RESUMO: O presente estudo visa abordar a temática acerca do princípio da insignificância, anotando sua importância para o sistema jurídico nacional, com seus conceitos e requisitos, mas demonstrando as razões pelas quais se torna inaplicável nos casos de crimes contra a administração pública, consoante verbete sumular n. 599 do Superior Tribunal de Justiça, aprovada em 20/11/2017.
PALAVRAS-CHAVE: direito penal, princípio da insignificância, crimes contra administração pública.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. A IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 4. REFERÊNCIAS.
A questão atinente à aplicação do princípio da insignificância no ordenamento jurídico pátrio sempre foi alvo de profundas discussões, uma vez que não se encontra preconizada, de forma expressa, na legislação penal.
Com o fito de trazer segurança jurídica nos processos penais que versam sobre crimes contra a Administração Pública o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula n. 599, preconizando a impossibilidade de aplicação do princípio da bagatela própria nos crimes desse naipe.
Entretanto, ainda com o referido enunciado normativo as controvérsias acerca da aplicação desse princípio ganham novos contornos, especialmente por causa do dissonante posicionamento dos Tribunais Superiores a respeito do tema.
A relevância do tema é inquestionável, especialmente em virtude do impacto na realidade social subjacente no reconhecimento da aplicação do princípio da insignificância nos delitos contra a Administração Pública.
2. A IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
2.1. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
Segundo Capez o princípio da insignificância é “originário do Direito Romano, e de cunho civilista, tal princípio funda-se no conhecido brocardo de minimis non curat praetor.” O autor anota que em foi introduzido no sistema penal em 1964 por Claus Roxin, ante sua utilidade nos objetivos sociais da política criminal da época (2018, p. 73).
Capez anota que o princípio preconizar que “o Direito Penal não deve preocupar-se com bagatelas, do mesmo modo que não podem ser admitidos tipos incriminadores que descrevam condutas incapazes de lesar o bem jurídico” (2018, p. 74).
Neste ponto, insta registrar que o referido princípio não possui previsão expressa na ordem jurídica brasileiro, tratando-se de construção doutrinária e jurisprudencial de uma causa de exclusão da tipicidade material, a qual se passa a analisar.
Para fins de compreensão do referido princípio, faz-se necessário situá-lo no conceito tripartido de crime. Nesse aspecto, como bem conceitua o doutrinador Rogério Grecco, o conceito analítico de crime é composto pelo fato típico, antijuridicidade e culpabilidade. Por sua vez, o fato para se tornar típico pressupõe a existência dos seguintes elementos: a) conduta (dolosa ou culposa); b) resultado; c) nexo de causalidade (entre a conduta e o resultado); d) tipicidade (formal e conglobante) (2017, sem paginação).
O conceito de “tipicidade formal é a adequação perfeita da conduta do agente ao modelo abstrato (tipo) previsto na lei penal”. Trata-se do ajuste da conduta perpetrada pelo agente no campo fático com a norma penal incriminadora. Por sua vez, “para que se possa concluir pela tipicidade conglobante, é preciso verificar dois aspectos fundamentais: a) se a conduta do agente é antinormativa; b) se o fato é materialmente típico” (Grecco, 2017, sem paginação).
Assim, segundo o autor supramencionado, o estudo da insignificância reside na segunda vertente da tipicidade, especificamente na tipicidade material do fato. “Pois, além da necessidade de existir um modelo abstrato que preveja com perfeição a conduta praticada pelo agente, é preciso que, para que ocorra essa adequação, isto é, para que a conduta do agente se amolde com perfeição ao tipo penal, seja levada em consideração a relevância do bem que está sendo objeto de proteção”. (Grecco, 2017, sem paginação).
Bitencourt (2018, sem paginação) elucida que:
A tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. Segundo esse princípio, que Klaus Tiedemann chamou de princípio de bagatela, é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal.
Para Capez a tipicidade penal exige um mínimo de lesividade ao bem jurídico tutelado, por entender ser inconcebível pressupor-se que o legislador tenha objetivado inserir em um tipo penal condutas totalmente inofensivas ou incapazes de lesar o interesse protegido (2018, p. 74). Em arremate, conclui o nobre estudioso:
Se a finalidade do tipo penal é tutelar um bem jurídico, sempre que a lesão for insignificante, a ponto de se tornar incapaz de lesar o interesse protegido, não haverá adequação típica. É que no tipo não estão descritas condutas incapazes de ofender o bem tutelado, razão pela qual os danos de nenhuma monta devem ser considerados fatos atípicos. O Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal têm reconhecido a tese da inexistência de tipicidade nos chamados delitos de bagatela, aos quais se aplica o princípio da insignificância, dado que à lei não cabe preocupar-se com infrações de pouca monta, insuscetíveis de causar o mais ínfimo dano à coletividade (CAPEZ, 2018, p. 74).
