Resumo: O presente trabalho versa sobre as modificações introduzidas pela Lei n. 13.256/2016 nos artigos 1.030 e 1.042 do Código de Processo Civil de 2015 ainda no período da vacatio legis deste, com foco na repercussão de tais mudanças no que diz respeito aos mecanismos de superação dos padrões decisórios vinculantes estabelecidos pelo referido Código. A metodologia empregada para a investigação foi a pesquisa bibliográfica e documental. Com tal abordagem, o trabalho pretende suscitar a reflexão acerca da necessidade de se conferir interpretação conforme a Constituição da República aos mencionados dispositivos legais, a fim de suprir eventuais lacunas e sanar obscuridades resultantes da reforma sofrida pelo CPC antes mesmo da sua entrada em vigor. No texto, parte-se da delimitação conceitual das técnicas de distinção e superação dos precedentes. Seguidamente, são analisadas as modificações sofridas pelo Codex nos pontos em que trata do juízo de admissibilidade dos recursos especial e extraordinário e dos meios de impugnação cabíveis contra a respectiva decisão de inadmissão. Discute-se sobre os possíveis obstáculos normativos impostos à superação dos padrões decisórios vinculantes e, finalmente, propõe-se uma solução hermenêutica para o impasse, de modo a prestigiar as garantias constitucionais do acesso à justiça e do contraditório na acepção substancial.
Palavras-chave: Precedentes. CPC. Lei N. 13.256/2016. Impactos.
O Código de Processo Civil de 2015, em vigor desde o dia 18 de março de 2016, trouxe importantes inovações ao sistema brasileiro no que diz respeito à aplicação dos precedentes. A tendência, já observada durante a vigência do Codex de 1973, de se uniformizar a jurisprudência e conferir eficácia vinculante a determinados padrões decisórios foi consolidada e ampliada no âmbito normativo.
A mudança advinda com a nova codificação foi intensa a ponto de levar alguns a cogitarem da migração para um modelo de common law. Trata-se, contudo, de uma conclusão precipitada. O Direito brasileiro ainda é centrado na lei escrita e não há qualquer indício de que tal realidade se reverterá.
Com efeito, a transposição para um sistema baseado nas decisões judiciais, tal como o inglês, demandaria profundas modificações na sociedade por razões históricas e culturais. Cogitar dessa transmutação pelo mero advento de um novo Código seria um contrassenso.
É notório, todavia, o influxo sofrido entre os sistemas de civil law e de common law, fenômeno global que, no Brasil, impactou fortemente a redação do CPC vigente. Nesse cenário, e em razão do choque provocado pela influência de um modelo jurídico tão diverso daquele a que se está habituado, é natural o surgimento de ruídos na atividade legiferante e na aplicação da norma enquanto a comunidade jurídica se reprograma para assimilar as relevantes transformações sofridas pelo ordenamento.
Durante essa fase de adaptação é essencial o olhar atento e crítico dos juristas a fim compreender e conferir efetividade ao novo regramento, sem descurar da necessária observância das normas constitucionais, supralegais e dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (art. 5º, § 2º, CF/88). Afinal, apesar de algumas vozes ecoarem no sentido de sobrelevar a importância da atuação judicial em detrimento da lei, a Constituição, que está no topo da pirâmide normativa, não legitima tal entendimento. Não se deve inverter os fatores para interpretar o texto magno à luz de uma norma que lhe é inferior.
Dentro desse contexto, sobressai a necessidade de um percuciente exame das modificações introduzidas pela Lei n.º 13.256/2016 nos artigos 1.030 e 1.042 do Código de Processo Civil de 2015, ainda no período da vacatio legis deste.
Tais dispositivos, como se demonstrará adiante, fizeram ressurgir o duplo juízo de admissibilidade dos recursos especial e extraordinário e ampliaram os poderes conferidos aos presidentes ou vice-presidentes dos tribunais ordinários, tudo com o louvável intuito de prestigiar os precedentes judiciais oriundos dos órgãos de superposição. Contudo, a depender da forma como essas regras venham a ser aplicadas, há um grave risco de engessamento da jurisprudência, impedindo-se que as partes provoquem a superação e padrões decisórios elaborados pelas cortes superiores, sendo esse o cerne da questão enfrentada neste trabalho.
