JULIANO DE OLIVEIRA LEONEL[1]
(Orientador)
Resumo: Desde a inserção da qualificadora do feminicídio no Código Penal brasileiro, existem divergências na doutrina e jurisprudência em relação à sua natureza jurídica, interferindo diretamente na tipificação de casos e na adequada punição dos agressores. Diante disso, o objetivo geral do presente trabalho será analisar essa qualificadora quanto à sua natureza doutrinaria e jurisprudencial na tentativa de identificar a sua natureza jurídica. De início, a pesquisa irá discutir sobre a violência de gênero no Brasil, abordando seu conceito e discorrendo sobre dispositivos legais no combate a essa violência, que são: a Lei Maria da Penha e a Lei de Feminicídio. Em seguida, irá tratar sobre a classificação do feminicídio no campo jurídico, se é objetiva e/ou subjetiva, utilizando posicionamentos da doutrina e jurisprudência. Para tanto, a pesquisa é bibliográfica e documental, feita a partir da análise de documentos científicos, como livros, artigos científicos, periódicos, monografias, jurisprudências e web sites sobre a temática. Nesse sentido, conclui-se que ainda não existe uma conformidade a respeito da natureza jurídica da qualificadora do feminicídio, no entanto, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) vem entendendo que essa qualificadora apresenta natureza objetiva, não configurando bis in idem o uso em conjunto das diferentes qualificadoras.
Palavras-chave: Violência de gênero. Feminicídio. Natureza jurídica.
Sumário: 1 Introdução. 2 A violência de gênero no Brasil. 2.1 A Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). 2.2 A Lei nº 13.104/15 (Lei do Feminicídio). 3 A natureza jurídica do feminicídio: objetiva e/ou subjetiva?. 3.1 Posicionamentos na doutrina e jurisprudência. 3.1.1 O feminicídio de natureza objetiva. 3.1.2 O feminicídio de natureza subjetiva. 3.1.3 O feminicídio de natureza objetiva e subjetiva. 4 Conclusão. Referências.
1 INTRODUÇÃO
No Brasil, a violência contra a mulher por razões de gênero é um fenômeno que tem aumentado nos últimos anos. Isso pode ser observado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019), que mostra o crescimento do número de casos de feminicídio (o homicídio de mulher por razões de gênero), que passou de 1.075 para 1.206 casos no ano de 2018.
A qualificadora do feminicídio, que está presente no Código Penal brasileiro, art. 121, inciso VI, ocorre quando envolver: I - violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher (§ 2° e o § 2º-A). De acordo com Mello (2015), essa linguagem traz várias interpretações, o que vem permitindo o surgindo de divergências quanto à sua natureza jurídica: se objetiva e/ou subjetiva. Logo, o trabalho motivou-se por essa divergência existente e o crescente aumento de casos de feminicídios nos dias de hoje no Brasil, já que acredita-se que a falta de conhecimento (por ser um tema recente), interfere diretamente na tipificação de casos e na adequada punição aos agressores.
A pesquisa é bibliográfica e documental, a partir do uso de livros, artigos científicos, periódicos, monografias, jurisprudências e web sites. Essa temática deve ser cada vez mais discutida para permitir destacar a importância da mulher dentro da sociedade atual, de forma a garantir seus direitos e na elaboração e execução de políticas públicas de prevenção eficazes.
Desse modo, o presente trabalho traz como objetivo geral a análise dessa qualificadora quanto à sua natureza doutrinaria e jurisprudencial na tentativa de identificar a sua natureza jurídica, trazendo inicialmente a exposição sobre violência de gênero e alguns dispositivos legais no combate a esse tipo de violência, que são: a Lei Maria da Penha e a Lei de Feminicídio.
2 A VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL
O entendimento do tema demanda, de início, a exposição sobre violência de gênero e suas formas de combate no Brasil, que se dá por meio de dois eventos: a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) e a Lei nº 13.104/15 (Lei do Feminicídio), que são de grande importância para a proteção dos direitos das mulheres e a igualdade de gênero no Brasil.
Antes de partir para o conceito “violência de gênero”, é necessário discutir sobre a conceituação de “violência” e “gênero”. Esses termos são fenômenos complexos, utilizados em diversas áreas do conhecimento e, consequentemente, apresenta diferentes definições.