Segundo Pacceli (2018, sem paginação), a expressão de insignificância ou crimes de bagatela, pertencentes ao sistema jurídico como princípio geral da parte especial, possui como função a redução do excesso penal. É, portanto, um importante instrumento de reducionismo penal. O autor ressalta que o próprio Código Penal reconhece o menor desvalor do resultado, como no exemplo do delito de furto nas hipóteses em que há subtração da coisa de menor valor, conforme preconiza o artigo 155, § 2o, do Código Penal.
Destaco o artigo mencionado previsto no Código Penal:
Furto
Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
[…] § 2º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.
Pacelli explica que o dispositivo supratranscrito prevê hipótese de diminuição obrigatória da reprimenda, correlacionando o valor da coisa e seu significado no patrimônio. O doutrinador chega a conclusão de que existem coisas de valor considerável e outras que são vistas como de menor valor, segundo o próprio Código Penal (2018, sem paginação). Assim “se as coisas podem e devem ser valoradas há que se convir que algumas delas (coisas) não possuem valor algum, ou quase nenhum, do ponto de visto econômico, patrimonial, se consideradas isoladamente” (Pacelli, 2018, sem paginação).
Sobre o crime de furto, Capez exemplifica que esse delito, abstratamente considerado não é uma bagatela, mas a subtração de um chiclete pode ser. Sustenta que o princípio deve ser aplicado de acordo como plano concreto, verificando-se casuisticamente e conforme suas especificidades (2018, p. 75).
Em realidade, “quando o legislador penal chamou a si a responsabilidade de tutelar determinados bens – por exemplo, a integridade corporal e o patrimônio –, não quis abarcar toda e qualquer lesão corporal sofrida pela vítima ou mesmo todo e qualquer tipo de patrimônio, não importando o seu valor”. (Grecco, 2017, sem paginação).
Nessa linha, Grecco reconhece que o critério para se analisar a insignificância é, de fato, subjetivo, cabendo, então a utilização do conceito da razoabilidade para que se chegue à conclusão pela necessidade da proteção do direito penal (2017, sem paginação):
Concluindo, entendemos que a aplicação do princípio da insignificância não poderá ocorrerem toda e qualquer infração penal. Contudo, existem aquelas em que a radicalização no sentido de não se aplicar o princípio em estudo nos conduzirá a conclusões absurdas, punindo-se, por intermédio do ramo mais violento do ordenamento jurídico, condutas que não deviam merecer a atenção do Direito Penal em virtude da sua inexpressividade, razão pela qual são reconhecidas como de bagatela (GRECCO, 2017, sem paginação).
Noutro norte, Capez (2018, 75) atenta que não se pode confundir delito insignificante ou de bagatela com crimes de menor potencial ofensivo. Atenta que estes últimos são definidos no art. 61 da Lei n. 9.099/95, submetendo-se ao Juizado Especial Criminal, mas sem refletir em insignificância, pois possuem gravidade perceptível socialmente, não cabendo análise sob o prisma do princípio da insignificância.
Em simetria leciona Bitencourt (2018, sem paginação):
Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado. Com efeito, a insignificância ou irrelevância não é sinônimo de pequenos crimes ou pequenas infrações, mas se refere à gravidade, extensão ou intensidade da ofensa produzida a determinado bem jurídico penalmente tutelado, independentemente de sua importância. A insignificância reside na desproporcional lesão ou ofensa produzida ao bem jurídico tutelado, com a gravidade da sanção cominada. A
insignificância situa-se no abismo que separa o grau da ofensa produzida (mínima) ao bem jurídico tutelado e a gravidade da sanção que lhe é cominada. É nesse paralelismo — mínima ofensa e desproporcional punição — que deve ser valorada a necessidade, justiça e proporcionalidade de eventual punição do autor do fato.
Como bem denota Pacelli, a partir da exigência de uma efetiva danosidade da ação, articula-se a aplicação do postulado da intervenção mínima do Direito Penal (2018, sem paginação).