A metodologia empregada para a investigação foi a pesquisa bibliográfica e documental. Com tal abordagem, pretende-se suscitar a reflexão acerca da necessidade de se conferir interpretação conforme a Constituição Federal aos artigos mencionados, a fim de suprir lacunas e sanar obscuridades resultantes da reforma sofrida pelo CPC antes mesmo da sua entrada em vigor.
No texto, parte-se da delimitação conceitual das técnicas de distinção e superação dos precedentes. Seguidamente, são analisadas as modificações sofridas pelos artigos 1.030 e 1.042 do CPC, que tratam do juízo de admissibilidade dos recursos especial e extraordinário. Discute-se sobre possíveis obstáculos normativos impostos à superação dos precedentes judiciais e, finalmente, propõe-se uma solução para o impasse, de modo a prestigiar as garantias constitucionais do acesso à justiça e do contraditório sem descurar da força dos padrões decisórios enumerados no art. 927 do CPC.
O tema é relevante, repercutindo não apenas na prática dos profissionais que lidam com o Direito, como também na esfera jurídica dos cidadãos que buscam no Poder Judiciário a resolução dos seus conflitos com a justa expectativa de, mediante um processo argumentativo e equânime, ter a oportunidade de influenciar o julgador na tomada de decisões.
O art. 926 do CPC estabelece que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. Para tanto, um dos mecanismos disponíveis consiste na aprovação de súmulas da jurisprudência dominante, atendo-se os tribunais às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua edição (§ 2º do art. 926).
Precedentes, na lição de MacCormick e Summers, “são decisões anteriores que funcionam como modelos para decisões futuras. Aplicam-se as lições do passado para resolver problemas do presente e do futuro, constituindo uma parte fundamental da razão prática humana”. (MACCORMICK, 1997, p. 1).
É importante repisar o aspecto, tantas vezes desconsiderado, de que precedentes referem-se a casos concretos. As teses firmadas não devem ser tratadas como enunciados abstratos aplicáveis a hipóteses sem identidade com aquelas que lhes são subjacentes, peculiaridade que diferencia da atividade legislativa a atuação dos juízes na criação da norma. Com efeito, o legislador elabora o texto normativo e o julgador, ao aplicá-lo ao caso concreto, faz nascer a norma pela via interpretativa.
Juraci Mourão Lopes Filho ensina que, ao se compreender o precedente como uma resposta, ele se vincula às indagações formuladas no processo que lhe deu origem e àquelas suscitadas no novo caso, em que se pretende aplicá-lo. Segundo o autor, “é justamente a compreensão do precedente nesse jogo de perguntas e respostas (que corresponde ao próprio trabalho hermenêutico exercido pelo magistrado) que impedirá que haja uma generalização e abstração automática e não fundamentada” (LOPES FILHO, 2016, p. 275-276). Essa generalização, quando permitida, comporta gradação e, ainda assim, terá força hermenêutica variável. Impede que artificiosamente se desprenda uma parte de uma decisão (que só pode ser entendida em função do todo) como se fosse estanque e autônoma para ser utilizada em um grande número de situações posteriores (LOPES FILHO, 2016).
Ainda na cadência do novo direito jurisprudencial brasileiro, o art. 927 do CPC estabelece que os juízes e os tribunais observarão: I) as decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade; II) os enunciados de súmula vinculante; III) os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV) os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional e do STJ em matéria infraconstitucional; V) a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
Ao decidir com fundamento no dispositivo legal em tela, deve-se observar o disposto no art. 10, norma fundamental do processo que impõe o contraditório prévio às decisões judiciais, e no art. 489, § 1º, que trata do dever de fundamentação.
Nos termos do inc. V do citado § 1º do art. 489, considera-se não fundamentada a decisão que se limita a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos. Carecerá, igualmente, de fundamentação o julgado que deixa de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento (art. 489, § 1º, V, parte final). Trata-se da positivação das técnicas de distinguishing e overruling.
