RESUMO: Este estudo buscou relacionar a obrigatoriedade de submissão do julgador às súmulas vinculantes com o princípio constitucional do livre convencimento motivado: sua abrangência e consequências sob um prisma da hermenêutica jurídica, com a apresentação de pensamento contrário ao propósito da uniformização obrigatória da jurisprudência através das súmulas vinculantes.
PALAVRAS CHAVES: Hermenêutica Jurídica; Súmulas Vinculantes; Livre Convencimento Motivado.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1. O PAPEL DA HERMENEUTICA JURÍDICA NAS DECISÕES JURISDICIONAIS; 2. DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO DO MAGISTRADO: UM BREVE ESTUDO SOB O PRISMA DAS TEORIAS DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA; 2.1.AS TEORIAS DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA; 3.A SÚMULA VINCULANTE: CONCEITO, ABRANGÊNCIA E A SUA RELAÇÃO COM O LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO; 3.1.CONCEITO E ABRANGÊNCIA; 3.2.AS SÚMULAS VINCULANTES E O LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO; CONSIDERAÇÕES FINAIS; BIBLIOGRAFIA.
INTRODUÇÃO
A chamada Reforma do Judiciário, introduzida com a aprovação da EC nº 45/04, dentre as diversas modificações polêmicas, inseriu no Ordenamento brasileiro as chamadas súmulas vinculantes. O instituto das súmulas não é algo recente no Brasil, tendo em vista a existência das súmulas de uniformização de jurisprudência dos tribunais superiores (art. 476 do CPC) e das súmulas impeditivas de recurso (art. 557 do CPC). Porém, nunca houve no país um caso de vinculação jurisprudencial tão abrangente.
A polêmica foi instaurada na comunidade jurídica chamando a súmula vinculante a atenção para diversos assuntos, dentre os quais, o presente artigo – não de forma exaustiva (tendo em vista a exigüidade de linhas), mas com o intuito de incitar leitores a buscarem um estudo mais minucioso sobre o assunto – analisa a sua relação com o livre convencimento motivado (art. 93, IX da CF).
Para tanto, inicialmente buscou-se demonstrar a importância da utilização da hermenêutica e das técnicas interpretativas para o equilíbrio do sistema normativo. Após, para atribuir maior amplitude crítica ao trabalho, foi feito um estudo do livre convencimento motivado a partir de algumas das principais teorias hermenêuticas da argumentação jurídica – observando-se, inclusive, se este instituto, concebido pela constituição como atualmente está, teria condições de bem conviver com a vinculação sumular do Supremo Tribunal Federal.
Por fim, o presente ensaio tenta apresentar fundamentadas objeções ao propósito da uniformização obrigatória da jurisprudência através das súmulas vinculantes, tendo em vista a sua patente inconstitucionalidade por não estar em consonância com a função primordial do Poder Judiciário, qual seja, a de bem aplicar o direito levando em conta o seu papel como pacificador social.
1 O PAPEL DA HERMENEUTICA JURÍDICA NAS DECISÕES JURISDICIONAIS
A Constituição garantiu ao Judiciário, através do princípio da reserva de jurisdição, o exercício exclusivo da função jurisdicional[1]. No entanto, ao exercer esta função, em muitos momentos o juiz acaba por criar direito, completando lacunas ou decidindo por equidade. Estaria o magistrado legislando? A resposta a esta pergunta perpassa pela função criativa do magistrado, gerando outro questionamento: seria o juiz um mero aplicador da proposição normativa ao fato?
A sociedade atual é marcada por constantes transformações, o que aumenta o desajuste entre a mesma e o sistema normativo petrificado nas legislações. Assim, para se chegar ao real propósito da lei, qual seja, a pacificação social, o magistrado deve interpretá-la.
No âmbito da ciência jurídica interpretar é buscar o porquê da imposição normativa de determinada conduta, dando sentido válido para esta regra. Para interpretar (a lei) deve o jurista encontrar o verdadeiro sentido e alcance da norma. Eis aí o grande desafio da hermenêutica jurídica: buscar a melhor solução com um mínimo de perturbação social. Daí a importância da mesma, que seria a teoria da interpretação, e, nas palavras de Carlos Maximiliano (1979, p. 13), “tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do direito”.