Conceituado o princípio e estabelecida as balizas estruturais de sua efetividade no sistema penal, torna-se necessário analisar os requisitos para sua imposição. Nesta temática, Pacelli doutrina acerca das três perspectivas que devem ser analisadas:
Há, aqui e então, pelo menos três perspectivas a serem examinadas. A primeira, do ponto de vista da vítima, de modo a avaliar a coisa subtraída no contexto global de seu patrimônio, a fim de se saber a relevância da lesão, na comparação com os custos sociais da intervenção penal. A segunda, da perspectiva do agente, na medida em que a subtração de pequenas coisas em grandes quantidades poderá produzir um significativo acréscimo patrimonial para o agente. E a terceira, diretamente associada à questão do bem jurídico, que, na verdade, englobaria as anteriores e se poria como síntese daquelas duas preocupações. (Pacelli, 2018, sem paginação)
Inobstante a importância dos parâmetros estabelecidos pelo referido doutrinador, cumpre consignar que, na prática, é a jurisprudência nacional que fixa os parâmetros da aplicabilidade do princípio da insignificância. Acerca do tema, temos o precursor julgamento de liminar dos do Habeas Corpus de n. 84.412-0/SP no Supremo Tribunal Federal, proferido pelo Ministro Celso de Mello, publicado no DJU em 19/11/2004, o qual discorreu nos seguintes termos:
Como se sabe, o princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material, consoante assinala expressivo magistério doutrinário expendido na análise do tema em referência (FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, "Princípios Básicos de Direito Penal", p. 133/134, item n. 131, 5ª ed., 2002, Saraiva; CEZAR ROBERTO BITENCOURT, "Código Penal Comentado", p. 6, item n. 9, 2002, Saraiva; DAMÁSIO E. DE JESUS, "Direito Penal - Parte Geral", vol. 1/10, item n. 11, "h", 26ª ed., 2003, Saraiva; MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO LOPES, "Princípio da Insignificância no Direito Penal", p. 113/118, item n. 8.2, 2ª ed., 2000, RT, v.g.).
O princípio da insignificância - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público em matéria penal.
Isso significa, pois, que o sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificarão quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade.
[…] O caso ora em exame, porém, não versa matéria de tráfico de entorpecentes, referindo-se, apenas, a simples delito de furto de um bem cujo valor é inferior a 10% do vigente salário mínimo.
As considerações ora expostas levam-me a reconhecer, por isso mesmo, que os fundamentos em que se apóia a presente impetração põem em evidência questão impregnada do maior relevo jurídico, consistente na possível caracterização, na espécie, da ausência de justa causa, eis que as circunstâncias em torno do evento delituoso - "res furtiva" no valor de R$ 25,00, equivalente, na época do fato, a 18% do salário mínimo então vigente e correspondente, hoje, a 9,61% do atual salário mínimo - parecem autorizar a aplicação, no caso, do princípio da insignificância.
Os parâmetros utilizados no julgamento supracitado tornaram a referência da jurisprudência nacional, tratando-se de matéria com entendimento pacificado pelo Supremo Tribunal Federal.
Assim, fixaram-se os seguintes vetores para aplicação do princípio da insignificância: a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; d) inexpressividade da lesão jurídica provocada. Razões as quais seriam suficientes a afastar a tipicidade material do ato lesivo.
Posicionadas essas premissas e diante do dinamismo que envolve a realidade social subjacente, a jurisprudência nacional permanece em constante evolução para reconhecer a inafastabilidade do reconhecimento de um requisito subjetivo, qual seja: o agente não pode se tratar de criminoso habitual (STJ. 6ª turma. RHC 31.612-PB, Relator Min. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 20/05/2014)
2.2. DOS CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Como bem observa o autor Cleber Masson, “o Poder Público não desfruta de meios suficientes para realizar diretamente todas as finalidades a que destina. Portanto, afigura-se imprescindível a delegação de diversas atividades a pessoas físicas que desenvolvem suas atividades mirando o interesse comum” (2014, sem paginação).
Nesse cenário bem anota o aludido autor que para o regular funcionamento do Estado são instituídas diversas normas do ramo do Direito Público. “Em algumas hipóteses, contudo, tais mandamentos revelam-se inidôneos à efetiva proteção do interesse público. Surge então o reforço do Direito Penal, mediante a tipificação dos crimes contra a Administração Pública.” (Masson, 2014, sem paginação).
