KELY NOGUEIRA
(Orientadora)
RESUMO: O presente artigo enfoca a importância da implantação das Audiências de Custódia no Brasil no que se refere à garantia de direitos fundamentais dos presos. A partir do levantamento de dados sobre os efeitos desse instituto para o sistema prisional no Tocantins, busca-se avaliar a contribuição desse instituto para a redução da população carcerária e o cumprimento de seus objetivos quanto à verificação da legalidade da prisão, da ocorrência de tortura e maus-tratos e aplicação de penas alternativas diversas da prisão. Enfocam-se os tratados internacionais e sua contribuição para a adoção desse instituto no Brasil, bem como a implementação de novas garantias processuais aos indiciados, por meio do devido processo legal, garantido pelo princípio do contraditório e da ampla defesa. Analisa-se a efetividade das Audiências de Custódia e seus reflexos para o sistema prisional no Tocantins.
Palavras-chave: Audiências de Custódia, direitos fundamentais; Código Penal Brasileiro, sistema prisional; legalidade da prisão, devido processo legal.
ABSTRACT: This article focuses on the importance of setting up Custody Hearings in Brazil with regard to guaranteeing the fundamental rights of prisoners. From the data collection about the effects of this institute for the prison system in Tocantins, we seek to evaluate the contribution of this institute to the reduction of the prison population and the reach of its objectives regarding the verification of the legality of the prison, the occurrence of torture and mistreatment and adoption of alternative penalties other than imprisonment. The focus is on international treaties and their contribution to the adoption of this institute in Brazil, as well as the implementation of new procedural guarantees to the accused, through due process of law, guaranteed by the principle of contradictory and broad defense. The effectiveness of Custody Hearings and their impact on the prison system in Tocantins is analyzed.
Keywords: Custody Hearings, fundamental rights, Brazilian Penal Code, prison system; prison legality, due legal process.
1. INTRODUÇÃO
Tendo em vista a necessidade de buscar instrumentos para a construção de um sistema penal coerente com a atual realidade constitucional, o presente estudo analisa a instituição e a efetividade do projeto “Audiência de Custódia”, lançado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em fevereiro de 2015, em parceria com o Ministério da Justiça e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, e implantado seis meses depois no Tocantins.
A ideia do projeto é garantir que o acusado seja apresentado e entrevistado pelo juiz, em uma audiência em que serão ouvidas também as manifestações do Ministério Público, da Defensoria Pública ou do advogado do preso.
O projeto se sustenta nos seguintes eixos: indispensabilidade da apresentação de presos autuados em flagrante perante a autoridade judiciária; oferta de opções viáveis que evitem o imediato encarceramento provisório (central de monitoração eletrônica, central de serviços e assistência social, além de câmaras de mediação penal). Assim, são discutidas opções à judicialização do conflito penal, bem como o desenvolvimento de uma metodologia apropriada para o monitoramento diário e permanente dos seus resultados, possibilitando a correção durante sua execução.
Foi com base nestas normas que o Conselho Nacional de Justiça e os estados brasileiros começaram a se movimentar para a sua implantação. Nas audiências, os presos têm oportunidade de relatar maus-tratos e até tortura cometidos durante o ato da prisão.
A resolução nº 213/2015 detalha o procedimento de apresentação de presos em flagrante ou por mandado de prisão à autoridade judicial competente e possui dois protocolos de atuação – um sobre aplicação de penas alternativas e outro sobre os procedimentos para apuração de denúncias de tortura.
Após a apresentação do projeto pelo CNJ, vários Estados passaram a formar comissões para viabilização de um cronograma de implantação do projeto e a definição da sua estrutura física e funcional.
Assim como os demais estados do país, o Tocantins vivencia a falência do sistema prisional em razão do elevado número de prisões, decorrente não somente do aumento da violência, mas também da ausência de políticas públicas voltadas à redução da criminalidade. Por parte do Sistema de Justiça, verificam-se tentativas para solucionar o problema da superlotação da maneira mais prática, a implantação do Projeto Audiências de Custódia é um exemplo disso.
A partir do levantamento de dados sobre os efeitos desse instituto para o sistema prisional no Tocantins, busca-se avaliar como as Audiências de Custódia contribuem para a garantia de direitos fundamentais dos presos e sua efetividade enquanto instrumento de defesa desses direitos.
2. O SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO E A VIOLAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
O sistema prisional na maior parte dos países tem sofrido com o aumento da população carcerária nas últimas décadas. Seguindo essa tendência mundial, o Brasil sofre pelo excesso de presos e pelas precárias condições carcerárias. Dentre os principais problemas estão a falta de estrutura física para receber os detentos, além da superlotação, tortura e maus-tratos. Segundo Andrade e Alflen (2017), a privação da liberdade há muito transformou-se na menor das penas impostas pela prisão.