Interpretação e hermenêutica não se confundem. A interpretação jurídica é a atividade técnica que busca pelo verdadeiro significado de uma norma. Já a hermenêutica seria a teoria que serve para fixar os princípios e métodos utilizados pela interpretação. A hermenêutica jurídica é uma teoria dogmática que expressa como o direito deve ser interpretado, formulando conceitos e premissas que ditam as suas regras doutrinárias. Através da história, Tércio Ferraz (2007, p. 289-304) distingue três métodos interpretativos: lógico-sistemático, sociológico e histórico e teleológico-axiológico.
A interpretação lógico-sistemática pressupõe que haja uma compatibilidade lógica entre uma expressão normativa e a unidade do sistema jurídico do ordenamento. Já a interpretação histórico-evolutiva, observa as condições sociais em que a norma incide, sem esquecer as fontes inspiradoras que deram origem a sua criação. O método histórico-evolutivo vê o direito como um fato sociológico capaz de adaptar-se as transformações sociais. Por fim, o método teleológico-axiológico considera que o propósito desejado pelas normas jurídicas é a forma mais indicada para a descoberta do seu sentido e alcance, influenciando significativamente o intérprete e o legislador, os quais devem sempre estar atentos a função social do direito.
Os métodos interpretativos devem ser aplicados em seu conjunto, partindo-se de técnicas mais elementares, como a gramatical[2], até os métodos mais complexos, como o teleológico-axiológico. Também, a interpretação deve estar norteada pelos princípios daquele sistema jurídico onde está inserida a norma analisada.
Ao julgar, o magistrado não pode deixar de apoiar-se nas regras hermenêuticas, sob pena realizar uma inconseqüente aplicação da norma ao fato. As súmulas vinculantes provocam exatamente isto: uma adestrada utilização de seus enunciados aplicados irracionalmente as decisões. Quando – seja através da lei ou da jurisprudência – o julgador é impedido de utilizar-se dos meios interpretativos necessários à formação de seu convencimento, o equilíbrio entre os três Poderes Estatais[3] é ameaçado, pois a mais importante função do Judiciário (função jurisdicional) não é alcançada.
2 DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO DO MAGISTRADO: UM BREVE ESTUDO SOB O PRISMA DAS TEORIAS DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
No Brasil, a exigência de motivação da sentença existe desde as Ordenações Filipinas, ganhando contornos constitucionais somente com a Carta de 1988.
A fundamentação representa o conteúdo racional da sentença, trazendo consigo um teor garantista. Percebe-se, considerando que a mesma serve para limitar o poder jurisdicional, que a obrigatoriedade de motivação está enraizada de status político. Assim, tem a sociedade a possibilidade de verificar se os fundamentos da decisão do magistrado estão dentro da lei e da razão.
Não basta simplesmente que o juiz julgue o pedido PROCEDENTE ou IMPROCEDENTE. O magistrado deve dizer em qual dispositivo legal se baseou e o porquê do mesmo ser aplicável ao caso, observando os costumes e os princípios gerais do direito – CF, art. 93, IX; CPP, arts. 157 e 381, III; CPC, capítulo I e art. 371.
Assim, quem decide não precisa buscar com este ato o consenso da comunidade, mas deve elaborar um discurso argumentado, racional, de forma a trazer uma conformação social. E é exatamente deste raciocinar jurídico que tratam as teorias da argumentação.
Diversas são os teóricos que cuidam do controle da formação do convencimento judicial, dentre os quais serão feitas resumidas referências a Theodor Viehweg (Teoria Tópica), Chäim Perelman (Nova Retórica), Robert Alexy (Discurso Racional) e Ronald Dworkin.
2.1 AS TEORIAS DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
A teoria tópica é uma técnica de pensamento[4] que parte do problema em direção a uma solução. Situa-se no campo da retórica, pressupondo uma pluralidade de intérpretes. Tais intérpretes partem de vários topoi ou loci (pontos de vistas, premissas), que, através de um silogismo dedutivo, chegam a uma conclusão final. Existem, portanto, três elementos caracterizadores da tópica: o problema (onde se inicia o pensar tópico), os topoi (elemento característico do pensar problemático) e a ratificação das premissas pela aceitação do interlocutor (as premissas se legitimam pela aceitação do interlocutor).
Vale ressaltar como crítica a esta teoria que apenas a utilização de métodos dedutivos leva à ausência de rigor lógico, retirando a sua eficácia de auferir se a argumentação está ou não correta.
Para a teoria da Nova Retórica o direito se caracteriza pelo pensar sistemático que define uma ordem aberta, sendo capaz de gerar uma decisão equânime e adaptada à situação concreta. Em Lógica Jurídica, Perelman busca demonstrar como o magistrado é capaz de utilizar a sua força de impor as decisões, conciliando o direito com a justiça.