Masson destaca também o caráter fragmentário do Direito Penal, asseverando que “nem todos os ilícitos configuram infrações penais, mas apenas os que atentam contra valores fundamentais para a manutenção e o progresso do ser humano e da sociedade” (2014, sem paginação). Sobre o tema ainda discorre:
O Direito Penal é a última etapa de proteção do bem jurídico, razão pela qual todo ilícito penal será também ilícito perante o Direito Administrativo, mas nem todo ilícito administrativo será necessariamente um crime ou contravenção penal. No plano abstrato, portanto, o legislador decide, mediante um juízo seletivo, quando uma conduta deve ser considerada ilícito penal ou ilícito administrativo.
E, mesmo depois da criação da infração penal (princípio da fragmentariedade), invoca-se na prática o princípio da subsidiariedade para decidir quando estará configurada a figura penal ou a simples falta disciplinar (ilícito administrativo). O Direito Penal é modernamente compreendido como ultima ratio (medida extrema ou última razão), pois se constitui em disciplina jurídica excessivamente gravosa e invasiva da esfera de liberdade do cidadão. Portanto, se a violação à Administração Pública não ingressar na seara penal, podendo ser solucionada pelo Direito Administrativo, será vedado o recurso ao Direito Penal.
Reserva-se a atuação penal única e exclusivamente para as hipóteses estritamente necessárias. De resto, busca-se a resolução do litígio por uma via menos lesiva aos envolvidos, e, por corolário, também ao Estado.
E nesse contexto que o Código Penal prevê em seu último título da Parte Especial os crimes contra a Administração Pública, no qual “[...] são catalogadas algumas das infrações penais mais nefastas e devastadoras, uma vez que, geralmente, mesmo atingindo diretamente a Administração Pública, indiretamente, causam dano a um número indeterminado de pessoas [...]” (Grecco, 2017, sem paginação).
Adentrando nos pormenores do tema, afirma Nucci (2019, sem paginação) que:
Apesar de bastante amplo, o conceito de Administração Pública abrange, atualmente, toda a “atividade funcional do Estado e dos demais entes públicos”, trazendo este Título do Código Penal uma gama de delitos voltados à proteção da atividade funcional do Estado e seus entes, variando única e tão somente o objeto específico da tutela penal. Ou, ainda, nas palavras de URBINA GIMENO, o bem jurídico tutelado nesse cenário é o bom funcionamento da Administração Pública, sua capacidade de prestar serviços. Cada figura delitiva desse Título especifica uma faceta desse genérico interesse, protegendo as concretas qualidades que caracterizam o bom exercício da atividade administrativa.
Masson assevera que “[...] todos estes crimes prejudicam, cada um a seu modo específico, a Administração Pública, e, por corolário, toda a coletividade, destinatária da atividade estatal.” O autor leciona que os delitos previstos na legislação pátria possuem como característica a vitimização difusa, violando um número indeterminado de pessoas, “[…] unidas entre si por um vínculo fático, visto que se encontram sob o império do Estado.” (2014, sem paginação).
Insta salientar que os crimes contra a Administração Pública se encontram divididos em cinco capítulos no Código Penal, a saber:
Capítulo I – Dos crimes praticados por funcionário público contra a Administração em geral;
Capítulo II – Dos crimes praticados por particular contra a Administração em geral;
Capítulo II–A – Dos crimes praticados por particular contra a Administração Pública estrangeira;
Capítulo III – Dos crimes contra a Administração da Justiça; e
Capítulo IV – Dos crimes contra as finanças públicas.
Acerca do alcance e dos bens jurídicos tutelados pela norma penal, Masson dispõe que:
O Código Penal disciplina, em seus arts. 312 a 326, os crimes funcionais, ou seja, os delitos praticados por funcionário público contra a Administração em geral.
São delitos de elevada gravidade e de incalculável extensão. Nada obstante ofendam diretamente os interesses da Administração Pública, reflexamente são prejudicadas inúmeras pessoas, especialmente aquelas economicamente menos favorecidas, e, por este motivo, mais dependentes do Poder Público. Exemplificativamente, uma fraude em licitação para contratação de merenda escolar por um município, com apropriação indevida pelos agentes públicos de milhões de reais e fornecimento de refeições de péssima qualidade, é mais lesiva até mesmo do que um crime de homicídio.