O que se verifica no país é a existência de um quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação exige a adoção de medidas abrangentes de natureza jurídica, administrativa e orçamentária. Apesar de ocupar atualmente o terceiro lugar no mundo em população carcerária, atrás dos Estados Unidos e China e Rússia, o Brasil aumentou o número de presos na última década, enquanto os dois primeiros têm reduzido a quantidade de presos.
A população prisional total no país é composta pela soma das pessoas privadas de liberdade no sistema prisional estadual e nas carceragens das delegacias, além daquelas custodiadas no Sistema Penitenciário Federal.
No Brasil, segundo informações do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) publicado em 2016, a população carcerária corresponde a 726.712 presos, enquanto a quantidade de presos provisórios (sem condenação) chega a 36.765 pessoas, ou seja, 40% do número total de presos. Isso significa que quatro de cada dez presos estão encarcerados sem terem sido julgados e condenados. Ainda segundo esse levantamento, mais da metade dessa população é de jovens entre 18 a 29 anos e 64% são negros.
De acordo com o relatório, 89% da população prisional estão em unidades superlotadas. São 78% dos estabelecimentos penais com mais presos que o número de vagas. Comparando-se os dados de dezembro de 2014 com os de junho de 2016, o déficit de vagas passou de 250.318 para 358.663.
Além disso, 47% de presos nesse universo encontram-se aprisionados há mais de 90 dias aguardando julgamento e sentença, percentual expressivo e que revela uma dura realidade processual, marcada pela lentidão no processo penal. Esse fenômeno tende a se agravar com a execução penal provisória, onde é preso quem ainda pode ter reconhecida a sua inocência. Importante registrar, ainda, que as denúncias de violência e abusos sexuais são muito comuns nesse período, penalizando, dessa forma, os indivíduos que tiverem sua liberdade privada em razão de prisão cautelar.
Some-se a isso a ocorrência de rebeliões, confrontos e chacinas nas prisões, a exemplo da ocorrida em Carandiru em 1992, em São Paulo, que resultou em 11 mortes, e outras mais recentes como a do Presídio Anísio Jobim em 2017, em Manaus, que teve um saldo de 67 mortos; a rebelião na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista, com 33 mortos; além dos confrontos verificados em maio deste ano em vários presídios de Manaus: Presídio Anísio Jobim, Instituto Penal Antonio Trindade, Puraquequara e no Centro de Detenção Provisória Masculino 1, que resultaram e 55 mortos.
No Tocantins, o total de pessoas que se encontram privadas de liberdade em cadeias ou em delegacias, sem terem sido julgadas e condenadas, corresponde a 39%, sendo que, nesse universo, mais da metade encontra-se encarcerada há mais de 90 dias. Daí a importância das audiências de custódia no enfrentamento da banalização do instituto prisional, as quais determinam que todo aquele que for preso em flagrante deve ser levado à presença da autoridade judicial, no prazo de 24 horas, para que esta avalie a legalidade e necessidade de manutenção da prisão.
Estimativas iniciais apontaram redução de cerca de 20% nas prisões quando realizadas as audiências de custódia. Considerado o custo médio de três mil reais por preso, isto representa 120.000 presos a menos por ano no Brasil, com economia de 4,3 bilhões de reais em um ano. Além de economia, essas medidas garantem dignidade ao processado, considerando-se que o instituto da prisão é tido como excepcional.
Nesse sentido, a Lei 12.403/2011, que estabelece a realização das audiências de custódia no Brasil, destina-se à oitiva do preso em flagrante para exame da legalidade da prisão, da ocorrência de tortura física e/ou psicológica contra ele e da necessidade da conversão da prisão em preventiva ou da aplicação de outras medidas cautelares diversas da prisão, refletindo, assim, na redução do número de presos provisórios nas unidades prisionais de todo o país.
Quanto à conversão da prisão em flagrante, a Lei n.º 12.403/2011, publicada no dia 04 de maio de 2011, alterou vários dispositivos do Código de Processo Penal, relativos à prisão processual, fiança, liberdade provisória e outras medidas cautelares diversas da prisão.
Com a nova Lei, que entrou em vigor em julho de 2011, a Prisão em Flagrante e a Prisão Preventiva passam a ser medidas somente decretadas diante de situações excepcionais. A Lei prevê a conversão da Prisão em Flagrante ou substituição da Prisão Preventiva em 09 (nove) tipos de medidas cautelares processuais penais.
A nova Lei, que alterou o art. 319 do Código de Processo Penal, dispõe em nove incisos sobre medidas cautelares diversas da prisão, em consonância com o Princípio da Não-Culpabilidade previsto na Constituição Federal, do art. 5º, inciso LVII, que determina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. (BRASIL, 2016).
Além do Princípio da Não-Culpabilidade, o legislador buscou assegurar o Princípio do Devido Processo Legal e da exigência de ordem judicial escrita e fundamentada para a decretação da prisão cautelar. Isto porque a Lei Maior, em seu art. 5º, inciso LIV, determina que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (BRASIL, 2016).