Minayo (2006) afirma que o termo violência resulta da palavra latina vis, significando “força” e se refere às noções de constrangimento e uso da superioridade física sobre o outro para adquirir autoridade, poder, domínio, posse, aniquilamento do outro ou de seus bens. De acordo com Paviani (2016), como consequência, a violência produz danos físicos, ao produzir ferimentos, tortura e morte ou danos psíquicos, como a humilhação, ameaças e ofensas.
De acordo com o documento ‘Diretrizes Nacionais Feminicídio – investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero a morte violenta de mulheres’, a palavra gênero refere-se às relações existentes entre homens e mulheres e a forma como são feitas na sociedade, rejeitando a explicação biológica. Percebe-se relações desiguais, nas quais as atividades e atributos dos homens são considerados superiores aos das mulheres. Essas relações de poder existentes na sociedade variam de geração para geração em função do tempo e espaço em que se manifestam (BRASIL, 2016).
Nesse sentido, a violência de gênero de acordo com Streit (2016, p. 14), é “uma ação que resulta ou pode resultar em agressão (física, psicológica, sexual) em sua esmagadora maioria, à mulher”, a partir da construção sociocultural de que a mulher deve ficar na posição de inferioridade em relação ao homem. É certo que a cultura imposta na sociedade que a violência baseada no gênero aconteça nas relações entre homem-mulher. Porém essa violência não é sempre praticada pelo homem contra a mulher, mas pode ser de relações entre homem-homem ou ainda de mulher-mulher (SAFFIOTI, 2011, p.63).
Assim, sobre a temática Bianchini (2015, online) afirma que a violência de gênero possui as seguintes características:
1) Ela decorre de uma relação de poder de dominação do homem e de submissão da mulher; 2) Esta relação de poder advém dos papéis impostos às mulheres e aos homens, reforçados pela ideologia patriarcal, os quais induzem relações violentas entre os sexos, já que calcados em uma hierarquia de poder; 3) A violência perpassa a relação pessoal entre homem e mulher, podendo ser encontrada também nas instituições, nas estruturas, nas práticas cotidianas, nos rituais, ou seja, em tudo que constitui as relações sociais; 4) A relação afetivo-conjugal, a proximidade entre vítima e agressor (relação doméstica, familiar ou íntima de afeto) e a habitualidade das situações de violência tornam as mulheres ainda mais vulneráveis dentro do sistema de desigualdades de gênero, quando comparado a outros sistemas de desigualdade (classe, geração, etnia).
Percebe-se que essa construção sociocultural androcêntricas que está presente nas organizações das sociedades atuais, influenciam inclusive no âmbito jurídico, ocasionando, como afirma Pimentel (2017, p.17), “graves consequências para o reconhecimento e a realização dos direitos humanos de quem não se enquadre nas suas crenças e padrões excludentes”.
Apesar dessa problemática, é importante comentar que tem ocorrido no Brasil dispositivos legais que prezam pela proteção da mulher quanto ao gênero, que serão abordados em seguida.
2.1 A LEI Nº 11.340/2006 (LEI MARIA DA PENHA)
A farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes denunciou em 1998 o Brasil para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) alegando intolerância ao seu caso. Essa denúncia trouxe a adoção pelo Estado brasileiro de medidas contra violência doméstica e familiar no âmbito interno, resultando na Lei nº 11.340/06, que ficou conhecida como “Maria da Penha” em homenagem a essa senhora, vítima de violência doméstica causada por seu marido (FONSECA, 2015).
Ávila (2007, p. 20), sobre a importância da Lei Maria da Penha expôs que ela “reflete a necessidade premente de repensar as relações de gênero como uma relação construída sobre uma cultura secular de poder simbólico de dominação machista, cuja perversa marca tem sido a violência doméstica”.
Diante disso, no seu artigo 1º, já começa trazendo inovações ao combate à violência contra a mulher, já que “cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar”. Percebe-se que a lei traz todo um suporte essencial quanto a esse tipo de violência, que vai desde a prevenção até a punição do agressor.
Além disso, cabe destacar a importância do papel do Estado brasileiro para a efetivação da lei, que obrigatoriamente, como afirma Oliveira, Santos e Viana (2017, on-line), “aumentou o custo da pena para o agressor, possibilitou melhores condições para que a vítima pudesse denunciar e aperfeiçoou os mecanismos jurisdicionais promovendo uma atuação mais efetiva da justiça criminal nos casos que fazem referência à violência doméstica”.
