RESUMO: O presente artigo trata de um dos requisitos da medida cautelar de prisão preventiva, a garantia da ordem pública. O citado requisito tem sido objeto de diversas discussões acerca de sua constitucionalidade, uma vez que parte da doutrina o entende como sendo extremamente abstrato para fundamentar uma medida de exceção como a segregação preventiva da liberdade. Por outro lado, respeitável parcela da doutrina discorda desse posicionamento, entendendo que o requisito se encontra perfeitamente amparado pelas normas constitucionais. Dessa forma, a presente pesquisa abordará o entendimento de ambos os lados, passando pelo conceito legal do requisito e pelo entendimento dos tribunais superiores acerca do tema.
Palavras-chave: Garantia da ordem pública. Prisão preventiva. Medida cautelar. Direito Penal. Direito Constitucional.
Sumário: 1 Introdução. 2 Conceito. 3 Constitucionalidade do pressuposto. 4 Inconstitucionalidade do pressuposto. 5 Conclusão. 6 Referências.
1 INTRODUÇÃO
A expressão “garantia da ordem pública”, um dos pressupostos legais exigidos para decretação da medida cautelar pessoal de prisão preventiva, não é pacífica na jurisprudência e na doutrina, sendo possível visualizar diversos entendimentos defendendo ou atacando a sua constitucionalidade.
Em busca da paz do corpo social a Lei n. 12.403/11 quis inibir o alarmante índice de reincidência dos réus durante a persecução criminal, bem como, implicitamente, resguardar a própria credibilidade da sociedade na Justiça brasileira e fazendo valer a autoridade e a validade da ordem jurídica.
O escopo deste artigo será demonstrar os argumentos a favor e contra esse requisito específico da cautelar pessoal, trazendo de forma sintática e objetiva o porquê de tal conflito jurisprudencial e doutrinário.
2 CONCEITO
No art. 312 do Código de Processo Penal há previsto o requisito da “garantia da ordem pública” como um dos pressupostos para decretação da ordem de prisão preventiva. Apesar de tratar-se de um conceito jurídico indeterminado, basicamente entende-se como a existência de indícios de que o réu voltará a delinquir caso permaneça livre, ou seja, a liberdade do acusado passa a ser vista como um risco à sociedade.
Busca-se, desse modo, que aquele agente que se encontra mergulhado na vida criminosa tenha sua restrição de liberdade justificada por um interesse público maior.
O professor Fernando Capez, quanto ao pressuposto em tela, entende que:
A prisão cautelar é decretada com a finalidade de impedir que o agente, solto, continue a delinquir, não se podendo aguardar o término do processo para, somente então, retirá-lo do convívio social. Nesse caso, a natural demora da persecução penal põe em risco a sociedade. É o caso típico do periculum in mora (CAPEZ, p. 330. 2012).
Ainda nesse sentido, Antônio Magalhães Gomes Filho leciona:
À ordem pública relacionam-se todas aquelas finalidades do encarceramento provisório que não se enquadram nas exigências de caráter cautelar propriamente ditas, mas constituem formas de privação da liberdade adotadas como medidas de defesa social; fala-se, então, em ‘exemplaridade’, no sentido de imediata reação ao delito, que teria como efeito satisfazer o sentimento de justiça da sociedade; ou, ainda, a prevenção especial, assim entendida a necessidade de se evitar novos crimes (GOMES FILHO, 2009).
Não se nega que a gravidade em abstrato extraída do delito possa provocar grande comoção e repercussão ao meio social e, por consequência, dar uma sensação de impunidade e descrédito em razão da demora na prestação jurisdicional, entretanto prevalece na jurisprudência que essa gravidade em abstrato do delito não é causa suficiente para decretação da segregação cautelar, conforme explana a Corte Cidadã.
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA COM BASE NA GRAVIDADE ABSTRATA DO DELITO. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTOS CONCRETOS A JUSTIFICAR A MEDIDA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. RECURSO PROVIDO. - Esta Corte Superior tem entendimento pacífico de que a custódia cautelar possui natureza excepcional, somente sendo possível sua imposição ou manutenção quando demonstrado, em decisão devidamente motivada, o preenchimento dos pressupostos previstos no art. 312 do Código de Processo Penal - CPP. - Na hipótese dos autos verifico não estarem presentes fundamentos idôneos que justifiquem a prisão processual do paciente, tendo em vista que o Magistrado de primeiro grau justificou a segregação cautelar na conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal, tendo utilizado fundamentos genéricos, sem nenhum embasamento nos fatos concretos. - Restando deficiente a fundamentação do Magistrado de piso quanto aos pressupostos que autorizam a segregação antes do trânsito em julgado, deve ser revogada, in casu, a custódia cautelar do recorrente. Recurso ordinário em Habeas Corpus provido para revogar a prisão preventiva em discussão, mediante a aplicação de medida cautelar diversa, nos termos do art. 319 do CPP, a ser estabelecida pelo Magistrado singular, ressalvada, ainda, a possibilidade de decretação de nova prisão, se demonstrada sua necessidade (STJ - RHC: 57229 SP 2015/0050155-7, Relator: Ministro ERICSON MARANHO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), Data de Julgamento: 07/05/2015, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/06/2015)
Em que pese o posicionamento acima, vale destacar que se afigura legítima a medida cautelar pessoal de prisão preventiva sob o pressuposto da ordem pública quando pela gravidade dos fatos investigados, a personalidade do réu fica evidenciada (STF, HC 94.947/SP, 1ª T., Rel. Menezes Direito, j. 9.12.2008, Dje, 6.3.2009).