A Lei 12.403/2011, dentre os vários preceitos constitucionais, buscou assegurar a prevalência do Princípio da Não-Culpabilidade, em que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Daí a necessidade de apresentação pessoal do preso em flagrante, e não por via documental, a fim de que seja avaliada a legalidade e necessidade de manutenção da prisão.
Na audiência de custódia, o juiz deverá analisar a legalidade, necessidade e adequação da continuidade da prisão do acusado, decidindo sobre uma das opções apresentadas no artigo 310 do Código de Processo Penal: relaxar a prisão se for ilegal, ou converter a prisão em flagrante em prisão preventiva; ou conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, se entender que não há necessidade de manter a pessoa presa, podendo, ainda, impor outras medidas cautelares diversas da prisão, conforme artigos 318 e 319 do CPP.
A lei também estabelece em seu art. 282, § 6º, que “a prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar”. (BRASIL, 1941). A partir da análise da lei, entende-se que quando for recomendável a aplicação de uma das medidas cautelares, como a utilização de monitoramento eletrônico, por exemplo, não será imposta a prisão provisória.
Pablo Rodrigo Alflen (2017) expõe que o principal objetivo da audiência de custódia é fazer cessar ou evitar o risco de incidência de um dos principais problemas verificados nessa fase inicial de persecução penal, que consiste na ocorrência de violações à incolumidade física e/ou psíquica, tais como tortura ou maus-tratos.
Nesse mesmo entendimento, expressa Caio Paiva:
O Brasil aderiu aos termos da Convenção Americana há mais de 20 anos, o que, por si só, já seria o bastante para que a audiência de custódia fosse respeitada e observada no nosso país. Os direitos e as garantias previstas nos tratados internacionais de direitos humanos não podem ficar, sob pena de ineficácia e enfraquecimento do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, condicionados à correspondência normativa no Direito interno de cada país. (PAIVA, 2017, p. 69).
No que diz respeito à prevenção da tortura policial, o instituto visa assegurar a efetivação do direito à integridade pessoal do indivíduo privado de sua liberdade, funcionando como um mecanismo de controle à persecução penal realizada pelo estado, especialmente sobre as instituições encarregadas de executar os atos de investigação criminal e os anteriores ao encarceramento do indivíduo.
A tese defensiva para essa finalidade consiste no argumento de que o lapso temporal para o contato direto do preso com magistrado, se estendido, permitiria o desaparecimento de vestígios de lesões eventualmente causadas no momento da captura.
Na visão do estudioso Caio Paiva, não se pode esperar que a audiência de custódia, por si só, elimine a tortura policial, por se tratar de uma prática que atravessa todo período ditatorial, persistindo nos tempos atuais. Dessa forma, aduz que:
A medida pode contribuir para a redução da tortura policial num dos momentos mais emblemáticos para a integridade física do cidadão, o qual corresponde às primeiras horas após a prisão, quando o cidadão fica absolutamente fora de custódia, sem proteção alguma diante de (provável) tortura policial.
Outra finalidade da audiência de custódia refere-se ao propósito de identificar prisões ilegais, arbitrárias ou, porventura, desnecessárias, pelo juiz que presidir a apresentação.
Segundo Caio Paiva (2017, p.40), essa terceira finalidade visa solucionar casos excepcionais, que ensejam aplicação de prisão domiciliar, como no caso de pessoa debilitada por motivo de doença grave ou de gestante:
Embora o art. 318 do CPP exija “prova idônea” da ocorrência destas situações, certamente haverá casos nos quais a mera constatação visual/presencial do estado da pessoa permitirá que, homologado o flagrante e convertida a prisão preventiva, esta seja substituída por prisão domiciliar. Contrariaria o bom senso a condução de uma mulher em estágio avançado de gravidez para a unidade prisional apenas porque não se dispõe, ali, na audiência de custódia, de documento médico atestando suas condições pessoais.
Dessa forma, as audiências de custódia estão em perfeita consonância com o sistema de garantias de direito, exercendo o primeiro controle de legalidade da prisão, assegurando direitos mínimos ao indivíduo privado de sua liberdade, bem como a manutenção de sua integridade pessoal.
3. O FUNDAMENTO JURÍDICO DAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA
Os juristas, estudiosos e instituições favoráveis à implantação da audiência de custódia no ordenamento jurídico brasileiro justificam que esse instituto atende a princípios estabelecidos em pactos e tratados internacionais assinados pelo Brasil, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica.
O Brasil aderiu aos termos da Convenção Americana há mais de 20 anos, o que, por si só, já seria suficiente para que a audiência de custódia fosse respeitada e observada em nosso país. Os direitos e as garantias previstas por esses acordos não podem ficar condicionados à normativa do Direito interno de cada país, há uma necessidade premente de que o Brasil ajuste o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais, sob pena de enfraquecimento do sistema internacional de proteção dos direitos humanos.