De acordo com Souza et al (2017, on-line), sobre a temática:
A lei aprovada pelo Senado é considerada uma das mais avançadas em toda a região ibero-americana. Além de contemplar a criação de um sistema integral de prevenção, proteção e assistência, estabelece competências e obrigações do Estado em âmbitos federal, estadual e municipal.
Ponto bastante importante da Lei é que abrange o conceito da expressão “violência de gênero” em seus vários aspectos: físico, psicológico, patrimonial, econômico, trabalhista, institucional, sexual e de matrimônio. Assim, como diz a Lei, o Estado deverá destinar recursos financeiros para o trabalho de violência contra as mulheres.
Assim, é indiscutível que a Lei Maria da Penha trouxe avanços ao combate à violência contra a mulher por razões de gênero, não sendo mais os casos tratados apenas como crimes de menor potencial ofensivo. No entanto, sua efetividade ainda e um grande desafio, pois o número de casos de violência doméstica e familiar ainda é elevado no Brasil.
2.2 A LEI Nº 13.104/15 (LEI DO FEMINICÍDIO)
A alteração do Código Penal para inserir o feminicídio como qualificadora do crime de homicídio se deu pela Lei nº 13.104, em 09 de março de 2015. A referida norma inseriu no artigo 121 do Código Penal, o inciso VI no § 2° e o § 2º-A, bem como o § 7º (aumento de pena), como pode ser observado abaixo:
Homicídio qualificado
§ 2° Se o homicídio é cometido:
[...]
Feminicídio
VI contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:
Pena reclusão, de doze a trinta anos.
nm
I violência doméstica e familiar;
II menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Aumento de pena
[...]
§ 7º A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:
I – durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;
II – contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;
III – na presença de descendente ou de ascendente da vítima;
IV - em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 22 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006.
Entende-se que o feminicídio consiste no homicídio contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, quando é cometido em situação de violência doméstica e familiar ou quando determinado por menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Nucci (2017) aduz que o feminicídio é uma continuidade da tutela contida na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que tem o objetivo de proteger a condição do sexo feminino, em particular nos relacionamentos domésticos e familiares. A lei do feminicídio considera homicídio qualificado e hediondo a conduta de matar a mulher, valendo-se de sua condição de sexo feminino.
Além disso, por se tratar de um crime hediondo, teve aumento de pena, recebendo um tratamento mais rígido pela Justiça, variando de doze a trinta anos de reclusão em vez de seis a vinte anos para quem comete um homicídio e a ocorrência de agravantes (gravidez, menor de idade, deficientes, entre outros).
Vale ressaltar que, ainda pela existência da pouca compreensão do feminicídio pela doutrina brasileira, a tipificação trouxe uma melhor visibilidade de modo a permitir conhecer melhor as características e especificidades desse crime. Quanto à temática, a Agência Patrícia Galvão (2017, p.13) afirma:
Para além do agravo da pena, o aspecto mais importante da tipificação, segundo especialistas, é chamar atenção para o fenômeno e promover uma compreensão mais acurada sobre sua dimensão e características nas diferentes realidades vividas pelas mulheres no Brasil, permitindo assim o aprimoramento das políticas públicas para coibi-lo.
Diante disso, assim com a Lei Maria da Penha, a Lei do Feminicídio é de suma importância no combate de violência contra a mulher no Brasil, porém um dos desafios dessa qualificadora está em relação à compreensão de sua natureza dentro do campo jurídico, por trazer equívocos na hora da tipificação e julgamento dos crimes contra a mulher.
3 A NATUREZA JURÍDICA DO FEMINICÍDIO: OBJETIVA E/OU SUBJETIVA?
Desde a inclusão da qualificadora do feminicídio no Código Penal, é notável a existência de posicionamentos diferenciados quanto à sua natureza jurídica na doutrina e jurisprudência, já que pode ser: exclusivamente objetiva, exclusivamente subjetiva ou ainda objetiva-subjetiva (será objetiva quando envolver violência doméstica e familiar e subjetiva quando ocorrer menosprezo ou discriminação à condição de mulher).
3.1 POSICIONAMENTOS NA DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA
3.1.1 O feminicídio de natureza subjetiva
As qualificadoras subjetivas são aquelas vinculadas à motivação do sujeito para a prática do crime e não ao fato por ele praticado, podendo ser observado nos incisos I (mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe), II (por motivo fútil) e V (para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime) (BIANCHINI, 2016).