[...]
Com a edição da Lei 12.403/2011, todos os delitos funcionais ingressam no rol dos crimes afiançáveis. Além disso, a maioria das penas máximas não ultrapassa oito anos, dificultando a imposição do regime prisional fechado para início de cumprimento da pena privativa de liberdade. E mais: nenhum crime contra a Administração Pública foi classificado como hediondo (Lei 8.072/1990, art. 1.º).
Duas razões, uma histórica e outra política, explicam esta opção legislativa:
(a) historicamente, sempre se deu maior importância aos crimes ofensivos de bens jurídicos individuais. É por este motivo que a Parte Especial do Código Penal traz inicialmente os crimes contra a pessoa, passando pelos crimes contra o patrimônio, para, somente em seu derradeiro título, elencar os crimes contra a Administração Pública. Este foi o raciocínio do legislador na Parte Especial: os primeiros crimes são os mais graves, e os últimos, mais brandos; e
(b) politicamente, nunca houve vontade dos congressistas em conferir tratamento penal rigoroso aos crimes funcionais, especialmente porque, não raras vezes, são eles os acusados pela prática destas infrações penais.
Consoante doutrina de Manzini, citado por Masson (2018, sem paginação) o bem jurídico tutelado nos crimes contra a Administração Pública consiste no interesse público ao regular funcionamento da máquina pública e ao prestígio da administração pública lato sensu, notadamente em relação à probidade, ao desinteresse, à capacidade, à competência, à disciplina, à fidelidade, à segurança, à liberdade, ao decoro funcional e ao respeito devido à vontade do Estado em relação a determinados atos ou relações da própria administração.
Tendo em vista essa objetividade jurídica difusa é que se torna relevante a discussão de aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra a Administração Pública.
2.3. DIVERGÊNCIA ACERCA DA APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA EM RELAÇÃO AOS CRIMES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
De largada se consigna que o tema em foco encontra profundas divergências doutrinárias e jurisprudenciais, não se podendo afirmar, ao certo, a existência de uma norma objetiva em relação a imposição dessa causa supralegal de exclusão da tipicidade material nos crimes contra a Administração Pública.
Recentemente o Superior Tribunal de Justiça editou o verbete sumula n. 599 anunciando a inaplicabilidade do princípio da insignificância nos crimes contra a Administração Pública, in verbis:
Todavia, mesmo após a edição da aludida súmula, o próprio Tribunal da Cidadania, analisando determinado caso concreto, realizou distinguishing e permitiu a aplicação do princípio da bagatela, senão vejamos:
PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. DANO QUALIFICADO. INUTILIZAÇÃO DE UM CONE. IDOSO COM 83 ANOS NA ÉPOCA DOS FATOS. PRIMÁRIO. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. MITIGAÇÃO EXCEPCIONAL DA SÚMULA N. 599/STJ. JUSTIFICADA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INCIDÊNCIA. RECURSO PROVIDO.
1. A subsidiariedade do direito penal não permite tornar o processo criminal instrumento de repressão moral, de condutas típicas que não produzam efetivo dano. A falta de interesse estatal pelo reflexo social da conduta, por irrelevante dado à esfera de direitos da vítima, torna inaceitável a intervenção estatal-criminal.
2. Sedimentou-se a orientação jurisprudencial no sentido de que a incidência do princípio da insignificância pressupõe a concomitância de quatro vetores: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
3. A despeito do teor do enunciado sumular n. 599, no sentido de que O princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a administração pública, as peculiaridades do caso concreto - réu primário, com 83 anos na época dos fatos e avaria de um cone avaliado em menos de R$ 20,00, ou seja, menos de 3% do salário mínimo vigente à época dos fatos - justificam a mitigação da referida súmula, haja vista que nenhum interesse social existe na onerosa intervenção estatal diante da inexpressiva lesão jurídica provocada.
3. Recurso em habeas corpus provido para determinar o trancamento da ação penal n. 2.14.0003057-8, em trâmite na 2ª Vara Criminal de Gravataí/RS.