Quanto à parte final desse dispositivo (art. 489, § 1º, V), prevalece a interpretação segundo a qual o julgador está obrigado a decidir de acordo com os padrões decisórios enumerados no art. 927, salvo quando demonstrar que o caso submetido à sua análise é distinto daquele que ensejou a formação da tese judicial ou que esta foi efetivamente superada.
Outra leitura possível é a de que a limitação trazida pela lei diz respeito à fundamentação a ser adotada pelo magistrado, que deve considerar o precedente, jurisprudência ou súmula – ou seja, não pode ignorá-los; contudo, essa consideração pode ou não repercutir na solução que dará à causa.
A diferença não é sutil. O posicionamento exposto, defendido neste trabalho, implica em dizer que por meio da atividade interpretativa o juiz pode proferir decisão em desacordo com precedentes (exceto os decorrentes de controle abstrato de constitucionalidade), os quais, a depender da força vinculante, tão somente qualificam em maior ou menor medida o dever de argumentação ínsito às decisões judiciais (art. 93, IX, CF/88).
Em outras palavras, o teor do art. 489, § 1º, V, c/c art. 927 do CPC não retirou do magistrado a possibilidade de julgar de acordo com o seu convencimento, o qual, diga-se, não é livre, pois deve ser pautado no ordenamento jurídico e não em convicções pessoais.
Para a melhor compreensão, basta fazer um paralelo com a vinculação do magistrado à lei, que logicamente deve ser observada. Todavia, é possível afastar a aplicação do texto legal por razões diversas, tais como inconstitucionalidade, inconvencionalidade, antinomias e até mesmo pela “derrotabilidade” (defeasibility) do texto normativo. Tal possibilidade não enfraquece o sistema; ao contrário, permite que este se adapte à realidade para cumprir as finalidades estabelecidas pela Constituição da República, fortalecendo-o.
Da mesma forma devem ser tratadas as normas construídas pela atividade judicante, sob pena de lhes conferir força maior do que a das regras e dos princípios positivados. Logo, os padrões decisórios deverão ser observados e enfrentados pelos juízes e tribunais na apreciação de casos análogos, o que não significa dizer que não poderão deles divergir ou deixar de aplicá-los em casos específicos e excepcionais, desde que a fundamentação apresente um ganho hermenêutico em relação ao entendimento vinculante desafiado.
Ronald Dworkin afirma que “a judge’s duty is to interpret the legal history he finds, not to invent a better history” (em tradução livre, “o dever de um juiz é interpretar a história legal que encontra, não inventar uma melhor”) (DWORKIN, 1982, p. 544, apud VASCONCELLOS, 2009). Na linha de argumentação acima exposta, a cadeia de novas histórias, escritas por diferentes autores (os demais juízes e tribunais) de forma coerente e adequada ao passado (teoria da chain novel), representaria o respeito aos precedentes judiciais (VASCONCELLOS, 2009, p. 115). Tal respeito não é incompatível com a evolução jurisprudencial, da qual devem participar todos os sujeitos do processo e não somente os órgãos de cúpula. Um precedente não deve funcionar como uma prisão da função criativa exercida pelo juiz por meio do processo hermenêutico.
Deve-se assegurar às partes e aos magistrados a possibilidade de, mediante o exercício do contraditório e cumprido o ônus argumentativo em densidade compatível com a força do padrão decisório: 1º) provocar a sua superação ou 2º) excepcionar a sua aplicação.
No primeiro caso, não se está a defender a possibilidade de superação dos precedentes por órgãos hierarquicamente inferiores à corte emissora, esvaziando por completo a lógica do direito jurisprudencial. Defende-se, apenas, que a divergência seja possível, desde que enfrentados os fundamentos utilizados na construção do precedente e justificada a necessidade da sua superação mediante um aprofundamento argumentativo que demonstre a insuficiência da tese desafiada. As instâncias recursais, acaso provocadas, deverão enfrentar de modo específico os fundamentos adotados na decisão divergente e, não se convencendo, cessará o percurso orientado à superação, aplicando-se o padrão decisório. Nesse caso, uma nova divergência dependeria de um avanço interpretativo, acrescendo, assim, novos capítulos à novela.