A qualificadora do feminicídio irá ocorrer, nesse caso, quando existir a motivação para o crime (por razões da condição do sexo feminino) envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo e discriminação pela vítima ser mulher. Alice Biachini (2016, p. 216), sobre a temática afirma:
A qualificadora do feminicídio é nitidamente subjetiva. Uma hipótese: mulher usa minissaia. Por esse motivo fático o seu marido ou namorado a mata. E mata-a por uma motivação aberrante, a de presumir que a mulher deve se submeter ao seu gosto ou apreciação moral, como se dela ele tivesse posse, reificando-a, anulando-lhe opções estéticas ou morais, supondo que à mulher não é possível contrariar as vontades do homem. Em motivações equivalentes a essa há uma ofensa à condição de sexo feminino. O sujeito mata em razão da condição do sexo feminino, ou do feminino exercendo, a seu gosto, um modo de ser feminino. Em razão disso, ou seja, em decorrência unicamente disso.
Rogério Sanches Cunha (2016, p. 349-350), quanto à classificação dessa qualificadora, afirma:
A qualificadora do feminicídio é subjetiva, pressupondo motivação especial: o homicídio deve ser cometido contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. Mesmo no caso do inciso I do § 2º-A, o fato de a conceituação de violência doméstica e familiar ser um dado objetivo, extraído da lei, não afasta a subjetividade. Isso porque o § 2º-A é apenas explicativo; a qualificadora está verdadeiramente no inciso VI, que, ao estabelecer que o homicídio se qualifica quando cometido por razões da condição do sexo feminino, deixa evidente que isso ocorre pela motivação, não pelos meios de execução.
Ainda para colaborar com a argumentação acima, Márcio André Lopes Cavalcante (2015, on-line), conclui dando mais hipóteses dessa qualificadora como sendo de natureza subjetiva:
[...]no caso do feminicídio baseado no inciso I do § 2º-A do art. 121, será indispensável que o crime envolva motivação baseada no gênero (“razões de condição de sexo feminino”). Ex.1: marido que mata a mulher porque acha que ela não tem “direito” de se separar dele; Ex.2: companheiro que mata sua companheira porque quando ele chegou em casa o jantar não estava pronto.
Por outro lado, ainda que a violência aconteça no ambiente doméstico ou familiar e mesmo que tenha a mulher como vítima, não haverá feminicídio se não existir, no caso concreto, uma motivação baseada no gênero (“razões de condição de sexo feminino”). Ex: duas irmãs, que vivem na mesma casa, disputam a herança do pai falecido; determinado dia, uma delas invade o quarto da outra e a mata para ficar com a totalidade dos bens para si; esse crime foi praticado com violência doméstica, já que envolveu duas pessoas que tinha relação íntima de afeto, mas não será feminicídio porque não foi um homicídio baseado no gênero (não houve violência de gênero, menosprezo à condição de mulher), tendo a motivação do delito sido meramente patrimonial.
Diante dos argumentos, observa-se que a natureza subjetiva da qualificadora do feminicídio se dá pela motivação do crime, não bastando que esse crime seja praticado contra uma mulher, mas pelo fato da vítima ser mulher, ou seja, em razão da condição de sexo feminino.
Dentre as consequências, sendo o feminicídio de natureza subjetiva, está nos casos em que houver concurso de pessoas, pois como afirma o art. 30, do Código Penal “não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do tipo”, o feminicídio torna-se prejudicado aos demais coautores ou partícipe, exceto se esses tiverem a mesma motivação para cometer o crime. Não permite também a existência de “feminicídio qualificado privilegiado”. Nesse caso, a doutrina e a jurisprudência estabeleceram a existência apenas na qualificadora de natureza objetiva, já que todas as hipóteses contidas no art. 121, § 1º, do CP, que prevê causas de diminuição de pena são subjetivas, o que tornaria incompatível com as qualificadoras subjetivas (BARROS, 2019).
Além disso, ainda conforme Barros (2019), a qualificadora do feminicídio sendo subjetiva, considera bis in idem (repetição de sanção sobre o mesmo ato) a cumulação dela com as qualificadoras de motivo torpe e fútil, pois o homicídio de uma mulher por razões de discriminação ao gênero já é um delito considerado torpe/fútil.