Por sua vez, quanto ao clamor público, há decisões no sentido de que ele sozinho não seria justificável à ordem de prisão preventiva (RHC 55070/MS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 10/03/2015, DJe 25/03/2015).
3 CONSTITUCIONALIDADE DO PRESSUPOSTO
Para os respeitáveis professores que entendem ser constitucional o pressuposto da “garantia da ordem pública” a prisão preventiva seria decretada para evitar a reiteração delitiva quando constatada a periculosidade do réu por meio de sua vida pregressa.
Edílson Mougenot Bonfim defende que:
O significado da expressão “garantia da ordem pública” não é pacífico na doutrina e na jurisprudência. Buscando a manutenção da paz no corpo social, a lei visa impedir que o réu volte a delinquir durante a investigação ou instrução criminal (periculosidade). Pretende, também, resguardar a própria credibilidade da justiça, reafirmando a validade e autoridade da ordem jurídica, posta em xeque pela conduta criminosa e por sua repercussão na sociedade (BONFIM, p. 476. 2011).
Por sua vez, nos tribunais de Justiça:
HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO. ROUBO MAJORADO POR USO DE ARMA E PELO CONCURSO DE AGENTES. PRISÃO EM FLAGRANTE QUE É MANTIDA PARA GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E POR CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL. CONSTITUCIONALIDADE DA PRISÃO PREVENTIVA PARA GARANTIR A ORDEM PÚBLICA. FUNDAMENTAÇÃO QUE SE REVELA SUFICIENTE NO CASO CONCRETO. NECESSIDADE DA PRISÃO BEM EVIDENCIADA. EXCESSO DE PRAZO QUE NÃO SE RECONHECE COMO DESARRAZOADO. INSTRUÇÃO QUE SEGUE COM NORMALIDADE. Ordem denegada. (Habeas Corpus Nº 70029303302, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Batista Marques Tovo, Julgado em 09/04/2009. TJ-RS - HC: 70029303302 RS, Relator: João Batista Marques Tovo, Data de Julgamento: 09/04/2009, Sétima Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 29/04/2009.
Dessa forma, caracterizada a probabilidade concreta de reiteração delitiva, o direito à liberdade do réu poderia ser temporariamente suprimido em benefício da coletividade fundamentando-se na função objetiva dos direitos fundamentais através de uma intervenção por parte do Estado em benefício de toda a população. Fernando Capez reforça esse entendimento - “garantir a ordem pública significa por si só justificar a prisão preventiva” (CAPEZ, p. 330. 2012).
A possibilidade de prisão preventiva fundada na ordem pública também poderia se dar nas hipóteses de cometimento de crimes graves; na de comoção social do fato delitivo; bem como para evitar o descrédito da justiça brasileira, pois, engessando a segregação cautelar em uma única circunstância de aplicação poderia cria um o risco de sentimento de impunidade caso as hipóteses autorizadoras fossem engessadas em uma única circunstância de aplicação.
4 INCONSTITUCIONALIDADE DO PRESSUPOSTO
Não obstante, outra parte da doutrina entende que o pressuposto da “garantia da ordem pública” é um requisito de caráter puramente subjetivo, pois, como elemento normativo que o é, exige uma valoração axiológica que envolve um juízo de valor por parte da autoridade judicial responsável pela decretação da medida cautelar preventiva.
Dessa forma, a prisão preventiva possui natureza de medida cautelar, ou seja, tem por objetivo resguardar o bom andamento da investigação ou do processo criminal. Entretanto, quando o magistrado fundamenta uma prisão preventiva sob o pressuposto da “garantia da ordem pública”, ele deixa de observar o objetivo cautelar que a medida exige e passa a ceder a elementos externos à persecução penal, como, por exemplo, o clamor público ou a gravidade em abstrato do crime.
Neste sentido, Aury Lopes Jr:
A característica da instrumentalidade é ínsita à prisão cautelar na medida em que, para não se confundir com pena, só se justifica em função do bom andamento do processo penal e do resguardo da eficácia de eventual decreto condenatório (LOPES JÚNIOR, 2013).
Essa discricionariedade a favor do magistrado viola de forma flagrante o princípio da estrita legalidade, pois o rol permissivo é extremamente amplo e pode ser objeto das mais diversas interpretações, resultando na relativização de um importante princípio instrumento de limitação do poder punitivo estatal.