3.1 O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
No que se refere à previsão normativa quanto à aplicabilidade da audiência, o artigo 9°, tópico 3°, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque dispõe:
Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura a poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença. (PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS DE NOVA IORQUE, 1992).
Citamos, ainda, a Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH), em seu artigo 5°, item 3°:
Qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1, alínea c), do presente artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada num prazo razoável, ou posta em liberdade durante o processo. A colocação em liberdade pode estar condicionada a uma garantia que assegure a comparência do interessado em juízo. (CONVENÇÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS, 1950).
Ressalte-se que o Pacto Internacional de Direito Civis e Políticos integra o ordenamento jurídico nacional, tendo sido promulgado internamente por meio do Decreto no 592, de 6 de julho de 1992, o que também ocorreu com a Convenção Americana de Direitos Humanos, cuja promulgação se deu por meio do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992.
3.2. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos
Outro dispositivo que fundamenta a questão da audiência de custódia por meio de tratados internacionais no Brasil é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, que destaca em seu artigo 7, item 5:
Toda pessoa presa, detida e retida deve ser conduzida, sem demora à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em um prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. (PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA, 1992).
A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) apresenta como finalidade da audiência de custódia prevenir ameaças e maus-tratos e, também, detectar e prevenir prisões e detenções ilegais e arbitrárias.
Conforme ressalta Cançado Trindade (2003), a tendência constitucional atualmente manifesta, de dispensar um tratamento especial aos tratados de direitos humanos, sinaliza uma escala de valores na qual o ser humano passa a ocupar posição central.
Esse precedente significou uma mudança no posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que passou a entender que a Convenção Americana de Direitos Humanos tem natureza supralegal (posição do Min. Gilmar Mendes) ou materialmente constitucional (posição do Min. Celso de Mello).
Diante do caráter especial assumido pelos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico visa impedir a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional que conflite com esse entendimento.
Portanto, em termos práticos, qualquer norma infraconstitucional que conflite com uma garantia assegurada na Convenção Americana de Direitos Humanos e no Pacto internacional de Direitos Civis e Políticos, anterior ou posterior à promulgação de tais tratados, não mais poderá ter aplicação.
4. AS GARANTIAS DA LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO DO PRESO
4.1 A apresentação do preso como meio de defesa e como meio de prova
A apresentação imediata do preso perante um juiz imparcial e independente é marcada por uma entrevista da pessoa presa, detida ou retida presidida pela autoridade judicial, acompanhado obrigatoriamente pelo órgão persecutório do Estado, no caso, o Ministério Público, e da indispensável presença da defesa técnica, ou seja, de um advogado ou defensor público.
No Brasil, esse procedimento encontra amparo na mencionada Resolução nº 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, uma vez que os textos internacionais e a legislação interna restam omissos sobre como se deve proceder na apresentação do preso.
Importante mencionar que Nucci (2015, p. 103), além de defender ser o interrogatório um meio de defesa, exprime que ele também se apresenta como meio de prova. Isso porque o acusado pode responder sobre a veracidade da acusação, onde estava quando o fato aconteceu, as circunstâncias de sua ocorrência, dentre outros, pelo que acaba por trazer elementos importantes para a convicção judicial.
Segundo Nucci (2015, p. 20), a prova surge como um ato (forma de verificação da alegação), como um meio (instrumento pelo qual a verdade se apresenta) e como resultado (produto final e que resulta da análise feita).
Na perspectiva de PAIVA (2017, p.133-138), no referido ato normativo, o juiz adverte o preso sobre seu direito de permanecer em silêncio, esclarece o que é a audiência de custódia, concede a palavra ao ministério público e ao advogado (ou defensor público) para requerimentos e indagações, e se dirige ao preso com perguntas que julgue necessárias para o controle sobre a legalidade e necessidade da manutenção prisão, bem como verifica o respeito à integridade física do preso pelos agentes estatais ou a existência de indícios de maus-tratos ou tortura.
De acordo com os termos do artigo 186 do Código de Processo Penal, antes de iniciar o interrogatório, o juiz deve advertir o acusado de seu direito de permanecer calado, sendo que tal silêncio não pode ser interpretado em prejuízo de sua defesa, pois a máxima garantista preconiza nemo tenetur se detegere, que diz respeito ao direito de não produzir provas contra si mesmo. Da mesma forma, o princípio da não autoincriminação (nemo tenetur se ipsum accusare) desobriga o acusado de colaborar com as investigações, o que somente pode haver na hipótese de atuação livre, voluntária e consciente daquele a quem se imputa uma acusação.
Tal garantia decorre do direito fundamental do acusado de não produzir prova contra si mesmo, decorrente da vedação a autoincriminação e da presunção de inocência, em conformidade com o artigo 8º, 2, “g”, do Pacto de São José da Costa Rica – Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969 e artigo 14, 3, “g” do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova York, de 19 de dezembro de 1966, ambos já internalizados em nosso ordenamento jurídico.