(RHC 85.272/RS, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 14/08/2018, DJe 23/08/2018, sem grifos no original)
Em sentido oposto, o Supremo Tribunal Federal aparenta sensibilidade com a tese da insignificância nos crimes contra a Administração Pública, reconhecendo a atipicidade da conduta perpetrada:
Habeas Corpus. 2. Subtração de objetos da Administração Pública, avaliados no montante de R$ 130,00 (cento e trinta reais). 3. Aplicação do princípio da insignificância, considerados crime contra o patrimônio público. Possibilidade. Precedentes. 4. Ordem concedida.
(HC 107370, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 26/04/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-119 DIVULG 21-06-2011 PUBLIC 22-06-2011)
No aludido julgamento realizado pela Segunda Turma do Pretório Excelso se concedeu ordem de habeas corpus e se absolver o paciente pela atipicidade material da conduta típica correspondente ao crime de peculato, em virtude da subtração de duas luminárias de alumínio e fios de cobre que estavam em desuso e destinadas ao lixão. Consoante se expôs pelo Ministro Relator Gilmar Mendes, em casos análogos o Supremo Tribunal Federal reconhece a aplicabilidade do princípio da insignificância no âmbito dos crimes contra a Administração Pública e que no caso em apreço os bens foram considerados inservíveis e não existia risco para a interrupção do serviço.
Verifica-se, dessa forma, que a questão se encontra longe de pacificação no âmbito jurisprudencial. No âmbito doutrinário não é diferente.
Bitencourt (2019, sem paginação correta) afirma cabível a aplicação da referida causa de exclusão da tipicidade material, senão vejamos:
Questão interessante é a aplicação do princípio da insignificância a determinados crimes, em razão da natureza ou importância do bem jurídico tutelado. Assim, por exemplo, nos crimes contra a Administração Pública, [...]. A importância, simplesmente, do bem jurídico tem levado significativo segmento jurisprudencial a não aceitar o reconhecimento da insignificância da conduta infracional em determinados crimes, [...]. No entanto, tecnicamente, não há que se fazer essa restrição. […] Por isso, não vemos grande diferença entre um pequeno furto e uma insignificante ofensa a determinado bem jurídico da administração pública, por exemplo (funcionário público que aceita de alguém um modesto brinde de Natal, sem alterar sua conduta). Com efeito, repetindo, em outros termos, o que dissemos inicialmente, a tipicidade penal exige ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos tutelados, pois não é qualquer ofensa a tais bens suficiente para configurar o injusto típico. É indispensável uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal (pena aplicável). Não raro, condutas que se amoldam, formalmente, a determinado tipo penal não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode não se configurar a tipicidade material porque, a rigor, o bem jurídico não chegou a ser lesado. O tipo penal deve ser valorado, no seu aspecto material, como instituto concebido com conteúdo valorativo, distinto de seu aspecto puramente formal, de cunho puramente diretivo. Por isso se deve considerar materialmente atípicas as condutas de inegável irrelevância (insignificância) para a sociedade como um todo.
No mesmo sentido Capez (2018) assevera que “não existe razão para negar incidência nas hipóteses em que a lesão ao erário for de ínfima monta. É o caso do funcionário público que leva para casa algumas folhas, um punhado de clips ou uma borracha, apropriando-se de tais bens”. Elucida o doutrinador que o Direito Penal, sob o prisma do princípio da intervenção mínima, na vertente da fragmentariedade, tutela bens jurídicos de forma objetiva, e não a moral.
O principal fundamento para a aplicação da referida causa excludente da tipicidade material é a violação de um bem jurídico de natureza difusa, transindividual, consistente no superior interesse público e na sua primazia. Ademais, os crimes contra a administração pública visam a proteção do prestígio da máquina pública, de modo que “a norma visa a resguardar não apenas a dimensão
material, mas, principalmente, a moral administrativa, insuscetível de valoração econômica” (STJ, AgRg no AREsp 572.572/PR, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª T., DJe
16/03/2016).
Masson esmiúça com primazia a temática:
Em verdade, os crimes praticados por funcionário público contra a Administração Pública representam uma forma qualificada de desvio de poder. O sujeito se aproveita da sua condição funcional para satisfazer indevidamente uma pretensão própria ou de terceiro, afetando os interesses da coletividade. Em busca de interesses privados, olvidam-se os princípios norteadores da Administração Pública consagrados no art. 37, caput, da Constituição Federal: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
E, por esta razão, a punição do responsável pelo crime funcional é indispensável. O agente, representante de um poder estatal, tem por função principal cumprir regularmente seus deveres, confiados pelo povo. A traição funcional faz com que todos tenhamos interesse na sua punição, até porque, de certa forma, somos afetados por elas.
