RESUMO: O presente trabalho tem por finalidade analisar a configuração do crime de estupro em razão da conduta de constrangimento, mediante violência ou grave ameaça, à prática do beijo lascivo. Para tanto, procede-se a uma análise da evolução histórica do delito até os dias de hoje, examinando-se todos os elementos que constituem o tipo penal atualmente. Realiza-se, ainda, um estudo detalhado acerca dos princípios da proporcionalidade e da ofensividade, demonstrando-se a relação que guardam com a problemática em questão. Por fim, promove-se uma solução adequada para o problema a partir da aplicação efetiva dos aludidos princípios penais.
PALAVRAS-CHAVE: DIREITO PENAL; CRIME DE ESTUPRO; ATO LIBIDINOSO; BEIJO LASCIVO; PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE; PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE.
1. INTRODUÇÃO
Com o advento da Lei 8.072 de 1990, que aumentou a pena prevista para o crime de atentado violento ao pudor e posteriormente da Lei 12.015 de 7 de agosto de 2009, que unificou o referido delito e o de estupro em um único tipo penal, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça fixou o entendimento de que a prática de quaisquer atos libidinosos (incluindo-se o beijo lascivo) daria ensejo à configuração do crime de estupro, provocando longas discussões sobre o tema no âmbito jurídico.
O presente trabalho se debruça exatamente sobre essa polêmica temática, porém tratando mais especificamente da configuração do crime de estupro em razão de beijo lascivo obtido pela força.
No primeiro capítulo, busca-se realizar um exame detalhado da expressão "outro ato libidinoso", presente no texto legal do tipo penal do estupro, dando destaque à sua falta de precisão que acaba por provocar uma insegurança jurídica no que diz respeito ao alcance de sua incidência, sugerindo o subprincípio da intervenção mínima como guia a orientar os operadores do direito.
Dando continuidade, passa a tratar dos diversos atos libidinosos que existem, discrimando aqueles de maior gravidade dos que se revestem de um nível de gravidade menor, até chegar a análise do ato de beijo lascivo, expondo as mais distintas opiniões doutrinárias sobre o tema e também o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça.
No capítulo final, busca-se demonstrar que a solução face a imprecisão do termo "outro ato libidinoso" é a aplicação de dois princípios constitucionais de extrema importância, qual sejam o da proporcionalidade e o da ofensividade.
Por fim, procura-se demonstrar o equívoco que há no atual entendimento do STJ a respeito da problemática em tela a partir da aplicação desses dois princípios, que servem inclusive para sanar a imprecisão existente no texto legal do crime de estupro, apresentando-se ainda uma solução justa e adequada para o problema.
2. DO CRIME DE ESTUPRO
O crime de estupro, na sua redação atual, consiste em constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, à prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso. Em outras palavras, pode-se dizer que estupro consiste em uma disposição sexual do corpo de outro indivíduo de maneira ilícita, obtida por meio de constrangimento físico ou psicológico.
A partir da leitura do texto legal, verifica-se, portanto, que o núcleo do tipo é o verbo constranger, aqui colocado no sentido de forçar, obrigar, subjugar o ofendido ao ato sexual. Trata-se, pois, de modalidade especial do delito de constrangimento ilegal, com a presença do objetivo específico de sucesso na conjunção carnal ou na prática de outros atos libidinosos (GRECO[1], 2012). Esse constrangimento pode se dar mediante violência real (física) ou violência psíquica (grave ameaça).
Quanto à violência física, cumpre-se ressaltar que as vias de fato e as lesões corporais leves ficam absorvidas pelo crime de estupro vez que constituem ações de meio para se obter o resultado pretendido, não havendo que se falar em concurso de crimes, em obediência aos princípios da consunção e do ne bis in idem. Válido relembrar que em caso de lesões corporais graves ou de morte da vítima, o estupro será qualificado.
Quanto à violência psíquica (grave ameaça), esta pode ser direta, indireta, implícita ou explícita. Desta forma, ela pode ser direcionada diretamente contra a vítima ou pode ser direcionada a outras pessoas ou coisas que estejam próximas à vítima, de modo a lhe causar temor em relação ao agente. A ameaça deve ser séria (grave), tendo capacidade de provocar temor, a partir de uma análise a levar o homem-médio como base.
É óbvio que, para que seja constatada a ocorrência da violência física ou psíquica, há de existir previamente a ela um dissenso por parte da vítima à prática do ato sexual. E esse dissenso deve ser se apresentar como uma real e induvidosa manifestação de vontade da mesma. Uma recusa que não se coloque de forma concreta pode afastar a materialidade desse crime, pois o agente poderia estar agindo acreditando que tudo apenas fazia parte de uma espécie de jogo de sedução, lhe faltando o elemento subjetivo do dolo de estuprar a vítima. A respeito disso, JOÃO MESTIERE[2] sustenta que:
A crença, sincera, de que a vítima apresenta oposição ao congresso carnal apenas por recato ou para tornar o jogo do amor mais difícil ou interessante deve sempre de ser entendida em favor do agente. Falha o tipo subjetivo, igualmente, quando o agente erra, ainda que culposamente, sobre um dos elementos do tipo objetivo. É o erro de tipo.
De acordo com isso, HUNGRIA[3]:
O dissenso da vítima deve ser sincero e positivo, manifestando-se por inequívoca resistência. Não basta uma platônica ausência de adesão, uma recusa meramente verbal, uma oposição passiva ou inerte. É necessária uma vontade decidida e militantemente contrária, uma oposição que só a violência física ou moral consiga vencer. Sem duas vontades embatendo-se em conflito, não há estupro.
Contudo, imprescindível afirmar que a necessidade de uma recusa evidente da vítima ao ato sexual não significa dizer que deve ela resistir exageradamente, desesperadamente, pois isso poderia provocar sérios riscos à sua vida ou à sua integridade física. O dissenso deve ser constatado respeitando-se a noção de razoabilidade, bastando uma manifestação clara e inequívoca, sendo, todavia, desnecessário que a vítima lute contra o agente até não poder mais.