É possível observar na jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em um julgamento do ano de 2017, a adoção do feminicídio como qualificadora subjetiva, considerando que configura bis in idem a sua cumulação com a qualificadora do motivo torpe. Veja-se.
EMENTA: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - DECISÃO DE PRONÚNCIA - HOMICÍDIO QUALIFICADO - QUALIFICADORAS DO MOTIVO TORPE E FEMINICÍDIO - BIS IN IDEM - OCORRÊNCIA - CIRCUNSTÂNCIAS DE NATUREZA SUBJETIVA - APLICAÇÃO SIMULTÂNEA - IMPOSSIBILIDADE - DECOTE DA QUALIFICADORA DE MEIO QUE IMPOSSIBILITOU A DEFESA DA VÍTIMA - NECESSIDADE - RECURSO PROVIDO.
- Configura bis in idem a imputação simultânea das qualificadoras do "motivo torpe" e do "feminicídio", previstas respectivamente nos incisos I e VI do §2º, do art. 121 do CP, tendo em vista que ambas as circunstâncias dizem respeito à motivação do crime, possuindo natureza subjetiva, já que refletem igualmente o elemento interno que conduziu o autor à prática do delito.
- O simples fato de a vítima encontrar-se desarmada não configura a qualificadora do recurso que dificultou a defesa da vítima.
(TJMG - Rec em Sentido Estrito 1.0024.16.060767-7/001, Relator(a): Des.(a) Jaubert Carneiro Jaques , 6ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 14/03/2017, publicação da súmula em 29/03/2017).
3.1.2 O feminicídio de natureza objetiva
As qualificadoras de natureza objetiva ou real são àquelas relacionadas aos meios e formas de execução do crime. Elas estão presentes nos incisos III (com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum) e IV (à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido) do artigo 21 do Código Penal (BIACHINI, 2016).
Amom Albernaz Pires (2015), quanto à natureza dessa qualificadora expõe:
A nova qualificadora do feminicídio tem natureza objetiva, pois descreve um tipo de violência específico contra a mulher (em razão da condição de sexo feminino) e demandará dos jurados mera avaliação objetiva da presença de uma das hipóteses legais de violência doméstica e familiar (art. 121, § 2º-A, I, do CP, c/c art. 5º, I, II e III, da Lei 11.340/2006) ou ainda a presença de menosprezo ou discriminação à condição de mulher (art. 121, § 2º-A, II, do CP).
Nesse sentido, note-se que a hipótese do inciso II do § 2º-A ficou reservada aos casos em que autor e vítima são pessoas desconhecidas e sem qualquer relação interpessoal, diferentemente da hipótese do inciso I do § 2º-A, que cuida dos casos em que autor e vítima têm ou mantiveram alguma relação de proximidade, conforme hipóteses do art. 5º, I, II e III, da Lei 11.340/2006 [...]
Guilherme de Souza Nucci (2017, p. 455) aduz que “diversas normas foram editadas ao longo do tempo, com o exclusivo objetivo de conferir maior proteção à mulher, em face da nítida opressão enfrentada quando em convívio com alguém do sexo masculino, como regra”. Confira-se.
Trata-se de uma qualificadora objetiva, pois se liga ao gênero da vítima: ser mulher. Não aqui esquecemos à ideia de ser uma qualificadora subjetiva (como o motivo torpe ou fútil) somente porque se inseriu a expressão “por razões de condição de sexo feminino”. Não é essa a motivação do homicídio. O agente não mata a mulher porque ela é mulher, mas o faz por ódio, raiva, ciúme, disputa familiar, prazer, sadismo, enfim, motivos variados, que podem ser torpes ou fúteis; podem, inclusive, ser moralmente relevantes. Sendo objetiva, pode conviver com outras circunstâncias de cunho puramente subjetivo.
Diante disso, percebe-se que ao contrário do posicionamento do feminicídio com natureza subjetiva, é permitida a comunicação aos demais coautores ou partícipes, em caso de concurso de pessoas (desde que os envolvidos tenham conhecimento), a existência do “feminicídio qualificado privilegiado” e o uso em conjunto da qualificadora do feminicídio com as qualificadoras subjetivas (motivo torpe ou fútil), não configurando bis in idem (BARROS, 2019).
Em relação às jurisprudências, cabe destacar o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), que é referência quanto ao tema, já que foi o pioneiro a adotar o feminicídio como qualificadora objetiva. Confira-se.
PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. RÉU PRONUNCIADO POR HOMICÍDIO COM MOTIVO TORPE. MORTE DE MULHER PELO MARIDO EM CONTEXTO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. PRETENSÃO ACUSATÓRIA DE INCLUSÃO DA QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO. PROCEDÊNCIA. SENTENÇA REFORMADA.
1 Réu pronunciado por infringir o artigo 121, § 2º, inciso I, do Código Penal, depois de matar a companheira a facadas motivado pelo sentimento egoístico de posse.
2 Os protagonistas da tragédia familiar conviveram sob o mesmo teto, em união estável, mas o varão nutria sentimento egoístico de posse e, impelido por essa torpe motivação, não queria que ela trabalhasse num local frequentado por homens. A inclusão da qualificadora agora prevista no artigo 121, § 2º, inciso VI, do Código Penal, não poderá servir apenas como substitutivo das qualificadoras de motivo torpe ou fútil, que são de natureza subjetiva, sob pena de menosprezar o esforço do legislador. A Lei 13.104/2015 veio a lume na esteira da doutrina inspiradora da Lei Maria da Penha, buscando conferir maior proteção à mulher brasileira, vítima de condições culturais atávicas que lhe impuseram a subserviência ao homem. Resgatar a dignidade perdida ao longo da história da dominação masculina foi a ratio essendi da nova lei, e o seu sentido teleológico estaria perdido se fosse simplesmente substituída à torpeza pelo feminicídio. Ambas as qualificadoras podem coexistir perfeitamente, porque é diversa a natureza de cada uma: a torpeza continua ligada umbilicalmente à motivação da ação homicida, e o feminicídio ocorrerá toda vez que, objetivamente, haja uma agressão à mulher proveniente de convivência doméstica familiar.
3 Recurso Provido.
(Acórdão n.904781, 20150310069727RSE, Relator: GEORGE LOPES LEITE, 1ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 29/10/2015, Publicado no DJE: 11/11/2015. Pág.: 105).
O Tribunal de Justiça do Piauí (TJPI) apresenta também posicionamento a favor da natureza objetiva do feminicídio. Confere-se um julgamento que ocorreu em 18 de julho de 2018:
PENAL E PROCESSUAL PENAL – APELAÇÃO CRIMINAL – FEMINICÍDIO E ABORTO (ART. 121, § 2º, VI C/C O ART. 125, AMBOS DO CÓDIGO PENAL) – AFASTAMENTO DA QUALIFICADORA – RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO – DECISÃO UNÂNIME.
1 – Nos termos do art. 121, § 2º, VI, do CP, haverá o crime de feminicídio quando o homicídio for praticado contra a mulher em situação de violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher;
2 – A incidência da qualificadora do feminicídio nos casos em que o delito é praticado contra mulher em situação de violência doméstica e familiar possui natureza de ordem objetiva, dispensando então a análise do animus do agente, como na espécie. Precedentes do STJ;
3 – Recurso conhecido e improvido, à unanimidade.
(TJPI | Apelação Criminal Nº 2017.0001.004818-5 | Relator: Des. Pedro de Alcântara Macêdo | 1ª Câmara Especializada Criminal | Data de Julgamento: 18/07/2018).
A partir dessas decisões, percebe-se a possível coexistência entre as qualificadoras de motivo torpe ou fútil (subjetivas) e a qualificadora do feminicídio (objetiva), acarretando uma pena maior, tornando mais rígida para os agentes que praticam violência doméstica e familiar contra a mulher.
Em recente tese sobre violência doméstica contra mulher, divulgada na a edição 625 do Informativo de Jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que não caracteriza bis in idem (repetição de sanção sobre o mesmo fato) o reconhecimento das qualificadoras de motivo torpe e de feminicídio em casos de crime de homicídio praticado contra mulher em situação de violência doméstica e familiar:
Considerando as circunstâncias subjetivas e objetivas, temos a possibilidade de coexistência entre as qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio. Isso porque a natureza do motivo torpe é subjetiva, porquanto de caráter pessoal, enquanto o feminicídio possui natureza objetiva, pois incide nos crimes praticados contra a mulher por razão do seu gênero feminino e/ou sempre que o crime estiver atrelado à violência doméstica e familiar propriamente dita, assim o animus do agente não é objeto de análise (Ministro Felix Fischer, Resp 1.707.113-MG, publicado em 07/12/2017).
