ROGÉRIO SARAIVA XEREZ
(Orientador) [i]
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo apresentar um estudo sobre o Feminicídio, em especial a possibilidade de as mulheres transexuais figurarem como sujeitos passivos do crime. Para tanto, foram utilizados como fonte a literatura e jurisprudência atual sobre o tema. Assim desenvolveu-se uma análise dos principais aspectos do crime de homicídio, com ênfase na sua forma qualificada conhecida por Feminicídio. Buscou-se especialmente no trabalho demonstrar que as mulheres transexuais podem ser vítimas do crime de Feminicídio, sem atingir a segurança jurídica desta qualificadora. A metodologia utilizada no trabalho em questão foi a pesquisa bibliográfica sobre o tema, através de artigos jurídicos, revistas jurídicas, doutrinas, jurisprudência e normas constitucionais e infraconstitucionais. Por fim, procurou-se com decisões judiciais ratificar a teoria que as mulheres transexuais figuram sim vítimas do crime de Feminicídio. Verificou-se que tal entendimento apesar de sustentação jurídica ocorre a passos lentos, havendo ainda, no meio jurídico, relutância em aceitar que as mulheres transexuais possam figurar no polo passivo desta qualificadora.
Palavras-chave: Feminicídio, Transexuais, Vítima.
ABSTRACT: This study aimed to explore the Femicide theme, especially the possibility of transgender women being passive subjects of crime. The work developed an analysis of the main aspects of homicide crime, emphasizing its qualified form known as Femicide, based on the literature and current jurisprudence on the subject. Work especially focus to demonstrate that transgender women might be victims of the crime of Femicide, without achieving the legal certainty of this qualifier. Through a bibliographical research in legal articles, legal journals, doctrines, jurisprudence and constitutional and infraconstitutional norms the study developed its methodology. Finally, we sought to ratify the theory that transgender women do appear to be victims of the Femicide crime, with court decisions. It was possible to verify that this legal support occurs slowly, and there is still a reluctance, in the legal environment, to accept that transgender women can figure as passive subject of this qualifier.
Keywords: Femicide, Transsexuals, Victim.
Sumário: 1. Introdução. 2. Homicídio e suas espécies. 2.1. Homicídio simples. 2.2. Privilegiadoras, Qualificadoras e Majorantes do homicídio. 2.2.1. Homicídio privilegiado. 2.3. Homicídio em sua forma qualificada. 2.4. Homicídio na forma culposa. 3. O crime de Feminicídio. 3.1. Feminicídio e Transexualidade. 4. Transgêneros, transexuais e travestis. 4.1. Mulheres transexuais como vítimas do Feminicídio. 5. Conclusão. Referências.
1 INTRODUÇÃO
A identidade de gênero de uma pessoa corresponde à maneira como o indivíduo se reconhece com relação ao seu gênero, podendo não ter relação com seu sexo biológico ou sua orientação sexual. O livre exercício da identidade de gênero está embasado nos direitos constitucionais da liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana, além do direito da personalidade, não sendo admitida qualquer discriminação ou exclusão de direitos e proteção perante a lei.
Nos últimos anos, os estudos de gênero levantaram muitas questões a respeito da concepção do que é gênero e como esse termo pode abranger e romper vertentes que sempre estiveram enraizadas na cultura social, indo além da atribuição de se ser homem ou mulher. Considerando as modernas concepções do gênero, amparadas no discurso de Scott quando afirma que o gênero se tornou “uma maneira de indicar as construções sociais”. (1989, P.7), o estudo discutiu sobre a nova proposição de como os diferentes papéis de gênero dão voz e direitos a novas classificações de sujeitos sociais.
Esclarece-se desde já que a intenção aqui é de explorar um recorte social específico: a mulher transexual, e relacionar o tema a um assunto preocupante e lamentável: a violência contra as mulheres, sendo a mais grave destas, o crime de homicídio. Neste sentido, o presente artigo busca demonstrar com sustentação na literatura e jurisprudência, que diante das novas classificações, a mulher transexual também pode ser protegida através da possibilidade de figurar como pólo passivo em um crime tão grave como o homicídio. Assim foi pressuposto apresentar inicialmente a concepção do crime de homicídio, cometido contra as mulheres, configurando como Feminicídio.
Para levantar esta discussão, o presente trabalho inicia com algumas considerações sobre o crime de homicídio, e suas principais características. Conceituaram-se suas elementares, definiu-se a sua consumação e foi abordado o crime de homicídio com suas respectivas classificações, qualificadora do crime de Feminicídio que foi explorado no segundo tópico.
No terceiro tópico passa-se então ao estudo sobre o gênero, com ênfase na transexualidade, conhecendo e conceituando suas peculiaridades, para então analisar a possibilidade de as mulheres transexuais figurarem como vítimas do crime de Feminicídio. Pelo exposto, pretende-se com o presente artigo destacar a possibilidade jurídica de ter como vítima, sujeito passivo do crime de Feminicídio, a mulher transexual, como forma de assegurar tratamento igual as diferentes representações do gênero feminino.
2. HOMICÍDIO E SUAS ESPÉCIES
Define-se o Crime de Homicídio, como “a morte de um ser humano provocada por outro ser humano” (Fernando Capez, p.21). É a eliminação da vida de uma pessoa praticada por outra.