No que diz respeito aos elementos tratados, quais sejam o do constrangimento mediante violência e do constrangimento mediante grave ameaça, conclui-se que não houve grandes alterações ao longo da história, uma vez que já consistiam em elementares do crime de estupro desde as legislações antigas.
No entanto, o mesmo não pode ser constatado no que diz respeito ao bem jurídico tutelado pelo tipo penal. Isso se justifica por conta das alterações provocadas pela Lei 12.015/2009, que elencaram como bens juridicamente tutelados pelo art. 213[4] tanto a dignidade sexual quanto, de forma mais específica, a liberdade sexual, ao contrário do que ocorria antes do advento da referida lei, quando o bem jurídico tutelado eram os costumes.
Atualmente, é protegido, portanto, o direito de liberdade que todo indivíduo tem de dispor sobre seu corpo no que concerne ao aspecto sexual. Sobre o assunto, EMILIANO BORJA JIMÉNEZ[5] conceitua liberdade sexual como sendo a:
Autodeterminação no marco das relações sexuais de uma pessoa, como uma faceta a mais de capacidade de atuar. Liberdade sexual significa que o titular da mesma determina seu comportamento sexual conforme motivos que lhe são próprios no sentido de que é ele quem decide sobre sua sexualidade, sobre como, quando ou com quem mantém relações sexuais.
Outrossim, quanto ao sujeito ativo e ao sujeito passivo do crime de estupro, a atual redação do tipo penal prevê que tanto o homem quanto a mulher podem figurar em ambos os pólos, diferente do que era previsto nas legislações anteriores.
Além disso tudo, sabe-se que o crime de estupro descreve um objetivo específico por parte do agente, qual seja a prática de conjunção carnal e/ou a prática ou a permissão que com ele se pratique outro ato libidinoso, o que é mais uma diferença em relação ao tratamento dado pelos ordenamentos jurídicos anteriores, que previam que o crime restaria configurado apenas com a ocorrência da conjunção carnal.
Vale acrescentar que a conjunção carnal também é considerada ato libidinoso, motivo pelo qual a parte final do caput do artigo 213 do Código Penal se utiliza da expressão "outro ato libidinoso":
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
No Brasil, foi adotado o chamado sistema restrito no que tange à interpretação da expressão "conjunção carnal", afastando-se o sistema amplo, que compreende a cópula anal, e também o sistema amplíssimo, que compreende ainda os atos de felação[6] (GRECO[7], 2012).
Pelos ensinamentos de NELSON HUNGRIA[8], o conceito de conjunção carnal consiste na cópula secundum naturam, a união entre o órgão genial masculino e o feminino, a penetração do pênis no canal vaginal.
Já a expressão ato libidinoso contém todos os atos de natureza sexual, diferentes da conjunção carnal, que tenham por finalidade satisfazer o desejo sexual do agente (GRECO[9], 2012).
De maneira semelhante, PAULO QUEIROZ[10] define ato libidinoso como "um termo generalíssimo que corresponde a todo e qualquer ato destinado à satisfação da libido, razão pela qual compreende a própria conjunção carnal como uma de suas possíveis formas".
FERNANDO CAPEZ[11] corrobora esse entendimento:
Ato libidinoso é aquele destinado a satisfazer a lascívia, o apetite sexual. Cuida-se de conceito bastante abrangente, na medida em que compreende qualquer atitude com conteúdo sexual que tenha por finalidade a satisfação da libido. Não se incluem nesse conceito as palavras, os escritos com conteúdo erótico, pois a lei se refere ao ato, ou seja, a uma realização física completa (...). Por exemplo: agente que realiza masturbação na vítima, introduz o dedo em seu órgão sexual, introduz instrumento postiço em seu órgão genital, realiza coito oral etc.
Oportuno acrescentar que, para a configuração do crime de estupro em razão de constrangimento, mediante violência ou grave ameaça, a prática ou permissão que se pratique ato libidinoso, esse ato deve possuir relevância, isto é, deve ser revestido de conotação sexual capaz de violar a liberdade sexual da vítima. O cuidado para que se evitem punições desproporcionais em relação ao comportamento do agente deve ser sempre enfatizado.
Em suma, pela análise do tipo penal do crime de estupro, constata-se que o tratamento que a lei penal brasileira atualmente dá ao crime de estupro é deveras rigorosa e não é por acaso. Os crimes que violam a dignidade sexual do cidadão, especialmente o estupro, são extremamente repugnantes aos olhos da sociedade moderna. Além disso, os mesmos têm um poder muito grande de causar danos psicológicos graves às vítimas que o sofrem, levando-as muitas vezes ao suicídio ou ao desenvolvimento de quadros avançados de depressão. Por tudo isso, a prevenção e a punição de delitos dessa natureza devem ser sempre objeto de imensa preocupação por parte do Estado.
3. DOS ATOS LIBIDINOSOS
Desde antes da edição da Lei 8.072/1990, já havia uma discussão doutrinária acerca do delito de atentado violento ao pudor que girava em torno do desrespeito ou não ao princípio constitucional da proporcionalidade, pois, tendo em vista que se tratava de um crime que podia ser cometido de diversas maneiras, não era justo que a punição fosse a mesma para toda forma de cometimento do mesmo.
A partir da vigência da referida lei, que aumentou a pena prevista para tal delito para o mínimo de 6 (seis) e máximo de 10 (dez) anos de reclusão, equiparando-a com a do estupro, essa discussão se tornou ainda mais forte e passou-se então a discutir qual seria a gravidade do ato libidinoso que daria ensejo a uma punição tão grave.