A segunda hipótese assemelha-se à aplicação da técnica do distinguishing, mas com ela não se confunde. A proposta é mais ousada e visa a permitir que o magistrado, ao verificar peculiaridades fáticas ou normativas não enfrentadas na formação do precedente, deixe de aplicá-los em casos isolados. Verifica-se, nesse ponto, uma convergência com teoria da derrotabilidade normativa, compreendida como a “possibilidade, no caso concreto, de uma norma ser afastada ou ter sua aplicação negada, sempre que uma exceção relevante se apresente, ainda que a norma tenha preenchido seus requisitos necessários e suficientes para que seja válida e aplicável” (CUNHA JR., 2015). A propósito, cita-se:
Em termos práticos, NEIL MACCORMICK afirma que: “(…) se uma certa decisão pode ser adequadamente dada para um certo caso, então, materialmente, essa mesma decisão tem que ser a correta em qualquer caso materialmente similar.”7 Está é a ideia de universalização, constituída pela aplicação prática do conceito de autoprecedente, segundo o qual o Tribunal que gera um precedente deve manter coerência com as suas próprias decisões, “devendo realizar em definitivo – e para empregar palavras de PERELMAN – uma ´deliberação consigo mesmo` (délibération avec soi-même).”8 Importa dizer, quando as “circunstâncias de fato e as hipóteses normativas são as mesmas — ou se mantêm constantes — pode-se afirmar que o intérprete, a partir de uma exigência da argumentação racional, deva sempre formular uma única resposta quando estiver na presença das mesmas hipóteses.”9
Esta vinculação, frise-se, não impede a alteração da conclusão normativa, em virtude da configuração de uma nova informação que mude o quadro de premissas. A lógica derrotável (não-monotônica) vai além da teoria da chain novel, conseguindo conciliar a necessária coerência do raciocínio jurídico com a possibilidade de revisão da conclusão normativa. É bem verdade que esta mudança no quadro de premissas, indispensável para a alteração da ilação normativa, não ocorre em uma perspectiva cartesiana. São situações fáticas, normativas (e até mesmo valorativas) capazes de alterar o conjunto de premissas, modificando assim a conclusão. Trata-se da correlação entre estabilidade e flexibilização, entre a necessidade de seguir o precedente e a exigência de um julgamento justo para o caso concreto. (grifei).
Feitas essas considerações, esboça-se um possível roteiro para o julgador: após examinar a narrativa fática exposta pelas partes, os argumentos jurídicos por elas deduzidos e os pedidos formulados, o magistrado deve aferir a existência de identidade entre o caso concreto submetido à sua jurisdição e aqueles que ensejaram a formação do padrão decisório. É nesse ponto em que se verifica a possibilidade de utilização das técnicas de distinção (distinguishing) ou de superação (overruling). Sendo distintos os casos, afasta-se a aplicação da tese jurisprudencial, nada obstando a sua utilização somente a título persuasivo. Se, do contrário, for constatada a identidade entre as causas, o julgador decidirá se aplica ou não aplica o precedente, fundamentando minuciosamente a sua convicção. Ao deixar de aplicá-lo, alternativamente: I) demonstrará que houve a superação do entendimento pelo órgão emissor ou em razão de lei nova; II) exporá as razões pelas quais entende que essa superação deve ocorrer ou III) explicitará os motivos por que a orientação jurisprudencial não deve ser aplicada ao caso em particular, embora não esteja nem deva ser superada.
A superação de um padrão decisório (overruling) pode se dar de maneira difusa ou concentrada. Fredie Didier Jr. explana que no Brasil o overruling difuso é a regra e pode ser realizado em qualquer processo que, chegando ao tribunal, permita a superação do precedente. Já o concentrado ocorre por meio da instauração de procedimento autônomo, cujo objeto é a revisão de um entendimento já consolidado no tribunal. “É o que ocorre com o pedido de revisão ou cancelamento de súmula vinculante (art. 3º da Lei n. 11.417/2006). Ao revisar ou cancelar o enunciado da súmula, o STF estará, na verdade, redimensionando a sua jurisprudência ou a alterando”. (DIDIER JR., 2013).