Consoante exposto alhures, existe controvérsia acerca da possibilidade de aplicação do princípio da insignificância aos crimes contra a Administração Pública. Grecco (2017, sem paginação) entende “com a devida vênia, que não podemos fechar as portas do princípio simplesmente por estarmos diante de crimes dessa natureza. O caso concreto, observado de acordo também com o princípio da razoabilidade, é que determinará sobre a possibilidade ou não do reconhecimento do mencionado princípio.”. Para ilustrar seu entendimento, o renomado autor exemplifica:
Assim, a título de exemplo, imagine-se a hipótese em que um funcionário público subtraia de sua repartição uma caixa de clips, ou mesmo algumas folhas de papel para rascunho. Não seria razoável puni-lo com uma pena, correspondente ao crime de peculato-furto, que varia entre um mínimo de 2 (dois) e um máximo de 12 (doze) anos de reclusão, por esse comportamento.
De fato, “[...] a sociedade não tem ideia dos estragos causados quando um funcionário corrupto lesa o erário” (Grecco, 2017, sem paginação) e a lesão perpetrada contra a Administração Pública, por vezes, é insuscetível de avaliação patrimonial ou valoração econômica.
Em que pese o entendimento sumular do Superior Tribunal de Justiça possuir força obrigatória, nota-se que a própria Corte da Cidadania, mesmo após a vigência da súmula, já a flexibilizou e tornou possível a aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra a administração pública.
Efetivamente não se pode estabelecer uma regra fixa e compulsória acerca dessa situação. Ocorre que, consoante exposto alhures, a prevalência merece ser do interesse público e a proteção penal deve ser nesse sentido.
Com efeito, “a norma visa resguardar não apenas a dimensão material, mas, principalmente, a moral administrativa, insuscetível de valoração econômica. [...]" (AgRg no REsp 1382289 PR, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 05/06/2014, DJe 11/06/2014).
Desse modo, a regra geral, conforme exposto no enunciado sumular n. 599 do Superior Tribunal de Justiça, deve consistir na vedação da aplicação do princípio da insignificância aos delitos praticados em detrimento da Administração Pública.
Contudo, como em toda regra é defesa a interpretação literal e absoluta e consoante exposto na doutrina pátria, o reconhecimento dessa causa supralegal de exclusão da tipicidade material não pode conduzir à situações desproporcionais e que não merecem guarida da legislação criminal.
Consoante exposto alhures, a controvérsia acerca do emprego do princípio da insignificância dos delitos contra a Administração Pública se encontra distante de um fim harmônio na doutrina e na jurisprudência.
Ainda que com bons propósitos, a Súmula n. 599 do Superior Tribunal de Justiça não trouxe a esperada segurança jurídica ao tema, notadamente pela contrariedade de posicionamento com as decisões do Supremo Tribunal Federal e, especialmente, porque após a edição da Súmula, a própria Corte da Cidadania já a flexibilizou e admitiu a incidência da infração bagatelar imprópria.
Depreende-se, portanto, que inexiste uma regra geral acerca do tema em estudo. O que deve haver é uma análise casuística da situação.
Por certo que os delitos contra a Administração Pública possuem maior gravidade social e infringem ao interesse público primário. Diante dessa premissa, merece excepcionalidade a aplicação da referida Súmula nos casos em que, de fato, o dano apreciado for insignificante, como nos dois exemplos trazidos nesse estudo, em que uma pessoa se apropriou de duas luminárias inservíveis e que seriam destinados ao lixão e de um indivíduo de 83 anos, primário, cometeu delito de dano qualificado de um cone, avaliado em R$ 20,00 e que correspondia a menos de 3% do salário mínimo vigente na época dos fatos.
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Pós-Graduado em Direito Ambiental – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduado em Direito Constitucional – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduação em Direito Penal – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduado em Direito do Idoso – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduado em Direito Civil – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduado em Direito da Criança e do Adolescente – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduado em Direito Constitucional – Anhanguera Uniderp. Bacharel em Direito – Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ADRIANO, Daniel Dal Pont. A impossibilidade de aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra a Administração Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 dez 2019, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53863/a-impossibilidade-de-aplicao-do-princpio-da-insignificncia-nos-crimes-contra-a-administrao-pblica. Acesso em: 25 nov 2024.
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