Posteriormente, a partir da Lei 12.015 de 2009, que unificou ambas as figuras num único tipo penal (art. 213[12]), permaneceu no âmbito doutrinário a dúvida acerca do alcance dessa expressão, de modo a levantar discussões relativas a quais atos libidinosos, além da conjunção carnal, teriam o condão de se enquadrar no tipo penal em questão, uma vez que a lei penal nunca foi precisa/taxativa por não trazer um conceito claro de ato libidinoso ou nem mesmo um rol exemplificativo de modo a nortear os intérpretes.
3.1 DA IMPRECISÃO DA AMPLITUDE DA EXPRESSÃO "OUTRO ATO LIBIDINOSO" NO DIREITO PENAL BRASILEIRO
Assim como os diversos ordenamentos jurídicos estrangeiros estudados, a legislação brasileira adotou uma expressão absolutamente imprecisa quando da tipificação do antigo crime de atentado violento ao pudor (agora incorporada ao crime de estupro), qual seja a de "outro ato libidinoso", deixando muitas dúvidas nos operadores do direito sobre o que seria o ato libidinoso capaz de configurar o delito do artigo 213[13] do Código Penal.
Como tratado anteriormente, ato libidinoso é aquele que tem o objetivo de satisfação da lascívia, do apetite sexual. Trata-se de um conceito bastante amplo, na medida em que compreende qualquer atitude que tenha o intuito de satisfazer a libido. A partir desse conceito, a dificuldade entre os operadores do direito está justamente em definir o que seria o ato libidinoso típico, haja vista que nem todo constragimento à prática de ato libidinoso pode ser considerado criminoso e que a lei penal não o definiu e nem ao menos trouxe exemplos de atos que dariam ensejo à configuração do estupro, com exceção da conjunção carnal. O resultado disso é uma discricionariedade grande por parte dos aplicadores da norma, exatamente por não encontrarem limites jurídicos que os orientem, o que os leva a interpretações subjetivas embasadas em concepções morais.
Mais do que isso, essa imprecisão do termo em questão reduz a eficácia da função garantista do Direito Penal, abrindo margem para arbitrariedade estatal e enfraquecendo o ideal de Estado Democrático de Direito.
Sendo assim, a verificação, em determinado caso concreto, do ato libidinoso típico deve ser bastante cuidadosa para que não sejam punidas com uma pena tão grave condutas que efetivamente não sejam igualmente graves.
Sobre isso, INGRID PEREIRA DE ANDRADE[14]:
Quando estudamos o crime de estupro é preciso tomarmos cuidado com a intervenção desmedida do direito de punir do Estado, pois dependendo do caso poderíamos aplicar uma pena de 6 anos para quem desejasse apenas brincar, humilhar ou sujeitar a vítima a um vexame qualquer. [...] isto significa que nem sempre o ato libidinoso será um crime de relevância, podendo assim caracterizar uma contravenção penal (importunação ofensivo ao pudor), um crime de constrangimento ilegal ou até mesmo uma injúria real.
Sabe-se que o bem juridicamente tutelado pelo crime de estupro é o da liberdade/dignidade sexual, de modo que apenas condutas que atinjam esse bem jurídico podem dar ensejo à configuração do referido delito. Dessa maneira, deve ser analisado se a conduta libidinosa praticada se reveste de conotação sexual e danosidade penal suficiente a atacar a liberdade sexual do indivíduo, de modo que o princípio penal da intervenção mínima (necessidade) deve orientar a atuação dos operadores do direito nesse contexto.
Sobre o assunto, ALESSANDRA GRECO e RASSI[15] nos ensinam que:
É de fundamental importância identificar, substancialmente, o bem jurídico de determinada conduta criminosa porque a partir desta advirão várias consequências como a classificação sistemática do crime, a própria compreensão do tipo, o conflito aparente de normas, além de se produzirem efeitos processuais. No que tange aos crimes sexuais, a identificação passa pelo princípio da intervenção mínima que implica a não punição das condutas meramente imorais.
3.2 DOS ATOS LIBIDINOSOS DE MAIOR GRAVIDADE
Como já destacado anteriormente, por força do princípio da intervenção mínima, nem todo constrangimento à prática de ato libidinoso provocará a ocorrência do delito de estupro. Vale enfatizar que o ato libidinoso típico (de ofensividade relevante) apenas estará constatado se o mesmo se demonstrar grave o suficiente a ponto de violar o direito à liberdade/dignidade sexual de determinado indivíduo.
Apesar de a lei penal não definir quais atos devem ser considerados libidinosos a esse ponto, LUIZ REGIS PRADO[16] exemplifica alguns dessa natureza:
Fellatio ou irrumatio in ore, o cunnilingus, o pennilingus, o annilingus (espécies de sexo oral ou bucal); o coito anal, o coito inter femora; a masturbação; os toques ou apalpadelas com significação sexual no corpo ou diretamente na região pudica (genitália, seios ou membros inferiores, etc.) da vítima; os contatos voluptuosos, uso de objetos ou instrumentos corporais (dedo, mão), mecânicos ou artificiais, por via vaginal, anal ou bucal, entre outros.
Nota-se que todos os exemplos elencados pelo referido doutrinador se revestem de absoluta conotação sexual, de modo que possuem danosidade suficiente à violação do bem jurídico da liberdade/dignidade sexual. Pode-se afirmar, portanto, que a prática forçada de qualquer um deles pode perfeitamente configurar o crime de estupro.
3.3 DOS ATOS LIBIDINOSOS DE MENOR GRAVIDADE
Existem atos libidinosos que, por sua menor importância e danosidade, não podem provocar a configuração do crime de estupro. Em outras palavras, em que pese serem formalmente libidinosos, são atos tão pouco relevantes que se apresentam como insignificantes e incapazes de provocar lesão ao bem jurídico da liberdade/dignidade sexual.
Nesse sentido, CEZAR ROBERTO BITENCOURT[17] afirma que "passar as mãos nas coxas, nas nádegas ou nos seios da vítima, ou mesmo um abraçado forçado, configuram [...] a contravenção penal do art. 61[18] da lei especial, quando praticados em lugar público ou acessível ao público".