A via concentrada para a superação de precedentes é uma peculiaridade do sistema brasileiro, segundo afirma o citado autor. Podem propor a edição, revisão ou o cancelamento de súmulas vinculantes os apenas os sujeitos enumerados no Lei n. 11.417/2006.
O overruling realizado difusamente é, por sua natureza, mais dinâmico e democrático, podendo ser suscitado por qualquer pessoa no âmbito de processos individuais ou coletivos. Enquanto na superação pela via concentrada um universo de interessados é alijado da discussão, na difusa possibilita-se que aqueles sujeitos submetam seus argumentos à apreciação de magistrados diversos, ampliando o espectro de teses jurídicas que irão compor a ratio decidendi dos julgados proferidos pelos órgãos de maior hierarquia, qualificando o debate e conferindo maior grau de legitimidade aos padrões decisórios.
Ocorre que o entendimento segundo o qual o sistema brasileiro impede a adoção, pelos magistrados, de solução diversa daquela imposta pelo padrão decisório vinculante até que este seja superado pelo órgão emissor acaba por embaraçar a superação pela via difusa.
Argumenta-se que basta o interessado provocar todas as instâncias até submeter sua tese à apreciação do órgão competente para superá-lo. Porém, esse entendimento limitador da atividade cognitiva do juiz impõe às partes um ônus excessivo, considerando o tempo necessário para o processo chegar aos tribunais, mormente os de superposição. Fere, ademais, a garantia de acesso à justiça de uma ampla massa da população desprovida de recursos para arcar com os custos do processo até a instância superior.
A partir da reforma sofrida pelo CPC com o advento da Lei n.º 13.256/2016, o que antes poderia ser visto como um mero desafio hermenêutico transformou-se em um possível impedimento legal ao overruling difuso com relação aos precedentes firmados sob o rito dos recursos repetitivos e da repercussão geral no âmbito do STJ e do STF, como adiante se expõe.
O texto original do CPC aprovado em 2015 extirpara o duplo juízo de admissibilidade recursal.
A Lei n.º 13.256/2016, contudo, restabeleceu o duplo juízo de admissibilidade dos recursos extraordinários lato sensu. Com isso, os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais permaneceram com competência para analisar os requisitos admissibilidade daquelas impugnações antes de encaminhá-las para o STF e STJ, como ocorria na vigência do CPC de 1973.
Ao regulamentar o processamento daqueles recursos no âmbito das cortes ordinárias, a Lei n.º 13.256/2016 foi além e conferiu amplos poderes ao presidente ou vice-presidente do tribunal perante o qual foi interposto, conforme dispuser seu regimento. Passa-se à análise dessas mudanças.
O caput do art. 1.030 estabelece que recebida a petição do recurso pela secretaria do tribunal, o recorrido será intimado para apresentar contrarrazões no prazo de 15 (quinze) dias, findo o qual os autos serão conclusos ao presidente ou ao vice-presidente do tribunal recorrido.
O inciso I estabelece que o presidente ou vice-presidente negará seguimento a: a) recurso extraordinário que trate de controvérsia a que o STF tenha negado a repercussão geral; b) recurso extraordinário interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do STF exarado no regime de repercussão geral; c) recurso extraordinário e especial interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do STF ou STJ exarado no regime de julgamento de recursos repetitivos. Trata-se de mais uma barreira para a superação de precedentes, fenômeno observado desde a propositura da ação (cf. art. 332, I a IV, e art. 932, IV,).
Ao conferir ao vice-presidente ou presidente poderes para barrar a subida dos recursos às cortes de superposição por confrontarem padrões decisórios vinculantes, o art. 1.030, I, possibilita que o tribunal a quo faça uma verdadeira análise de mérito da impugnação, embora disfarçada de juízo de admissibilidade. Tal conclusão se aplica, igualmente, à previsão do inciso II: caso o órgão julgador decida em desconformidade com entendimento do STF ou do STJ exarado nos regimes de repercussão geral ou de recursos repetitivos, ser-lhe-á conferida pelo presidente ou vice-presidente a oportunidade de se retratar.
