é preciso que sua conduta tenha sido dolosa ou culposa.
Como sabemos, os crimes de perigo abstrato descrevem condutas potencialmente perigosas, sendo dispensada, no caso concreto, a demonstração do perigo que aquele comportamento traz para o bem jurídico tutelado. Portanto, diante desse raciocínio podemos concluir que o que se presume nos delitos de perigo abstrato é a periculosidade da conduta, que se encontra no campo da tipicidade, e não a culpabilidade, a ser analisada em momento ulterior.
Ao ratificar o entendimento de que os crimes de perigo abstrato estão em conformidade com o princípio da culpabilidade, SILVA (2003, pág.138) afirma que, “não se presume a culpabilidade, presume-se a periculosidade da conduta (não do agente), que pode e deve ser avaliada pelo agente imputável no momento da ação segundo um juízo do proibido e do permitido”. Ele arremata dizendo que “a conduta é formalmente ilícita por estar em contradição com a norma penal e materialmente ilícita em face da vulneração de um bem jurídico mediante a presunção extraída da experiência e do bom senso, mas a ação valorada como ilícita poderá ser reprovável (culpável) ou não”.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Chegamos ao fim do nosso trabalho e de tudo quanto foi exposto podemos fazer algumas considerações.
Como vimos, a sociedade atual apresenta um nível de desenvolvimento econômico e tecnológico que traz em seu bojo algumas incertezas.
A ciência não consegue mais criar mecanismos de avaliação dos efeitos decorrentes do desenvolvimento tecnológico desenfreado. O desconhecimento dos potenciais riscos das atividades e produtos desenvolvidos acaba gerando uma sensação de insegurança na população. O risco passa a ser encarado como figura central da organização social atual.
Antes encarado apenas como motor do desenvolvimento, o risco figura agora como fator de desequilíbrio social. Ao mesmo tempo em que se mantém o discurso favorável ao progresso, aumentam-se as vozes que clamam pela restrição ou diminuição das atividades perigosas. Esse paradoxo é trazido para dentro do sistema jurídico-penal, que funciona como instrumento de gestão de riscos.
A constatação de que outros ramos da ciência jurídica, como o direito civil e o administrativo, e o próprio direito penal clássico, não possuem instrumentos eficazes para combater os novos riscos trouxe várias consequências.
Mudanças como a ampliação do campo de atuação do direito penal para tutelar bens e interesses difusos, a nova roupagem dada aos conceitos de autoria, causalidade, culpabilidade e de resultado para se adequarem à realidade e aos paradoxos percebidos pelo modelo de organização social atual, o desenvolvimento de novos critérios de imputação, tendo a criação de riscos proibidos como fator primordial, a mitigação de alguns princípios constitucionais, o uso exacerbado das normas penais em branco e dos crimes de perigo, notadamente os de perigo abstrato, inauguram uma nova fase do direito penal, o chamado “Direito Penal do Risco”.
Neste contexto, os crimes de perigo abstrato foram eleitos como principal instrumento de proteção de bens jurídicos, devido a sua característica fundamental de antecipação de tutela. Esta técnica de tipificação há muito vinha sendo utilizada no ordenamento jurídico pátrio e estrangeiro, só que de forma excepcional. O que houve foi uma massificação de seu uso em decorrência da “ineficiência” de outros institutos para fazer frente aos novos riscos.
Nossa proposta inicial era fazer uma análise dos crimes de perigo abstrato para ao final apresentar uma proposta metodológica de leitura funcional desses delitos, tão questionados por parte da doutrina.
Ante o que foi exposto, defendemos que a utilização dos crimes de perigo abstrato é legítima, porém alguns critérios devem ser observados pelo legislador quando da tipificação de condutas por meio desta técnica.
A redação dos crimes de perigo abstrato deve deixar claro, de forma taxativa, qual o bem jurídico objeto de tutela. Os bens jurídicos dignos de proteção por esta modalidade de crimes encontraram seu fundamento de validade na Constituição e devem sempre conter um referente individual, o que servirá para afastar as críticas de utilização do direito penal de forma simbólica ou apenas como mero instrumento de reforço das ordenações administrativas.
O risco deverá ser o substrato material mínimo dos delitos de perigo abstrato. O que será observado para a materialização do delito é a periculosidade potencial que a ação ou omissão trouxe para o bem jurídico tutelado, não sendo necessária a concretização da ameaça ou lesão de um objeto específico.
O juízo de valoração do comportamento arriscado deverá ser feito em dois momentos: um ontológico, realizado por um observador que incorpore os conhecimentos do agente sobre os contextos de risco; e um nomológico, onde serão observados a experiência e os conhecimentos gerais acerca dos cursos causais e da projeção futura de risco.
Se presentes esses requisitos no tipo penal, quais sejam, a descrição taxativa de um bem jurídico com referente individual e a identificação clara do potencial risco da conduta, feita através dos critérios acima mencionados, a aplicação dos crimes de perigo abstrato estarão em conformidade com os princípios do Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS
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Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Pós-graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Delegado de Polícia Civil de Pernambuco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARTAXO, RODOLFO LIMA. Crimes de perigo abstrato: antecipação da tutela penal face aos desafios da sociedade de risco Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 nov 2019, 04:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53734/crimes-de-perigo-abstrato-antecipao-da-tutela-penal-face-aos-desafios-da-sociedade-de-risco. Acesso em: 22 nov 2024.
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