Da mesma forma, o sujeito que, mediante violência ou grave ameaça, acaricia as partes pudendas de uma mulher por sobre seu vestido não pode de maneira alguma ser punido pelo crime de estupro, justamente pelo fato de sua conduta ser insignificante para a configuração de tal delito.
Outrossim, também na opinião de BITENCOURT[19]:
Beijo lascivo, tradicionais "amassos", toques nas regiões pudendas, "apalpadelas", sempre integram os chamados atos libidinosos diversos de conjunção carnal. No entanto, a partir da Lei dos Crimes Hediondos, com pena mínima de seis anos de reclusão, falta-lhes a danosidade proporcional, que até pode encontrar no sexo anal ou oral violento [...] A diferença entre o desvalor e a gravidade entre o sexo anal e oral e os demais atos libidinosos é imensurável. Se naqueles a gravidade da sanção cominada (mínimo de seis anos de reclusão) é razoável, o mesmo não ocorre com os demais, que, confrontados com a gravidade da sanção referida, beiram as raias da insignificância. Nesses casos, quando ocorre em lugar público ou acessível ao público, deve desclassificar-se para a contravenção do art. 61(LCP)[20] ou deve declarar-se sua inconstitucionalidade, por violar os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da lesividade do bem jurídico.
No entanto, o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento totalmente contrário ao do doutrinador acima mencionado, conforme se vislumbra do seguinte julgado:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PENAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. DESCLASSIFICAÇÃO PARA IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR. IMPOSSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DO VERBETE SUMULAR N.º 83 DESTA CORTE.
1. Este Tribunal já se manifestou no sentido de que os atos libidinosos comportam diferentes níveis de configuração, que podem englobar toques, contatos íntimos ou mesmo beijos lascivos.
2. A pretensão recursal de desclassificação não pode ser acolhida, uma vez que esta Corte tem entendimento consolidado sobre a tese em análise, atraindo a incidência do verbete sumular n.º 83 desta Corte.
3. Agravo regimental desprovido. (AgRg no Ag 1176949/SC, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 11/05/2010, DJe 07/06/2010).
Em todos os exemplos supra comentados, em que pese o posicionamento do citado Tribunal, teria sido muito mais pertinente a configuração do delito de constrangimento ilegal (art. 146[21] do CP) ou até mesmo da até então existente contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor (art. 61[22] da LCP), tendo em vista que o direito penal deve ser resguardado para situações que verdadeiramente sejam relevantes (graves). Hoje, a tipificação adequada deve se dar no delito de importunação sexual.
Com esse mesmo entendimento, GUILHERME DE SOUZA NUCCI[23] preleciona que "atos ofensivos ao pudor [..] devem ser considerados uma contravenção penal, e não um crime. A este, é preciso reservar o ato realmente lascivo, que sirva para satisfazer a ânsia sexual do autor, que se vale da violência ou da grave ameaça".
Ademais, sabe-se que a imaginação e os desejos humanos são infinitos. Em razão disso, existem uma série de transtornos sexuais (parafilias[24]) que fazem com que determinados atos sejam libidinosos para determinadas pessoas, quando não o são objetivamente. Isto é, há indivíduos que sentem prazer sexual com a prática de atos que, do ponto de vista geral, não possuem conotação sexual. Exemplos de parafilias são o fetichismo, o masoquismo, o voyeurismo, o exibicionismo, etc.
Há de se ressaltar, portanto, que o constrangimento à prática de quaisquer desses atos, não podem, a priori, configurar o crime de estupro. Isso se justifica porque, apesar de os mesmos serem atos libidinosos do ponto de vista do agente, não provocam violação à liberdade/dignidade sexual da vítima. Desse modo, um sujeito que constrange uma vítima a lhe provocar dor com o intuito de sentir prazer sexual (masoquismo) não comete o delito de estupro, desde que, é claro, não ocorra nenhum atentado ao bem jurídico tutelado pelo tipo penal.
O fato é que, uma vez que o termo ato libidinoso deve ser compreendido como aquele que está totalmente voltado para a satisfação do apetite sexual, devendo a libidinosidade estar atrelada ao padrão médio, ou seja, deve estar vinculada a conceitos previamente definidos pela meio social.
Notório que o rol dos atos libidinosos é extenso, havendo alguns capazes de provocar a ocorrência do delito em estudo e outros insignificantes para tanto. Nesse contexto, o mais polêmico de todos é o chamado beijo lascivo, que há muito é amplamente discutido pelos juristas.
3.4.1 Do Beijo Lascivo
Até os dias de hoje existe uma enorme dificuldade por parte dos operadores do direito em conceituar com precisão o que seria o beijo lascivo, dando causa a um longo debate a respeito do assunto. Para alguns, beijo lascivo é aquele que choca a moral média que o presencia e para outros é aquele que causa "inveja" a quem o assiste.
Entretanto não é sua conceituação a maior discussão que gira em torno do tema. Com o advento da Lei 8.072 de 1990, que aumentou a pena prevista para o crime de atentado violento ao pudor e posteriormente da Lei 12.015 de 7 de agosto de 2009, que unificou ambos os delitos em um único tipo penal, surgiu no âmbito doutrinário a dúvida acerca da possibilidade de o beijo lascivo aplicado à força configurar o delito em tela. A problemática divide opiniões dentre os operadores do direito.
De plano, há de se fazer uma simples distinção entre o beijo lascivo e o beijo afetuoso. Pode-se dizer que o beijo lascivo é aquele que reflete uma intimidade e uma intensidade (desejo) muito maior do que um beijo comum, daí a ideia de que choca a moral média ou causa "inveja" a quem o assiste. Já o beijo afetuoso (casto, furtivo) é aquele que reflete apenas um sentimento de carinho, sem a menor conotação sexual.