Para este teórico uma argumentação que alcance apenas um determinado grupo social (auditório particular), refere-se a raciocínios persuasivos. Já aquela argumentação que atinge a todos (auditório universal) será efetivamente convincente. Assim, ele considera como válida apenas aquela argumentação voltada para o auditório universal.
A maior crítica à nova retórica é que a mesma, nas palavras de Joel Picinini (2005):
[...] tem como pressuposto para a obtenção de uma conclusão, a aceitabilidade das premissas e, como já ensinava Aristóteles, o papel da lógica formal é fazer com que a conclusão seja solidária com as premissas, mas o da lógica jurídica é mostrar a aceitabilidade das premissas.
Robert Alexy, distinguindo princípios de regras[5], afirma que é necessário compreender a decisão jurídica, a partir de uma teoria da argumentação. A argumentação jurídica é vista como uma espécie da argumentação moral, diferenciando-se desta por seus vínculos institucionais, quais sejam, as leis, os precedentes e a dogmática jurídica.
A teoria do discurso racional busca agregar aos princípios e as regras um procedimento para as suas aplicações com o intuito de garantir um resultado racional. Porém, o autor reconhece que a aplicação deste procedimento racional não é capaz de gerar uma decisão correta ao caso – no máximo a sentença apenas aproximar-se-á de uma solução ideal.
Segundo Dworkin o Direito deve ser visto como um sistema de princípios construídos a partir da interpretação da história das práticas sociais, opondo-se a compreensão positivista daquela ciência. Dworkin compreende o princípio como sendo uma espécie da qual a norma é gênero. O que diferenciaria ambos seria a lógica argumentativa e a natureza da orientação que oferecem. Na verdade teriam os princípios o papel de orientar, de direcionar o magistrado em busca de uma solução.
Por esta resumida análise das teorias da argumentação, percebe-se que nenhuma delas foi capaz de desenvolver um raciocínio jurídico adequado para a formação e controle do convencimento judicial.
O que fazer para combater o arbítrio judicial sem retirar do magistrado a liberdade de bem aplicar o direito?
O magistrado, como qualquer ser humano, ao examinar uma questão impõe sobre a sua análise processos psíquicos decorrentes de sua formação ideológica. Muitas vezes, o ato de julgar começa a partir de uma mentalização conclusiva, fazendo o magistrado idéias pré-concebidas do fato ainda não totalmente conhecido. Esta é a grande dificuldade enfrentada pelo processo de controle objetivo do convencimento judicial.
Com o intuito de encontrar uma solução para estas questões, primeiramente é importante que a interpretação das normas ocorra a partir da Constituição, de seus princípios e valores. Insta salientar que o Ordenamento Jurídico deve ser compreendido como um sistema hierarquizado e tem como vetor principal a Constituição. Assim, deverá o magistrado realizar uma interpretação sistemática, com a consciência de que, ao aplicar a lei ao caso concreto, estará na verdade consagrando o ordenamento jurídico como um todo.
Uma democracia não pode permitir que a prestação jurisdicional seja exercida ilimitada e arbitrariamente. Na luta pela justiça das decisões devem ser garantidos o devido processo legal e a motivação, pois estes mecanismos trazem a estabilidade dos procedimentos e a possibilidade dos litigantes participarem na formação do convencimento judicial. No entanto, a recente aprovação do instituto da súmula vinculante, como será observado a seguir, tem trazido preocupação aos estudiosos do direito em virtude de ser um forte empecilho a tais mecanismos processuais.
3 A SÚMULA VINCULANTE: CONCEITO, ABRANGÊNCIA E A SUA RELAÇÃO COM O LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO
3.1 CONCEITO E ABRANGÊNCIA
As súmulas[6] de jurisprudência são orientações firmadas a partir da síntese de inúmeras decisões sobre um mesmo assunto. Destas orientações se retira um enunciado, que é um preceito em abstrato. O enunciado é abstrato porque extrapola os casos concretos que lhe deram origem. Portanto, súmula e enunciado não se confundem – muito embora estes dois termos sejam utilizados constantemente como sinônimos.
As súmulas foram introduzidas no ordenamento pátrio em 1963 ao serem incluídas no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal[7]. Posteriormente, outros tribunais passaram também a editar súmulas, com a promulgação do Código de Processo Civil de 1973 (artigos 476 e seguintes). Em ambos os institutos, sem caráter persuasivo, as súmulas serviriam apenas como meio de orientação para o magistrado e às partes.