Assim entende também o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), em relação a compatibilidade entre as qualificadoras de feminicídio e motivo torpe:
Não configura bis in idem a incidência conjunta das qualificadoras do feminicídio e do motivo torpe nas hipóteses de delito praticado contra a mulher em situação de violência doméstica e familiar, pois aquela tem natureza objetiva (dispensa aferição acerca do animus do agente), enquanto esta última possui caráter subjetivo.
3.1.3 O feminicídio de natureza objetiva e subjetiva
Existe ainda doutrinadores que defendem a natureza jurídica do feminicídio como objetiva e subjetiva, ou seja, quando envolver violência doméstica e familiar (inciso I, § 2ª-A, art. 121 do CP), será considerada objetiva e quando envolver menosprezo ou discriminação à condição de mulher (inciso II, § 2ª-A, art. 121 do CP) será subjetiva.
Everton Zanella, Márcio Friggi, Marcio Escudeiro e Virgílio Amaral (2015, p. 5) defendem esse posicionamento. Confere-se.
A primeira ilação obtida da análise do conceito jurídico de violência doméstica e familiar é que, nessa vertente, a qualificadora tem natureza objetiva. Com efeito, embora a disposição remeta à noção de motivação (“em razão da condição de sexo feminino”), as definições incorporadas pela Lei Maria da Penha sinalizam contexto de violência de gênero, ou seja, quadro fático-objetivo não atrelado, aprioristicamente, aos motivos determinantes da execução do ilícito.
Observa-se, nesse caso, que o conceito de violência doméstica e familiar está atrelado aos conceitos presentes no artigo 5º da Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha), que trata sobre as disposições gerais da configuração de violência doméstica e familiar contra a mulher como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto”, o que percebe a natureza objetiva dessa qualificadora.
No entanto, quando envolver menosprezo ou discriminação à condição de mulher, será subjetiva, já que “não conta com referência normativa no nosso ordenamento jurídico. Nessa linha, caberá ao aplicador delimitar a extensão do conteúdo da expressão menosprezo ou discriminação à condição de mulher” (ZANELLA, et al, 2015, p. 6).
O presente trabalho apresentou a análise da qualificadora do feminicídio, a partir de posicionamentos quanto à sua natureza jurídica, trazendo inicialmente a exposição sobre violência de gênero e alguns dispositivos legais no combate contra a violência de gênero, ou seja, a Lei Maria da Penha e a Lei de Feminicídio.
Percebeu-se que na sociedade atual, a eficácia ao combate à violência contra a mulher, mais precisamente a violência de gênero é um dos maiores desafios existentes, devido ainda existir uma sociedade patriarcal e machista. Porém é válido destacar que instrumentos como a Lei Maria da Penha e a Lei de Feminicídio são grandes avanços a esse tipo de violência.
Em relação à análise da qualificadora do feminicídio, foram explanadas três posições: objetiva, exclusivamente subjetiva ou ainda objetiva-subjetiva (será objetiva quando envolver violência doméstica e familiar e subjetiva quando ocorrer menosprezo ou discriminação à condição de mulher).
Assim, diante de tudo o que foi analisado, conclui-se que é inexistente a natureza jurídica da qualificadora do feminicídio, por não ter ainda um consenso entre doutrina e jurisprudência. No entanto, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) vem entendendo que essa qualificadora apresenta natureza objetiva, ou seja, basta apenas que o crime seja praticado contra a mulher de acordo com o que está previsto no artigo 5º da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), sendo que não configura bis in idem o uso em conjunto da qualificadora objetiva (no caso, o feminicídio) e das qualificadoras subjetivas (de motivo torpe ou fútil).
REFERÊNCIAS
AGÊNCIA PATRÍCIA GALVÃO. Feminicídio. Disponível em: http://agenciapatriciagalvao.org.br/wpcontent/uploads/2017/03/LivroFeminicidio_InvisibilidadeMata.pdf. Acesso em: 04 dez. 2018.
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[1] Orientador, Professor de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA, Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília. E-mail: [email protected].
Acadêmico de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEAL, Glaysson Braytnner Gomes. Feminicídio: uma análise de sua natureza jurídica na doutrina e jurisprudência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2019, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53809/feminicdio-uma-anlise-de-sua-natureza-jurdica-na-doutrina-e-jurisprudncia. Acesso em: 22 nov 2024.
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