Não há dúvidas de que um simples beijo afetuoso, obtido pela força, não dá ensejo à configuração do delito de estupro. A discussão doutrinária circula em torno do beijo lascivo. É pacífico por parte da doutrina o entendimento de que "é considerado ato libidinoso o beijo aplicado de modo lascivo ou com fim erótico" (MIRABETE[25], 2009). No entanto, não é pacífico o entendimento de que o mesmo tenha danosidade suficiente para que seja constatada a ocorrência do estupro.
Em outras palavras, discute-se se o beijo lascivo, obtido mediante violência ou grave ameaça, é dotado de relevância penal suficiente para que figure como hipótese de estupro. Desta forma, surgem as seguintes indagações: é proporcional que um indivíduo que constranja alguém, mediante violência ou grave ameaça, a lhe dar um beijo lascivo seja punido com uma pena tão grave (equivalente a do homicídio), bem como sofra todas as consequências do caráter hediondo do crime? A referida conduta é dotada de gravidade suficiente para provocar lesão ao bem jurídico da liberdade sexual?
Para alguns juristas, sim, a exemplo de DAMÁSIO DE JESUS[26], que sustenta que o beijo lascivo aplicado à força demonstra um desejo incontido, configurando o delito em questão. Com o mesmo pensamento, Luiz Regis Prado[27] afirma que o beijo lascivo ou "lingual" aplicado contra a vontade da vítima não se reveste da mesma gravidade que um coito anal, mas que não deixa de configurar estupro, devendo apenas ter uma valoração menos rigorosa no momento de aplicação da pena.
Em sentido contrário, PAULO QUEIROZ[28]:
Discute-se se o beijo lascivo constitui estupro. Que o beijo (a depender do modo e lugar) figura entre as possíveis formas de libidinagem, é fora de dúvida. A questão fundamental reside em saber, porém, se um tal ato, como outros tantos de igual ou menor importância, pode ser considerado digno de proteção penal. E, para nós, não se pode ter à conta de estupro, crime hediondo que é, condutas que, embora formalmente libidinosas, não importem num constrangimento grave à liberdade sexual do ofendido, razão pela qual o princípio da insignificância tem plena aplicação também aqui.
Em harmonia com esse entendimento, ROGÉRIO GRECO[29] defende que não é proporcional punir uma pessoa que força outra a lhe dar um beijo lascivo com a mesma pena que se pune o homicídio.
Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que restaria configurado sim o delito de estupro com o constrangimento, mediante violência ou grave ameaça, à prática de atos libidinosos nas suas mais diversas formas, incluindo-se os toques, os contatos voluptuosos e o beijo lascivo:
PENAL. CRIME DE ESTUPRO. ART. 213 DO CÓDIGO PENAL. REFORMA TRAZIDA PELA LEI N. 12.015/2009. ATOS LIBIDINOSOS DIVERSOS DA CONJUNÇÃO CARNAL. RECONHECIMENTO DA CONSUMAÇÃO.
1. A reforma trazida pela Lei n. 12.015/2009 unificou em um único tipo penal as condutas anteriormente previstas nos arts. 213 e 214 do Código Penal, constituindo, hoje, um só crime constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
2. Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, "o delito de estupro, na redação dada pela Lei n. 12.015/2009, "inclui atos libidinosos praticados de diversas formas, onde se inserem os toques, contatos voluptuosos, beijos lascivos, consumando-se o crime com o contato físico entre o agressor e a vítima". (AgRg no REsp 1359608/MG, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEXTA TURMA, julgado em 19/11/2013, DJe 16/12/2013).
3. ...
4. Recurso especial provido para, reconhecida a consumação do delito previsto no art. 213 do Código Penal, fixar a pena do recorrido em 7 anos, 4 meses e 20 dias, mantido o regime fechado.
(REsp 1470165/MG, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, QUINTA TURMA, julgado em 04/08/2015, DJe 20/08/2015).
RECURSO ESPECIAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. ACÓRDÃO DE APELAÇÃO QUE DESCLASSIFICA O DELITO PARA A FORMA TENTADA. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. IMPOSSIBILIDADE. REVALORAÇÃO DA PROVA. REGIME PRISIONAL E SUBSTITUIÇÃO.
1. Embora o acórdão de apelação, reformando sentença condenatória, tenha desclassificado os delitos de atentado violento ao pudor para a forma tentada, a questão refere-se à valoração jurídica dos fatos, perfeitamente possível em sede de especial.
2. Em nosso sistema penal, o atentado violento ao pudor engloba atos libidinosos de diferentes níveis, inclusive os toques, os contatos voluptuosos e os beijos lascivos, consumando-se o delito com o contato físico entre o agressor e a vítima.
3. Inadmissível que o Julgador, de forma manifestamente contrária à lei e utilizando-se dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, reconheça a forma tentada do delito, em razão da alegada menor gravidade da conduta.
4. O estupro e o atentado violento ao pudor, ainda que praticados antes da edição da Lei n. 12.015/2009, são hediondos. Precedente - REsp n. 1.110.520/DF, admitido como representativo de controvérsia.
[...]
8. Recurso da Defesa a que se nega provimento, e recurso do Ministério Público provido, em parte, a fim de, reconhecida a modalidade consumada dos delitos, fixar a pena do acusado em 7 anos de reclusão, a ser cumprida em regime inicial semiaberto.
(REsp 1313369/RS, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 25/06/2013, DJe 05/08/2013).
O egrégio Tribunal argumenta que o crime em pauta inclui atos libidinosos de diversas gravidades, restando consumado quando ocorrer o contato físico entre o agressor e a vítima.
Além disso, sustenta que o bem jurídico da dignidade e da liberdade sexual deve ser destinatário da máxima proteção, devendo as condutas ofensivas ao mesmo ser punidas com o maior rigor possível.
Notória, pois, a imensa divergência que existe no meio jurídico acerca do tema.