Cabe ainda lembrar-se da chamada súmula impeditiva de recurso[8], que apesar de teoricamente preservar a liberdade de julgamento do juiz de 1º grau vincula as partes, pois as mesmas somente terão o seu recurso apreciado pelo Tribunal quando a decisão não estiver de acordo com matéria sumulada.
A Emenda Constitucional nº 45/04 inseriu com o artigo 103-A o instituto da súmula vinculante, que posteriormente foi regulamentada pela Lei nº 11.417/06. Ao contrário das outras, a súmula vinculante tem caráter de obrigatoriedade e o objetivo específico de obstar o julgamento de ações repetidas.
O artigo 103-A da Constituição traz a possibilidade de o Supremo tribunal Federal, de ofício ou por provocação, aprovar súmula de efeito vinculante para os demais órgãos do Judiciário e para a administração pública, em todas as suas esferas. Para isto, devem ser preenchidos os seguintes pressupostos: decisão tomada por pelo menos dois terços dos desembargadores após reiteradas decisões sobre matéria constitucional.
Exige-se ainda que a súmula tenha por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários, ou entre estes e a administração pública. Tal controvérsia deve ser significativa a ponto de acarretar grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
Prevê o § 2º que o cancelamento ou a revisão das súmulas vinculante poderão ser provocados pelos legitimados ativos às Ações Diretas de Inconstitucionalidade (art 103, I a IX CF). Já o § 3º fala a respeito da reclamação, instituto que poderá ser usado nos casos da decisão judicial ou do ato administrativo não observar súmula vinculante. Julgada procedente, o STF irá anular a decisão ou o ato, determinando que outra decisão seja proferida pelo órgão/magistrado desobediente ou outro ato administrativo seja praticado, todos de acordo com a súmula.
Há muito tem sido discutida a efetividade da justiça brasileira diante da chamada “Crise do Poder Judiciário”. As lides levam anos e anos para serem resolvidas diante do excesso de processos, da falta de serventuários e de magistrados, além de tantos e tantos recursos. O instituto da súmula vinculante surge como a “grande solução” para esta crise.
Pontos importantes a respeito da vinculação as súmulas do STF, debatidos pela doutrina, merecem destaque, como, por exemplo, o argumento de que tal instituto baseia-se no direito norte-americano (stare decisis)[9]. Stare decisis, do brocardo latino “stare decisis et non quieta movere”, significa que não se deve alterar aquilo que já foi decidido. Típico do Common Law, este instituto consagra que, pelo princípio da isonomia, devem ser decididos casos iguais de igual maneira – são os chamados precedentes vinculantes. Entretanto, é necessário comparar as circunstâncias fáticas e jurídicas do processo que deu origem ao precedente com o caso a ser sentenciado para que o magistrado possa utilizá-lo com correção.
Já no caso do direito brasileiro, ignora(m)-se o(s) caso(s) concreto(s) que deu(ram) origem a súmula vinculante, a qual é aplicada abstratamente, sem qualquer fundamentação, como se lei fosse. Lênio Streck (200_) considera que o sistema jurídico brasileiro criou um problema de caráter hermenêutico ao instituir as súmulas vinculantes, afirmando que as mesmas
[...] representam um retrocesso em direção à metafísica clássica, em que o sentido estava nas “coisas”. Na Súmula estará condensada a substancia (essência) de cada “coisa” jurídica. Ou seja, a “substância” contida no verbete sumular destemporaliza o sentido, pelo seqüestro da temporalidade.
De acordo com Luiz Flávio Gomes, citado por Enéas Castilho Chiarini Júnior (2003), na verdade as súmulas vinculantes brasileira apresentam grande relação com o instituto cubano (art. 121 de sua Constituição), onde os Tribunais Superiores impõem instruções de interpretação e de aplicação da lei de caráter obrigatório.
Outro argumento que tenta justificar a imposição sumular é a afirmação de que as súmulas vinculantes dariam maior segurança jurídica à sociedade ao assegurar a previsibilidade das decisões. Porém, tal raciocínio é incompatível com os fundamentos de uma sociedade democrática, que se baseia exatamente no debate social – é a partir da discussão que conceitos são desconstruídos, construídos, e a humanidade evolui.