Neste sentido, FERRAJOLI (2010) entende que o interrogatório do acusado é onde melhor se manifestam as diferenças entre o sistema inquisitivo e o acusatório, pois era no interrogatório que se iniciava a guerra forense e o primeiro ataque do órgão responsável pela persecução penal do Estado.
Contudo, o autor complementa que o avanço do modelo garantista trouxe uma nova roupagem à concepção do interrogatório, de modo que se tornou ato processual essencial e direito fundamental do acusado, eficaz e oportuno para o exercício da autodefesa:
Ao contrário, no modelo garantista do processo acusatório, informado pela presunção de inocência, o interrogatório é o principal meio de defesa, tendo a única função de dar vida materialmente ao contraditório e de permitir ao imputado contestar a acusação ou apresentar argumentos para se justificar. Nemo tenetur se detegere é a primeira máxima do garantismo processual acusatório, enunciada por Hobbes e recebida desde o século XVII no direito inglês. (FERRAJOLI, 2010, p. 485).
FERRAJOLI (2010, p. 483) defende que o processo, antes de tudo e num Estado Democrático de Direito, existe por causa do réu e se justifica como forma de frear as arbitrariedades e tutelar o direito dos inocentes e acusados. Portanto, não existe para condenar, pelo contrário, existe para garantir que, se houver punição, será precedida das garantias constitucionais na sua mais ampla interpretação.
Por outro lado, o processo penal brasileiro prevê que o preso em flagrante é conduzido à autoridade policial, onde é formalizado o auto de prisão em flagrante e posteriormente encaminhado ao juiz, que decidirá nos termos do artigo 310 do Código de Processo Penal, se homologa ou relaxa a prisão em flagrante (em caso de ilegalidade) e em continuidade, decidirá sobre o pedido de prisão preventiva ou medida cautelar diversa (CPP, artigo 319).
Acontece que isso geralmente ocorre de forma burocrática e sem a presença do detido, ou seja, o juiz não tem contato com o cidadão preso e, se decretar a prisão preventiva, somente irá ouvi-lo no interrogatório muito tempo depois, após concluída toda a fase de investigação e instrução da ação penal, pois o interrogatório é o último ato do procedimento da instrução, com inegável vantagem para o direito de defesa, mas com imenso sacrifício da liberdade. Importante destacar que a apresentação imediata do preso ao juiz não pode se transformar numa colheita antecipada de provas, devendo-se observar o devido processo legal.
Dessa forma, impõe-se a existência de limites à oitiva do custodiado, estabelecendo que o objeto das perguntas deva se restringir ao necessário para que o juiz decida a respeito da prisão e liberdade e a verificação de tortura ou maus-tratos, evitando-se assim, a antecipação do interrogatório, bem como a vedação à utilização posterior das declarações do preso e outras provas que porventura se produzam na audiência de apresentação.
Nesse sentido, VASCONCELLOS (2016) assim se expressa:
[...] a oitiva do preso realizada em audiência de custódia não pode ser utilizada como prova para eventual condenação, caracterizando-se uma regra de exclusão probatória, pois: 1) isso desvirtuaria a finalidade da audiência de custódia, causando uma completa inversão em sua essência; 2) haveria violação ao contraditório e ao direito de defesa, pois se inverteria a ordem dos atos acusatórios e defensivos, já que o imputado se manifestaria antes do estabelecimento da denúncia e da delimitação da imputação; 3) isso violaria a sistemática adotada pela reforma de 2008, que deslocou adequadamente o interrogatório para o final do procedimento, em prol do contraditório e da ampla defesa; e 4) possibilitar-se-iam indevidos espaços para manifestações de arbitrariedades e ilegítimas negociações, visando à obtenção de condenações antecipadas por meio de barganhas, incompatíveis com o processo penal de um Estado Democrático de Direito.
A propósito, ALFLEN e ANDRADE (2016, p. 138-140) argumentam:
Em síntese, quando judicializado, o auto de prisão em flagrante adquire natureza processual, ambiente onde se manifesta o princípio do contraditório. Logo, não há como negar sua incidência quando da oitiva judicial do sujeito privado em sua liberdade, especificadamente, autorizando-se tanto o Ministério Público como a defesa a formularem perguntas após a inquirição realizada pelo juiz.
Da mesma forma, PAIVA (2017, p. 114) considera a possibilidade de utilização do depoimento colhido na audiência de custódia ao defender que as declarações são provisórias ao estado de flagrância ou prisão e estão sujeitas a ratificação ou retificação quando da realização da instrução processual.