4. DA CONFIGURAÇÃO DO CRIME DE ESTUPRO PELO BEIJO LASCIVO APLICADO À FORÇA À LUZ DOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA OFENSIVIDADE
Como estudado anteriormente, o tipo penal do estupro traz um texto que se demonstra extremamente impreciso em sua parte final, no que diz respeito à expressão "outro ato libidinoso", levantando dúvidas entre os operadores do Direito acerca de seu alcance.
Neste quadro, o Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento no sentido de que o delito de estupro pode se configurar perfeitamente em caso de constrangimento, mediante violência ou grave ameaça, à prática de beijo lascivo, sob o argumento de que trata-se de ato libidinoso e que por isso tal conduta se enquadra inteiramente na descrição do artigo 213[30], parte final, do Código Penal Brasileiro. No entanto, tal concepção é por demais absurda por violar fortemente os princípios da proporcionalidade e da ofensividade, como a seguir se demonstra.
Sabe-se que a principal consequência da prática de um crime é a sanção a ser imposta. Pela teoria da pena, pode-se afirmar que a mesma tem duas finalidades: a de retribuição, que é alcançada quando se impõe um castigo ao infrator da norma penal, castigo que deve ser necessário e suficiente; e a de prevenção, uma vez que busca intimidar os cidadãos a não cometerem futuros crimes, de modo que se garantam a paz social e a segurança pública.
Nesse contexto, é imprescindível que, para atingir sua dupla finalidade, a pena prevista em determinado artigo e também a pena a ser aplicada estejam em consonância com os citados princípios, pois qualquer excesso de punição as torna ilegítimas. Em outras palavras, para que atinjam seus objetivos, tanto no momento de sua cominação pelo legislador quanto no de sua aplicação pelo magistrado, têm de respeitar as noções de proporcionalidade e de ofensividade.
Neste cenário, a problemática existe justamente em razão da ampla desporporção que há entre a citada conduta e a consequente sanção a ser aplicada (6 a 10 anos de reclusão). Se por um lado a punição prevista para o estupro se demonstra bastante adequada para condutas como a conjunção carnal, o sexo oral ou o sexo anal, por exemplo, por outro se coloca como deveras excessiva para o beijo lascivo, que pode até mesmo ser considerado insignificante quando comparado com o quantum de pena cominado no tipo.
É indiscutível que o beijo lascivo é um ato libidinoso, todavia lhe falta danosidade suficiente para que possa ser enquadrado num tipo penal que prevê uma pena tão grave como a do estupro, ao contrário do que acontece com as outras condutas exemplificadas.
Sabe-se que o bem jurídico tutelado por esse delito é o da dignidade/liberdade sexual. Dessa forma, apenas condutas que verdadeiramente ataquem este bem podem sofrer a incidência dessa norma penal. Daí questiona-se: um beijo lascivo tem potencial suficiente para violar o referido bem jurídico? Um beijo lascivo se reveste de conotação sexual suficiente a ponto de atingir a dignidade sexual de alguém? A resposta só pode ser negativa, pois tal conduta não ostenta potencial lesivo para tanto.
Deste modo, em atenção ao princípio da ofensividade, o mencionado ato não pode de maneira alguma sofrer a incidência do tipo penal do estupro, exatamente por não ter nenhuma capacidade de sequer ameaçar o bem jurídico tutelado por este.
O que acontece é que a partir da Lei 8.092/1990, que aumentou a pena prevista para o crime de atentado violento ao pudor para um mínimo de 06 (seis) anos de reclusão, equiparando-a com a do estupro, e posteriormente da Lei 12.015/2009, que unificou ambas as figuras num único artigo, alguns atos que até podem ser considerados libidinosos (a exemplo do beijo lascivo) deixaram de ter lesividade razoável para figurar como hipótese do crime em tela, precisamente por não serem tão graves quanto a reprimenda mínima prevista.
Por conta disso, ao consolidar o já destacado entendimento, se equivoca o Superior Tribunal de Justiça por acreditar que a intenção do legislador era a de punir severa e indiscriminadamente a prática forçada de todo e qualquer ato libidinoso, pois isso afronta claramente o princípio da proporcionalidade, uma vez que a previsão de uma mesma pena para condutas de gravidades absolutamente distintas impede a ocorrência de uma aplicação justa da sanção penal. Ora, um beijo lascivo obtido pela força não pode ser punido na mesma intensidade de uma conjunção carnal ou de um sexo oral.
Constata-se, pois, o equívoco na interpretação do supradito Tribunal, que aparentemente foi feita de forma meramente literal, o que é totalmente inadequado no panorama do Direito moderno.
Buscando-se uma solução justa para a problemática, se concluirá que, em verdade, a real intenção do legislador (mascarada pela falta de clareza do texto legal) ao majorar essa pena com a Lei 8.092/1990, foi a de punir com tamanho rigor apenas os atos que se demonstrassem efetivamente graves para tanto, deixando os de menor importância no raio de incidência de outros tipos penais.
Mais do que isso, a opção de manter a expressão "conjunção carnal" no corpo do texto legal depois da Lei 12.015/2009, o que era desnecessário já que o ingresso carnal também é ato libidinoso, não foi por acaso. Tal manutenção tem o propósito de orientar os intérpretes no sentido de apontar qual a gravidade das condutas que podem se enquadrar no tipo penal em questão.
Outrossim, sabe-se que o delito de estupro figura no rol taxativo dos crimes hediondos, que, em regra, preveem penas extremamente graves pelo fato de tipificarem condutas que são da mais alta reprovação social e que causam enorme lesão a bens jurídicos fundamentais. Nesse contexto, o ato de constranger alguém à prática do beijo lascivo deve ser considerado crime hediondo? Absolutamente não. É claro que a citada atitude carrega consigo determinada reprovação social, todavia não ao ponto de ser classificada com caráter de hediondez.