Também, com a vinculação das instâncias judiciais e da administração pública – dizem os doutrinadores – deixaria de ocorrer decisões diferentes sobre um mesmo tema, preservando-se o princípio da isonomia. Seria como se o conhecimento jurídico fosse reduzido a uma fórmula matemática que aplicaria, como num jogo de encaixe, a súmula e a lei em abstrato ao caso concreto.
Porém, há muito o hermeneuta rejeita esta idéia reconhecendo que não é possível extrair dos critérios normativos abstratos uma única solução para cada caso. As normas gerais apenas oferecem diversos parâmetros, sendo tarefa da razão prática encontrar aquele mais adequado ao caso concreto. Desta forma, o ideal seria que a metodologia de uniformização vinculativa, por determinar o sentido abstrato de aplicação da norma, sempre fosse objeto de interpretação (e das dúvidas e controvérsias interpretativas), da mesma forma que a norma jurídica.
A vinculação às súmulas é metodologicamente incompatível com a natureza do direito e renova a intenção – já rechaçada pela história – de eliminar os critérios da livre interpretação jurídica, impondo aos magistrados a aplicação de preceitos antecipadamente fixados pelo Supremo. Nas palavras de Castanheira Neves, citado por Fábio Cardoso Machado (2005), é “ilusório e ineficaz pretender ao nível da jurisprudência o que não foi possível ao nível da legislação: antecipar e fixar em abstrato o conteúdo juridicamente concreto das decisões jurídicas”.
Por fim, cabe rechaçar o alardeado argumento de que a súmula vinculante seria a solução para a grande quantidade de processos idênticos protocolados no STF, tornando a justiça mais ágil.
Com este pensamento, estão os juristas e a Administração Pública abreviando os debates na busca de uma contundente solução. Não há como solucionar uma crise como a vivida pelo Judiciário com paliativos mirabolantes de questões meramente conseqüenciais. Dúvidas não pairam da necessidade de uma reforma no Judiciário, mas as dificuldades são muito mais sérias do que se imagina – são de um nível estrutural e funcional profundo.
3.2 AS SÚMULAS VINCULANTES E O LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO
Como já exposto anteriormente, a Constituição exigiu a fundamentação de todas as decisões como uma maneira de combate ao arbítrio judicial. É uma liberdade garantida ao magistrado que, na verdade, constitui-se num meio de conservação dos princípios processuais, em especial do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF).
Entretanto, conferir força vinculante a determinado posicionamento judicial impede que o magistrado interprete livremente, devendo o mesmo decidir de acordo com aquele posicionamento, mesmo não concordando – passaria do relatório ao dispositivo, resumindo a parte da motivação a uma única frase: “considerando o teor da súmula nº... do STF, a qual possui força vinculante, decido”. Fazer remissão ao teor de súmula não é fundamentar e afronta ao inciso IX, art 93, CF.
Assim, além de inconstitucional – por afrontar o inciso IX, art 93 CF – as súmulas vinculantes são algemas para os juízes de primeira instancia, os quais eram livres para, olhando diretamente nos olhos dos seus jurisdicionados, bem analisar as provas e argumentos contidos nos autos a partir das teorias hermenêuticas, em especial das teorias da argumentação, decidindo com convicção.
A ciência jurídica, como a humanidade, evolui com as diferenças: é através da possibilidade de divergir que a jurisprudência vai desbravando caminhos para novas concepções e assim as decisões acabam por possibilitar as modificações legislativas. Porém, tais mudanças não começam dos Tribunais em direção às primeiras instâncias. Pelo contrário. São os jovens juízes, buscando solucionar os problemas daquele distante e esquecido município, que acabam por modificar posicionamentos.
Um magistrado que não possa julgar de acordo com o seu livre convencimento perde a sua função social, pois o seu instrumento de trabalho é justamente a interpretação. Ao utilizar a sua força vinculante, o STF torna-se um órgão de coação, e os juízes e Tribunais inferiores meros imitadores. Ao invés de solucionar a Crise do Judiciário, as súmulas enfraquecem este Poder, retirando a sua principal função: a função jurisdicional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há mais de trinta anos, uma das mais democráticas constituições do mundo foi promulgada e a comunidade jurídica brasileira conseguiu conquistar definitivamente a verdadeira independência de suas decisões. Trocar esta independência pela tese das súmulas vinculantes, sob a alegação de que as mesmas seriam a grande solução para o excesso de processos, representa verdadeiro retrocesso comparável à época das ditaduras vividas no Brasil.