Os incisos I e II do art. 1.030 são de constitucionalidade duvidosa, por transferirem a tribunal ordinário a possibilidade de examinar questão de mérito dos recursos extraordinários lato sensu, competência atribuída ao STJ e ao STF pela Constituição Federal e que, portanto, não poderia ser modificada por lei. Nesse sentido:
Para Lucas Buril de Macêdo, o art. 1.030 do CPC teria, nessas hipóteses, permitido mais do que o mero juízo de admissibilidade pelo presidente ou vice-presidente do tribunal a quo, pois caberia a ele exercer o juízo de identidade entre o precedente e o caso sob análise, em que interposto o recurso excepcional, algo que toca ao mérito. Assim, haveria na norma mais do que um problema de qualidade, ao dificultar demasiadamente o juízo de distinção e de superação pelo STF ou STJ, mas, também, um vício de constitucionalidade, uma vez que o juízo de mérito dos recursos excepcionais é de competência dos referidos tribunais.12
Essa tese, contudo, não é acolhida pelas cortes superiores (cf. STJ, EDcl no AgInt no RE nos EDcl no AgInt no AREsp 1.023.507/RJ, Rel. Min. Humberto Martins, Corte Especial, j. 20/06/2018).
Em prosseguimento, o Código prescreve que o presidente ou vice-presidente deverá:
III – sobrestar o recurso que versar sobre controvérsia de caráter repetitivo ainda não decidida pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme se trate de matéria constitucional ou infraconstitucional; (Incluído pela Lei nº 13.256, de 2016) (Vigência)
IV – selecionar o recurso como representativo de controvérsia constitucional ou infraconstitucional, nos termos do § 6º do art. 1.036; (Incluído pela Lei nº 13.256, de 2016) (Vigência)
V – realizar o juízo de admissibilidade e, se positivo, remeter o feito ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça, desde que: (Incluído pela Lei nº 13.256, de 2016)
a) o recurso ainda não tenha sido submetido ao regime de repercussão geral ou de julgamento de recursos repetitivos; (Incluída pela Lei nº 13.256, de 2016) (Vigência)
b) o recurso tenha sido selecionado como representativo da controvérsia; ou (Incluída pela Lei nº 13.256, de 2016) (Vigência)
c) o tribunal recorrido tenha refutado o juízo de retratação. (Incluída pela Lei nº 13.256, de 2016) (Vigência)
§ 1º Da decisão de inadmissibilidade proferida com fundamento no inciso V caberá agravo ao tribunal superior, nos termos do art. 1.042. (Incluído pela Lei nº 13.256, de 2016) (Vigência)
§ 2º Da decisão proferida com fundamento nos incisos I e III caberá agravo interno, nos termos do art. 1.021. (Incluído pela Lei nº 13.256, de 2016) (Vigência)
Por consequência, o art. 1.042 também foi modificado para prever o cabimento de agravo ao tribunal superior contra decisão do presidente ou do vice-presidente do tribunal recorrido que inadmitir recurso extraordinário ou recurso especial, salvo quando fundada na aplicação de entendimento firmado em regime de repercussão geral ou em julgamento de recursos repetitivos.
Das modificações efetuadas pela Lei n. 13.256/2016, aquelas incidentes sobre os textos dos arts. 1.030, § 2º, e 1.042 despontam como as mais perniciosas ao overruling pela via difusa. Ao prever o agravo interno como recurso cabível contra decisão proferida com fundamento nos incisos I e III e não dispor sobre um mecanismo para impugnar o julgamento desse agravo, o Código impede que a parte interessada leve às instâncias superiores seus argumentos em favor da superação do padrão decisório.
Caso se adote a orientação dominante, segundo a qual o julgador não pode decidir contrariamente às orientações firmadas sob a sistemática da repercussão geral ou dos recursos repetitivos ainda que esteja convencido da necessidade da superação, será inútil a propositura de ação cujos argumentos sejam contrários àquele padrão. Isso porque, além da impossibilidade de obter decisão favorável nas instâncias ordinárias, também estará inviabilizada a subida do recurso especial e extraordinário às cortes de superposição.