Ademais, a lesão que provoca não é merecedora de uma punição tão severa, semelhante inclusive à do homicídio. Em outras palavras, não é proporcional que a sanção de um agente que força uma vítima a lhe beijar seja a mesma de um homicida. Nesse sentido, ROGÉRIO GRECO[31] argumenta que "por pior que seja o beijo e por mais feia que seja a pessoa que o forçou, não podemos condenar alguém por esse fato a cumprir uma pena de, pelo menos, 6 (seis) anos de reclusão, isto é, com a mesma gravidade que se pune um homicida".
Em razão disso tudo, é notória a ofensa que existe ao princípio da proporcionalidade em todos os seus elementos (adequação, necessidade, proporcionalidade em sentido estrito).
Ora, a aplicação do artigo 213[32] do Código Penal sobre uma situação em que determinado agente obtenha da vítima um beijo lascivo pela força não se apresenta como adequada ou idônea, longe disso. Isto porque, uma vez que o bem jurídico tutelado pela mencionada normal penal é o da dignidade/liberdade sexual, sua aplicação apenas se revelará adequada, útil ou idônea sobre hipóteses em que o objeto de sua tutela seja atacado, o que não se observa da circunstância em análise, haja vista que, como ressaltado anteriormente, um beijo lascivo não se reveste de ofensividade suficiente nem mesmo para o expor a risco.
Da mesma maneira, exatamente pelo mesmo fato de a conduta supracitada não possuir tamanha danosidade exigida pelo tipo penal, aplicar-se uma pena de no mínimo 6 (seis) anos de reclusão significa impor uma punição com rigor muito além do que a conduta merece, fazendo com que a pena se torne ilegítima, pois, excessiva que é, deixa de cumprir sua finalidade, restando contrariado o elemento da proporcionalidade em sentido estrito.
Neste enredo, o enquadramento que se coloca como o mais acertado é no novo delito de importunação sexual, previsto no artigo 215-A do Código Penal. Além disso, o mesmo comina uma pena adequada, necessária e suficiente à retribuição do injusto causado, e portanto absolutamente proporcional à lesão que tal atitude pode provocar, estando atendidos os princípios da proporcionalidade e da ofensividade.
Com efeito, por tudo exposto, descabido e inaceitável que a ação de constranger alguém pela violência física ou psíquica à prática de um mero beijo lascivo acarrete na materialidade de um crime tão grave que é o de estupro, posto que não se apresenta como grave a uma pena mínima de 6 (seis) anos de reclusão, muito pelo contrário.
Sabe-se que o direito penal é caracterizado pelo seu critério subsidirário, de modo que sua intervenção deve ocorrer apenas quando absolutamente necessária e indispensável à proteção de determinado bem jurídico em ameaça, depois de terem falhado outros ramos jurídicos. Sendo assim, ainda que sua intervenção se demonstre como única medida capaz de alcançar esse objetivo, a mesma deve ocorrer na menor intensidade possível, respeitando-se os limites da razoabilidade e da proporcionalidade.
Tendo isso em vista, depreende-se que o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça não corrobora nem de longe com essa ideologia. Ao enquadrar no crime de estupro a ação de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, à prática de um beijo lascivo, o egrégio Tribunal promove não uma intervenção mínima do direito penal, mas uma interferência máxima, além de uma banalização da punição, o que acaba por levar esse ramo jurídico ao completo descrédito.
Em virtude de tudo colocado, evidente está a brusca violação aos princípios em tratamento. A conduta examinada, que indiscutivelmente é desprovida de um alto grau de lesividade, não merece ser castigada com uma pena de pelo menos 6 (seis) anos de reclusão, pois isso é desproporcional.
Ora, a ideia de proporcionalidade busca estabelecer um equilíbrio entre direitos conflitantes, de modo que a restrição dos direitos do agente criminoso se dê na mesma medida em que o mesmo restringiu os da vítima. Assim, privá-lo de seu direito à liberdade por um período mínimo de 6 (seis) anos em razão de um beijo lascivo obtido pela força é instituir um enorme desequilíbrio entre a ação lesiva e a consequente punição.
Para mais, significa dissociar completamente a ideia de ofensividade da noção de proporcionalidade, o que inevitalmente provocará punições que transcenderão as fronteiras da razoabilidade, como no caso em questão.
Em resumo, o grau de ofensividade de uma ação criminosa deve estar sempre em conformidade/equivalência com sua resposta penal, respeitando-se os limites da proporcionalidade para que se evitem os abomináveis excessos de punição, pois, em contrário, se estaria fugindo do ideal de justiça tão valorizado em um Estado Democrático de Direito.
5. CONCLUSÃO
1) Ante o problema da imprecisão do texto legal do tipo penal do estupro, mais especificamente no que diz respeito ao alcance da expressão "outro ato libidinoso", e pelo fato de esse crime prever uma pena bastante grave, faz-se necessária uma interpretação minuciosa da norma penal para que se definam quais os atos libidinosos capazes de se enquadrar na descrição do delito em questão. Uma interpretação descuidada, meramente literal, tal qual a realizada pelo Superior Tribunal de Justiça (que entende configurado o crime de estupro em hipótese de beijo lascivo aplicado à força), ocasiona uma aplicação injusta e excessiva do Direito Penal.
2) Neste contexto, em busca de uma solução adequada para a problemática, deve-se proceder a uma análise da lei penal à luz de princípios que se apresentam como adequados ao preenchimento da lacuna deixada pelo legislador, quais sejam o da proporcionalidade e o da ofensividade.
3) Os princípios são preceitos hierarquicamente superiores que integram a estrutura normativa do sistema jurídico, controlando e orientando a formulação das leis bem como a maneira como devem ser interpretadas e aplicadas nos mais diversos casos concretos, servindo ainda como limitador do jus puniendi estatal, notadamente na esfera do Direito Penal.