Importante lembrar o pensamento de Lênio Streck (200_), para quem a súmula vinculante
[...] é uma metacondição de sentido, produzindo um discurso monológico, impedindo a necessária alteridade hermenêutica. Desse modo, o problema das Súmulas não reside no fato de serem “corretas” ou “incorretas”, e, sim, na função que esse mecanismo exerce no sistema jurídico e suas conseqüências no acesso à justiça e na qualidade das decisões a serem proferidas pelos juízes e tribunais.
Por fim, cabe salientar que a discussão sobre a Crise do Judiciário deveria perpassar antes pela questão da efetividade, da qualidade e da legitimidade das decisões, do que pela procura desesperada de diminuir desarrazoadamente o número de processos. O Judiciário brasileiro é lento porque possui uma estrutura antiquada e burocrática, e não serão as súmulas vinculantes a solução para tais questões. Pelo contrário, esse instituto representa verdadeira afronta ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, tendo em vista que o legitimo exercício da jurisdição pressupõe o livre convencimento motivado das decisões.
BIBLIOGRAFIA
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DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. 3ª Ed, revista. São Paulo: Saraiva, 2007.
FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 5º Ed. São Paulo: Atlas, 2007.
MACHADO, Fábio Cardoso. Da uniformização decisória por vinculação às súmulas de jurisprudência. Objeções de ordem metodológica, sócio-cultural e político-jurídica. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, nº 674, 10 maio 2005. Disponível em: <http:www.//jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6686> Acesso em: 19 jul. 2008.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979.
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PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. Tradução: Virgínia K. Pupi; Revisão de Tradução: Maria Eramantina Galvão; Revisão Técnica: Gildo Rios. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
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VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução: Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979.
[1] “O postulado da reserva constitucional de jurisdição importa em submeter, à esfera única de decisão dos magistrados, a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de explicita determinação constante do próprio texto da Carta Política, somente pode emanar do juiz, e não de terceiros [...]. A cláusula constitucional da reserva da jurisdição – que incide sobre determinadas matérias [...] – traduz a noção de que, nesses temas específicos, assiste ao Poder Judiciário não apenas o direito de proferir a última palavra, mas, sobretudo, desse modo, por força e autoridade do que dispõe a própria Constituição, a possibilidade do exercício de iguais atribuições, por parte de quaisquer outros órgãos por autoridades do Estado” (STF MS 23452/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJ em 12 maio 2000).
[2] A interpretação gramatical, literal ou filológica, extrai a significação léxica e sintática dos vocábulos, servindo como ponto de partida para qualquer outra modalidade interpretativa.
[3] MONTESQUIEU, com a doutrina da separação de poderes, lançou um sistema de controle entre o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, de modo que cada um exercesse exclusivamente a sua função sem a interferência do outro. Modernamente o que se observa é um controle e vigilância recíprocos entre os poderes, e o exercício por cada um de funções típicas (a Constituição garante um núcleo de competência próprio para cada um) e atípicas (próprias de outros órgãos).
[4] Tércio (FERRAZ JR., 2007, p. 342) não considera que a tópica seja um método, mas sim uma técnica de pensamento.
[5] Segundo Alexy, a diferença entre princípio e regra está centrada “em um aspecto da estrutura dos princípios e das regras, de uma maneira morfológica, fazendo com que regras sejam aplicadas de maneira silogística e princípios por meio de ponderação e balanceamento” (PEDRON, 2005, p. 71)
[6] Súmula (do latim summular): epítome, resumo
[7] O ministro Victor Nunes Leal, encampou a proposta de introdução das “súmulas de jurisprudência predominante” com a intenção de diminuir o número de julgados pelo Tribunal Superior.
[8] “Art. 932. Incumbe ao relator: IV - negar provimento a recurso que for contrário a: a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal” (CPC).
[9] Segundo Dallari (2007, p.73), o Ministro Carlos Velloso em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo comparou o instituto das súmulas vinculantes ao sistema judicial norte-americano.
Formada em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana, pós-graduada em Direito Público pela Universidade Gama Filho e em Direito pela Escola de Magistrados da Bahia(EMAB). Assessora de Juiz do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACHADO, LUCIANA CAVALCANTE PAIM. A súmula Vinculante e a sua relação com o livre convencimento motivado dos magistrados: breve análise a partir da hermenêutica jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 dez 2019, 04:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53937/a-smula-vinculante-e-a-sua-relao-com-o-livre-convencimento-motivado-dos-magistrados-breve-anlise-a-partir-da-hermenutica-jurdica. Acesso em: 22 nov 2024.
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