Delmanto Júnior, quanto ao uso desse pressuposto autorizador, entende da seguinte forma:
Não há como negar que a decretação de prisão preventiva com o fundamento de que o acusado poderá cometer novos delitos baseia-se, sobretudo, em dupla presunção de culpabilidade: a primeira, de que o imputado realmente cometeu um delito; a segunda, de que, em liberdade e sujeito aos mesmos estímulos, praticará outro crime ou, ainda, envidará esforços para consumar o delito tentado (DELMANTO, p. 119, 2001).
Em razão da dificuldade em se definir concretamente a garantia da ordem pública, o instituto se torna inconstitucional por afrontar os princípios da legalidade, da dignidade da pessoa humana, bem como o princípio da presunção de inocência, motivo pelo qual não poderia ser utilizado como base para decretação da prisão preventiva.
Outro argumento válido é quanto à finalidade da pena. É pacífico que, além da retribuição pelo mal causado, uma das finalidades da pena é a de evitar que o condenado volte a delinquir, ou seja, a própria segregação do preso já carrega esse fundamento consigo. Dessa forma, utilizando esse argumento como autorizador da medida cautelar, o magistrado estaria realizando uma verdadeira antecipação da pena do réu.
A “garantia da ordem pública”, dessa forma, passa a ter duvidosa constitucionalidade a partir do momento em que possui a mesma finalidade que a pena aplicada em sentença condenatória, motivo pelo qual não poderia ser considerada uma medida cautelar, mas sim uma verdadeira antecipação da execução da pena de prisão, violando, de forma direta, o princípio da presunção de inocência.
Nesse sentido, Paulo Queiroz:
Naturalmente que os fins da sanção penal (penas e medidas de segurança) hão de pressupor uma sentença penal condenatória, motivo pelo qual não é licito pretender realizá-los por meio de prisões provisórias, especialmente a prisão preventiva, porque do contrário já não haverá distinção entre processo de conhecimento e processo de execução. É que prevenir novos crimes, seja em caráter geral, seja em caráter especial (evitar a reincidência), não constitui fim da prisão provisória (cautelar), mas fim da pena mesma, a exigir, ao menos no Estado Democrático de Direito, trânsito em julgado de sentença penal condenatória (QUEIROZ, P. 84. 2008).
Assim posto, para essa parcela da doutrina, a prisão preventiva só teria respaldo constitucional quando fundamentada na aplicação da lei penal e na conveniência da instrução criminal, razão pela qual qualquer outro motivo autorizador, em especial a garantia da ordem pública, seria de flagrante inconstitucionalidade por violar princípios basilares de um estado democrático de direito.
5 CONCLUSÃO
Assim posto, encerrada a síntese do tema, sem desconsiderar a importância que a prisão preventiva fundada na garantia da ordem pública para a condução do processo, entendemos que a melhor solução se encontra na obra do professor Guilherme de Souza Nucci.
O supracitado autor traz um interessante critério para identificar se há, ou não, necessidade de decretação da medida cautelar pessoal com base no pressuposto objeto deste artigo. Para ele, seria necessária a presença de um trinômio: gravidade da infração, repercussão social e periculosidade do agente (NUCCI, 2008, p. 605). Reunindo esses três requisitos, a “garantia da ordem pública” estaria satisfeita.
Tal solução mostra-se interessante para afastar algumas das críticas trazidas por aqueles que se posicionam pela inconstitucionalidade do requisito. Observando-se os três requisitos do trinômio de Nucci, o magistrado passaria a ter um critério mais objetivo para decretação da prisão preventiva, o que afastaria eventuais injustiças e arbitrariedades no uso dessa medida.
A prisão preventiva é importante instrumento à garantia da paz social, razão pela qual, utilizando-se da ponderação e sempre pautado na constituição federal, deve-se evitar o esvaziamento dessa importante medida cautelar, confiando ao Poder Judiciário a missão utilizá-la devidamente.
6 REFERÊNCIAS
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal – 19. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012.
GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de Inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 2009.
STF, HC 94.947/SP, 1ª T., Rel. Menezes Direito, j. 9.12.2008, Dje, 6.3.2009.
RHC 55070/MS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 10/03/2015, DJe 25/03/2015.
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal – 6. ed. – São Paulo: Saraiva, 2011.
TJ-RS - HC: 70029303302 RS, Relator: João Batista Marques Tovo, Data de Julgamento: 09/04/2009, Sétima Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 29/04/2009.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 10. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
DELMANTO, Roberto Junior. As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. 4. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5 ed. São Paulo. RT, 2008.
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente/SP; Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina/PR;
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Marcelo Aparecido de. Garantia da ordem pública e prisão preventiva: (in)constitucionalidade do pressuposto Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 nov 2019, 04:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53819/garantia-da-ordem-pblica-e-priso-preventiva-in-constitucionalidade-do-pressuposto. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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