O mesmo autor tece crítica, por outro lado, ao argumento de vedação preconizado na Resolução nº 213/1526, uma vez que o sistema processual brasileiro admite, ainda que timidamente, em seu artigo 156 do Código de Processo Penal - CPP a utilização de provas e depoimentos colhidos na fase de investigação preliminar, onde raramente é possibilitado ao indiciado o acompanhamento de advogado na produção de provas pela autoridade policial.
Ainda de acordo com PAIVA (2017), tem-se observado a insuficiência do regramento jurídico brasileiro para superar a fronteira do papel:
Trata-se de um sistema puramente cartorial, em que o Poder Judiciário, de forma asséptica, decide a partir do papel, sem garantir ao preso o direito de – pessoalmente – se fazer ouvir, revelando um padrão de comportamento judicial que, com o passar dos tempos, se tornou praticamente gerencial, uma atividade quase que burocrática, em que predomina a conversão do flagrante em prisão preventiva, com base em elementos excessivamente abstratos (…)
Esse entendimento é compartilhado por Giacomolli (apud PAIVA, 2017), que destaca a contradição entre o que está legalmente previsto e o que se observa na realidade:
Tanto nas hipóteses de flagrante delito convertido em prisão preventiva quanto na decretação de prisão preventiva autônoma, o preso não é ouvido e nem apresentado ao juiz. Isso não ocorre imediatamente e nem em um prazo razoável … O preso somente será ouvido quando da instrução processual e, como regra, no final do procedimento, meses após a sua prisão. Nas situações em flagrante, o que é apresentado imediatamente ao juiz é a documentação da prisão, mas não o detido.
Nesse aspecto, destaca a importância de cumprimento do disposto na Convenção Americana de Direitos Humanos (CAHD), uma vez que o direito à audiência é um desdobramento da ampla defesa e do contraditório, na medida em que se daria ao sujeito a oportunidade de expor suas razões defensivas, possibilitando a concessão de liberdade provisória ou a substituição da prisão pelas cautelares alternativas.
4.2 O princípio do contraditório e a ampla defesa como pressupostos para exercício do direito
Um dos princípios básicos do Estado Democrático de Direito é o respeito ao devido processo legal, que consiste em um instrumento de efetivação dos direitos fundamentais e ao mesmo tempo de proteção do indivíduo em face do poder estatal, fundamentando, assim, a sua existência na ótica garantista do processo penal.
Como pré-requisitos do devido processo legal estão outros princípios fundamentais, quais sejam, a ampla defesa e o contraditório, previstos no artigo 5°, inciso LV, da CF/88, que dispõe acerca da observância desses princípios em todos os processos, sejam eles judiciais ou administrativos.
A ampla defesa é a garantia de acesso a todos os meios de provas legalmente permitidos em direito. Já o princípio do contraditório, caracteriza-se no direito que as partes têm de se manifestar sobre qualquer fato alegado ou prova produzida pela parte contrária, de modo que influencie no resultado da demanda e se obtenha uma decisão justa e democrática.
A garantia do devido processo legal está presente na Magna Carta inglesa de 1215, que se preocupou em exigir um processo como formalidade necessária que antecedesse a imposição de penas restritivas de direitos, de forma a coibir os prováveis abusos praticados pelo rei.
No Brasil, foi com a Constituição do Império de 1824 que primeiro se teve notícia da observância do contraditório e da ampla defesa no sistema processual, mesmo que de forma implícita, ao consagrar as garantias individuais do homem e o devido processo legal:
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. [...] XI. Ninguém será sentenciado, senão pela Autoridade competente, por virtude de Lei anterior, e na fórma por ella prescripta.
As Constituições de 1891 (Artigo 72, §§ 15, 16) e de 1934 (Artigo 113, itens 24 e 26) asseguraram, de forma expressa, o exercício do amplo direito de defesa como direito fundamental a ser observado no processo. Já na Constituição de 1937, de cunho totalitário, não foram previstas garantias do exercício do direito de defesa no processo.
As garantias processuais voltaram a ter assento constitucional nas Constituições de 1946 e 1967, embora nesta última a sua tímida influência para a observância plena das garantias porquanto o regime militar implantado à época fora predominantemente marcado por abusos do poder de polícia e perseguições políticas aos opositores do governo.
À época histórica remonta à instauração do Estado Novo por Getúlio Vargas. Com o fim do regime ditatorial, e, consequentemente, de diversos abusos pessoais e processuais, foi promulgada a democrática Constituição Federal de 1988, ainda vigente nos dias atuais, assegurando de forma clara os princípios do contraditório e da ampla defesa como direitos fundamentais das pessoas e essenciais ao Estado Democrático de Direito.
Assim, no sistema brasileiro, atualmente o contraditório passou a ser garantido a qualquer tipo de processo, tanto judicial como administrativo, sendo todos os atos processuais acompanhados pelas partes de forma a propiciar a chegada a um resultado final imparcial e de respeito a todas as fases legais possíveis.