4) A proporcionalidade-adequação estabelece que as medidas penais a serem adotadas devem estar em conformidade com os objetivos que se desejam alcançar. Dessa forma, a aplicação das normais penais deve ocorrer apenas quando for adequada para se atingir o fim almejado, que deve ser o da proteção de bens jurídicos, respeitando-se ao máximo os Direitos Fundamentais. Por este motivo, o subprincípio da adequação social pode ser encarado como coroálio do princípio da proporcionalidade-adequação.
5) A proporcionalidade-necessidade estabelece que a intervenção estatal na esfera dos Direitos Fundamentais do indivíduo deve ser a menor possível. Assim, a interferência do Direito Penal, que é o ramo jurídico que provoca as mais pesadas consequências, não deve ocorrer quando existir um meio extrapenal que se demonstre suficiente para a tutela do bem jurídico. Pode-se afirmar que o subprincípio da necessidade é o subprincípio do meio menos gravoso, que impõe ao Direito Penal um caráter subsidiário, devendo ser aplicado apenas quando as outras esferas do direito tiverem fracassado na tutela desse bem jurídico.
6) A proporcionalidade em sentido estrito impõe que a aplicação do Direito Penal deve acontecer de forma proporcional à violação do bem jurídico. Trata-se da proporcionalidade entre delito e pena, ou seja, é um subprincípio que regula em que intensidade a esfera penal deve interferir nos Direitos Fundamentais do indivíduo.
7) O princípio da ofensividade dispõe que apenas poderão ser consideradas criminosas condutas que provoquem lesão relevante a determinado bem jurídico. Trata-se de um princípio limitador do jus puniendi estatal, de modo que condutas que ocasionem lesões insignificantes a um bem jurídico não ensejam a intervenção da lei penal.
8) Por todo o exposto, percebe-se o quão equivocado é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça. A configuração do crime de estupro em razão de beijo lascivo obtido pela força viola fortemente os princípios da proporcionalidade e o da ofensividade, uma vez que a referida conduta não ostenta potencial lesivo suficiente a atacar o bem jurídico da dignidade/liberdade sexual e nem se demonstra grave o suficiente para ser punida com uma pena mínima de 6 (seis) anos de reclusão.
9) Como solução específica para o problema, defende-se que a conduta de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, à prática de beijo lascivo configura o delito de constrangimento ilegal, haja vista que o bem jurídico violado por tal ação é o da liberdade de autodeterminação, objeto da tutela do aludido crime, e que o mesmo prevê uma pena adequada, necessária e proporcional ao injusto causado.
10) O cuidado para se evitarem punições excessivas no Direito não pode jamais ser desobservado, especialmente na esfera penal. Toda resposta repressiva deve ser proporcional ao injusto causado, pois, ao contrário disso, se estaria legitimando a completa arbitrariedade estatal, o que não tem espaço dentro de um Estado Democrático de Direito.
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[1] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal Parte Especial. Rio de Janeiro. Impetus, 9 ed. 2012. p. 460.
[2] MESTIERE, João. Do Delito de Estupro. p. 92.
[3] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. 8: arts. 197 a 249. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983.
[4] Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:88
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos89.
§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18
(dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: 90
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
[5] JIMÉNEZ, Emiliano Borja. Curso de política criminal, p. 156.
[6] Prática sexual que consiste na estimulação oral do pênis. Dicionário da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2016.
[7] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal Parte Especial. Rio de Janeiro. Impetus, 9 ed. 2012. p. 461.
[8] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal, v. 8, p. 116.
[9] Vide nota de rodapé n. 27.
[10] QUEIROZ, Paulo. Do Estupro. 2011. Disponível em: http://www.pauloqueiroz.net/do-estupro/. Acesso em: 18 abril, 2016.
[11] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, parte especial. São Paulo: Saraiva, 2006.
[12] Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18
(dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2º Se da conduta resulta morte: 91
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
[13] Vide nota de rodapé n. 1.
[14] ANDRADE, Ingrid Pereira de. Crimes contra a liberdade sexual. Disponível em: <http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/87/artigo294983-3.asp>. Acesso em: 18 abril, 2016.
[15] GRECO, Alessandra Orcesi; RASSI, João Daniel. Crimes contra a dignidade sexual. São Paulo: Atlas, 2010, p.62.
[16] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. v. 2, p. 601.
[17] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, vol. 4, p. 50.
[18] Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor:
Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.
[19] BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado, cit., p. 859.
[20] Vide nota de rodapé n. 12.
[21]Art. 146 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.
[22] Vide nota de rodapé n. 12.
[23] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado, p. 648.
[24] Parafilia é um desvio sexual. Trata-se de um comportamento onde a fonte do prazer sexual não se encontra na copulação em si, mas em situações fora do comum.
[25] MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Manual de direito penal, v. 2: Parte especial, Arts. 121 a 234 do CP. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 384.
[26] DAMÁSIO, E. de Jesus. Direito Penal; parte especial, 14 ed., São Paulo. Saraiva, 1999, v. 3, p. 103-104.
[27] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, v. 2, p. 599.
[28] QUEIROZ, Paulo. Do Estupro. 2011. Disponível em: http://www.pauloqueiroz.net/do-estupro/. Acesso em: 18 abril, 2016.
[29] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal Parte Especial. Rio de Janeiro. Impetus, 9 ed. 2012. p. 497.
[30] Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18
(dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2º Se da conduta resulta morte: 91
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
[31] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal Parte Especial. 9a ed. v. 3. p. 497, 2012.
[32] Vide nota de rodapé 21.
Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CASTRO, Luís Felipe Reis de. A configuração do crime de estupro em razão de beijo lascivo obtido pela força: uma análise à luz do princípio da proporcionalidade, do princípio da ofensividade e de aspectos constitucionais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 dez 2019, 04:13. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53952/a-configurao-do-crime-de-estupro-em-razo-de-beijo-lascivo-obtido-pela-fora-uma-anlise-luz-do-princpio-da-proporcionalidade-do-princpio-da-ofensividade-e-de-aspectos-constitucionais. Acesso em: 22 nov 2024.
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