Ainda na vigência do CPC de 1973, no voto-vista proferido no julgamento da Questão de Ordem no Agravo de Instrumento n. 1.154.599/SP, o Ministro Teori Zavascki fez um alerta que denota preocupação semelhante à ora exposta:
[...] negando-se acesso ao STJ, em casos tais, o que se faz, na prática, é conferir aos precedentes julgados pelo regime do art. 543-C não apenas um efeito vinculante ultra partes, mas também um caráter de absoluta imutabilidade, eis que não subsistiria, no sistema processual, outro meio adequado para provocar eventual revisão do julgado. Essa deficiência não seria compatível com nosso sistema, nem com qualquer outro sistema de direito. Mesmo os sistemas que cultuam rigorosamente a força vinculante dos precedentes judiciais admitem iniciativas dos jurisdicionados tendentes a modificar a orientação anterior, especialmente em face de novos fundamentos jurídicos ou de novas circunstâncias de fato. É que a eficácia das decisões judiciais está necessariamente subordinada à cláusula rebus sic stantibus, comportando revisão sempre que houver modificação no estado de fato ou de direito. (QO no Ag 1154599/SP, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, Corte Especial, j. 16/02/2011; (grifei).
Como solução para a questão posta, pode-se cogitar do cabimento de novo recurso especial ou extraordinário contra o acórdão que inadmitiu o anterior, cujo fundamento será a necessidade de superação do precedente. O STJ, todavia, refuta essa possibilidade (AREsp 1.170.332/SP, rel. min. Luiz Felipe Salomão, 4ª. T., j.18/10/2017).
As alterações promovidas pela Lei 13.256/2016 no art. 1.030 e 1.042 do CPC inviabilizaram o acesso ao STJ e ao STF nas hipóteses em que a questão jurídica debatida tenha sido previamente analisada por aquelas cortes sob a sistemática dos recursos repetitivos ou repercussão geral.
Embora elogiável o intuito de conferir maior força aos precedentes formados naqueles julgados, não se deve admitir que as cortes de superposição sejam blindadas dos diálogos que poderiam levar à superação dos precedentes por elas consolidados (NUNES, 2018), sob pena de engessamento da jurisprudência.
Não se ignora a crise vivida pelo Poder Judiciário, em que a demanda de trabalho é muito superior à capacidade de dar vazão aos processos. Porém, também não se concebe a adoção de soluções pragmáticas que estrangulem as garantias constitucionais do acesso à justiça e do contraditório, que pressupõem a oportunidade de influenciar o convencimento do julgador e, com isso, contribuir de modo substancial para a construção da decisão judicial.
A linha de pensamento defendida neste trabalho, no sentido de admitir que juízes e tribunais divirjam dos padrões decisórios vinculantes desde que observado o ônus da fundamentação (art. 489, § 1º) em densidade compatível com a força da tese desafiada, neutralizaria os danos decorrentes da interpretação literal do art. 1.030, I. Tal solução parece melhor se adequar à Constituição Federal, o que motivou a autora do presente artigo a aprofundar o estudo a fim de apresentar, futuramente, maior amparo doutrinário e empírico às conclusões expostas, aprimorando-as.
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VASCONCELLOS, Fernando Andreoni. O conceito de derrotabilidade normativa. Dissertação de Mestrado apresentada na Universidade Federal do Paraná. Disponível em: <https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/18639/O%20conceito%20de%20derrotabilidade...;jsessionid=85F97FDFDD228EFD6E8CFAC9EE1BAED4?sequence=1>. Consulta em: 20/09/2018.
Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Ex-bolsista de graduação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Especialista em Direito Processual Civil pela Escola Superior de Magistratura do Estado do Ceará - ESMEC e pela Universidade Anhaguera (pós-graduação "lato sensu"). Analista Judiciária – Área Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, onde atualmente ocupa o cargo de provimento em comissão de Assessora I da Comissão de Regimento, Legislação e Jurisprudência.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SHEILA MONTEIRO UCHôA, . Impactos da Lei n. 13.256/2016 sobre o overruling difuso Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 nov 2019, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53798/impactos-da-lei-n-13-256-2016-sobre-o-overruling-difuso. Acesso em: 22 nov 2024.
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