O princípio do contraditório é assegurado pelo artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, sendo corolário do princípio do devido processo legal, caracterizado pela possibilidade de resposta e a utilização de todos os meios de defesa em direito admitidos. Não se trata de uma benesse do Estado aos seus governados, mas uma questão de ordem pública essencial a qualquer país que pretenda ser, minimamente, democrático.
Ocorre que, conforme ensina TOURINHO FILHO (2012, p. 63-64), em tempos passados o princípio do contraditório era entendido apenas sob um prisma negativo, como o direito de manifestar-se contrariamente a qualquer ação da outra parte no processo.
Atualmente, entretanto, passou o contraditório a ser entendido de maneira mais ampla, como a atuação positiva da parte em todos os passos do processo, influindo diretamente em quaisquer aspectos que sejam importantes para a decisão do conflito. Deixou de ser apenas um elemento para a dialética do processo, passando a ser a participação efetiva na totalidade do processo em busca do sentimento de justiça em face do bem jurídico que se deseja proteger.
A dimensão atual do contraditório impõe a efetiva participação das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de influírem, em igualdade de condições, no convencimento do magistrado, contribuindo na descrição dos fatos, na produção de provas e no debate das questões de direito. Às partes deve-se conferir oportunidade de, em igualdade de condições, participar do convencimento do juiz.
Porém, indo na contramão da evolução do direito constitucional, processual criminal e cultural, a investigação preliminar ainda se mantém com características típicas do sistema inquisitorial, uma vez que não é oferecido ao indiciado o mínimo direito de exercer o contraditório de modo que lhe permita dialogar e intervir na opinião do órgão acusador.
Mesmo levando-se em conta a atual exigência de presença de advogado no interrogatório e a possibilidade da defesa técnica acompanhar os atos investigativos depois da vigência da Lei nº 13.245/16, isso não significa que foi consagrado o contraditório no procedimento investigativo policial, tendo em vista que ainda estão presentes as características inquisitoriais, sobretudo porque o advogado funcionará apenas como mero tutor de garantias e não influenciará no resultado do procedimento.
A apresentação do preso em flagrante diretamente ao juiz, acompanhado do advogado (defensor público) e promotor de Justiça, constitui, assim, grande avanço na efetivação dos direitos fundamentais, especialmente porque garante ao custodiado ser ouvido imediatamente pelo juiz, preservando-se, dessa forma, o contraditório antes mesmo da instauração da ação penal.
A implantação do direito de apresentação pessoal ao juiz à realidade brasileira segue importantes princípios constitucionais que norteiam todo ordenamento jurídico brasileiro, principalmente o devido processo legal e seus pressupostos, os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Sendo assim, vislumbra-se a ideia de que princípios constitucionais sejam também aplicados à fase investigatória preliminar, quando houver compatibilidade, respeitando o devido processo legal, como ferramenta de garantia às pessoas investigadas e a efetividade da aplicação da lei penal. Isso porque, na medida em que a apresentação do preso ao juiz viabiliza o efetivo exercício dos direitos constitucionalmente garantidos, a propensão disso é a possível e necessária constitucionalização da investigação preliminar, ou então, a sua extinção na forma como atualmente concebemos.
Vale a pena ressaltar que ainda existem posições contrárias, que defendem a manutenção do caráter inquisitório, baseados no argumento de que essa fase investigativa não advirá nenhum tipo de sanção à pessoa investigada por se tratar de um procedimento administrativo.
Não obstante, a estigmatização causada por um inquérito mal construído e sem respeito ao direito de defesa ofenderia frontalmente a imagem, a honra e a dignidade da pessoa humana.
A aplicação do mínimo contraditório, nesse sentido, possibilitará a reformulação do sistema de garantias processuais combinado com a efetividade da aplicação da lei penal, ao mesmo tempo em que evitará a propositura de ações penais desnecessárias.
Deduz-se, portanto, que sem a humanização do processo, com a observância de todas as garantias e direitos fundamentais do homem, especialmente o contraditório, ampla defesa, igualdade de tratamento entre as partes, dentre tantos outros, não há que se falar em devido processo legal ou democrático.
5 RESULTADOS INICIAIS ALCANÇADOS PELO PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO TOCANTINS COM A VIGÊNCIA DA RESOLUÇÃO Nº 17/2015
Como consequência imediata da implantação da audiência de custódia, constam no portal de internet do CNJ os primeiros números referentes à implantação desse instituto nos Estados da Federação.
Dados atualizados até junho de 2017 pelo Mapa de Implantação das Audiências de Custódia, do CNJ, revelam que do total de audiências realizadas no país (258.485), mais de 40% resultaram em liberdade provisória; 142.988 casos (55,32%) resultaram em prisão preventiva; em 12.665 casos (4,90%) houve alegação de violência no ato de prisão e em 27.669 casos (10,70%) houve encaminhamento social/assistencial.
No Tocantins, o projeto foi implantado em agosto de 2015, por meio da Resolução nº 17, de 02 de julho de 2015 do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins, inicialmente em Palmas e posteriormente em Araguaína e Gurupi.
Em âmbito estadual, os resultados iniciais obtidos com as mudanças decorrentes da implantação das audiências de custódia demonstram uma redução significativa do número de presos. Das 1.217 audiências de custódia realizadas no Tocantins até junho de 2017, um total de 39,52% resultaram em liberdade provisória, embora o mero levantamento estatístico das audiências de custódia realizadas no Estado do Tocantins não seja instrumento suficiente para comprovar qualquer tipo de mudança ocorrida no tratamento dos indivíduos presos em flagrante.
Lançando-se mão dos dados divulgados pelo próprio Tribunal de Justiça, nos cinco primeiros meses de implantação do projeto, verifica-se que das 254 audiências de custódia realizadas em Palmas, 144 resultaram em liberdade, ou seja, menos da metade.
Segundo dados mais recentes, divulgados pela Corregedoria-Geral de Justiça, entre outubro de 2017 e maio de 2018, das 482 audiências de custódia realizadas na capital, 471 resultaram em concessão de liberdade do indivíduo. Isso significa dizer que apenas 2% das prisões em flagrante, nesse período, resultaram em prisão, o que nos leva a acreditar que, ao lado de outras medidas destinadas à redução da criminalidade e do encarceramento, esse instituto poderá ter reflexos positivos para a redução da população carcerária do Estado.
Os números apresentados refletem uma mudança expressiva trazida com a implementação da audiência de custódia no tratamento dispensado pelo Judiciário aos indivíduos presos em flagrante na comarca de Palmas, que pode ser comprovada pelo número de liberdades provisórias concedidas.
Tendo-se em vista que os tratados internacionais que preveem a realização de audiência de custódia não restringem a prática somente aos casos de prisão em flagrante, tem-se observado uma tendência de que esse instituto se estenda a outras circunstâncias. Recentemente, a 2ª turma do STF enviou ao plenário um processo no qual a Defensoria Pública do RJ defende que as audiências de custódia não devem se restringir aos casos de flagrante delito, e sim que independentemente do título prisional, o preso deve ser apresentado, no prazo de 24 horas, à autoridade judicial.
Apesar de se considerar a tendência para ampliação das hipóteses para aplicação das audiências de custódia, entende-se que essa previsão pode encontrar dificuldades, tendo em vista a frequente alegação, por parte dos integrantes do Sistema de Justiça, quanto aos gastos com o deslocamento dos presos e outros fatores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A prisão cautelar representa parte de uma tradição de processo penal brasileiro. Mesmo com a criação de medidas cautelares diversas, a banalização dessa medida permanece na lógica judicial, principalmente quando consideramos delitos do Direito Penal clássico como crimes contra o patrimônio e tráfico de entorpecentes. Verifica-se que muitos processos de prisão cautelar duram três, quatro anos, sem condenação nenhuma, de forma que os réus acabam cumprindo pena sem sequer terem sido condenados.
Além disso, a superlotação carcerária e a precariedade das instalações das delegacias e presídios, bem como a inobservância, pelo Estado, da ordem jurídica correspondente, configuram tratamento degradante às pessoas que se encontram sob custódia.
Nesse sentido, a audiência de custódia surgiu como um recurso para evitar prisões ilegais e desnecessárias, contribuindo assim para o desafogo do cárcere, bem como para adequar o nosso sistema jurídico aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, como é o caso do Pacto de San José da Costa Rica, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Após quatro anos da implantação dessa medida, os resultados apurados pelo Conselho Nacional de Justiça são otimistas e comprovam que a introdução da audiência de custódia contribuiu para a redução de prisões ilegais e das prisões preventivas, consistindo no primeiro controle de legalidade da prisão e demonstrando uma avanço frente aos países que não adotaram essa medida.
Do ponto de vista financeiro, apesar das dificuldades apontadas por alguns estudiosos para a realização desse instituto, a exemplo dos gastos com deslocamento de presos e retirada de policiais, juízes, promotores, defensores públicos e demais servidores de outras áreas, que são destinados à realização de audiências de custódia, a economia aos cofres públicos chega a milhões, levando-se em conta o dispêndio individual de cada indivíduo preso e a consequente necessidade de construção de novos presídios.
Por fim, é evidente que o problema enfrentado pelo sistema prisional não será extinto apenas com a audiência de custódia, sendo necessário o emprego de medidas complementares, contudo, os resultados obtidos nos últimos anos comprovam que as finalidades esperadas com essa medida estão sendo alcançadas.
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Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade Serra do Carmo
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Luciene da Silva. A implantação das audiências de custódia e os avanços na proteção de direitos fundamentais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 nov 2019, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53764/a-implantao-das-audincias-de-custdia-e-os-avanos-na-proteo-de-direitos-fundamentais. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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