Tal crime encontra-se previsto no Código Penal Brasileiro, que foi criado através do decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, pelo então presidente Getúlio Vargas, e permanece em vigor até os dias atuais, embora tenha sofrido, no ano de 1984, uma reforma em sua parte geral e, no decorrer dos anos, também em sua parte especial.
O estudo aprofunda essa temática expondo o delito homicídio em suas classificações, bem como as particularidades de cada categoria.
2.1. Homicídio Simples
O supracitado crime localiza-se na Parte Especial do Código Penal Brasileiro de 1940, incluso no “Título I: Dos crimes contra a pessoa” em seu “Capítulo I: Dos crimes contra a vida” no artigo 121 que dispõe: “Homicídio Simples: matar alguém: pena de reclusão, de seis a vinte anos”.
Define-se Homicídio simples, como a anulação da vida humana extrauterina, cometida por outra pessoa (COUTO, 2016). Caso se trate da vida humana endo-uterina, muda-se o bem jurídico tutelado e consequentemente a transgressão, tratando-se nesse caso do crime de aborto, assim como quando se define o suicídio, que é a eliminação da própria vida pelo sujeito ativo.
O homicídio é um delito de ação livre, ou seja, admite diversos meios de execução, podendo ser praticado tanto por ação quanto pela omissão do agente. O tipo não exige do sujeito ativo, nenhuma situação ou característica especial, sendo assim considerado um crime comum, ou seja, que pode ser praticado por qualquer pessoa. Quanto ao sujeito passivo, utiliza-se a mesma regra supracitada: qualquer pessoa após o nascimento e que permaneça viva pode matar ou ser morta.
A conduta típica prevista no artigo 121 do Código Penal é “matar alguém”, sendo indispensável que exista nexo causal entre a conduta do agente e o resultado por ela produzido. Dentro do mesmo tipo, apresentam-se os elementos subjetivos, que podem ser o dolo, que é a vontade de matar (animus necandi) e a culpa (quando o agente der carga ao resultado, por imprudência, negligência ou imperícia).
Importante ressaltar que o crime de homicídio, sendo plurissubsistente, cabe perfeitamente a tentativa e atinge sua consumação com a morte da vítima, que de acordo com a Lei 9434/97 (Lei que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências) e aqui é tomada pela referência do seu artigo terceiro, quando especifica que o fim da vida se dá com a morte encefálica.
Consoante Rogerio Sanches Cunha:
Podendo a execução do crime ser fracionada em vários atos (delito plurissubsistente), a tentativa mostra-se perfeitamente possível quando o resultado morte não sobrevém por circunstancias alheias à vontade do agente. Admite-se a forma tentada, inclusive no crime cometido com dolo eventual, já que equiparado, por lei, ao dolo direto (Art.18, I, do CP). (CUNHA, p.73).
Encima do previsto no artigo 121 do Código Penal, conclui-se que o homicídio simples vem especificamente articulado apenas ao conceito inicial do fato de matar alguém, ficando o entendimento que sua classificação requisita que, a forma como esta vida foi suprimida, não tenha utilizado meios mais elaborados como do uso de veneno, fogo, explosivos, tortura, ou que tenha submetido a vítima a intenso e prolongado sofrimento.
2.2. PRIVILEGIADORAS, QUALIFICADORAS E MAJORANTES DO HOMICÍDIO
Ao se conceber o crime de homicídio como delito passível de penalidade jurídica, há que se considerar suas particularidades e estas devem ser cuidadosamente apuradas, aplicando-se, caso seja necessário, o que o código penal brasileiro nomeia como privilegiadoras, qualificadoras e majorantes. Os termos aqui devem ser entendidos como particularidades técnicas que devem ser considerados quando imputada a penalidade cabível ao respectivo crime.
Em um breve entendimento jurídico, a privilegiadora seria para dosimetria de pena, o critério utilizado pelo ordenamento jurídico para reduzir ou atenuar a pena. A qualificadora representaria as circunstâncias de fato, subjetivas ou objetivas, que qualificam o delito de homicídio, podendo aumentar a pena-base do homicídio doloso. A majorante também incide aumento na pena, inclusive podendo superar o limite da pena base, mas apenas pode ser instituída na terceira fase da aplicação penal.
2.2.1 Homicídio privilegiado
O crime de homicídio embora esteja configurado como um delito grave, recebe análise diferenciada partindo de alguns pressupostos específicos, onde o sujeito ativo pode se beneficiar mediante aspectos, nomeados de privilegiadora pela jurisprudência brasileira. Assim então nomeado de homicídio privilegiado. Esta modalidade do crime de homicídio, encontra-se prevista no Código Penal, em seu artigo 121, parágrafo primeiro:
Caso de diminuição de pena
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
Tal artigo prevê em seu texto três hipóteses em que o homicídio terá sua pena diminuída. Todas elas dizem respeito a pessoa do agente, possuindo assim natureza subjetiva. Primeiramente, fala-se do motivo de relevante valor social, que diz respeito a um interesse da coletividade. Em um segundo momento, destaca-se o relevante valor moral, que se relaciona ao sujeito ativo, considerando um motivo nobre que não causa reprovação. Por fim, tem-se o domínio de violenta emoção, em que o agente se encontra totalmente dominado, não sendo apenas influenciado.
Para Pantolfi “há circunstâncias que tornam o ato mais grave, e consequentemente aumentam o “quantum” da pena a ser aplicada; como há também circunstâncias que o privilegiam, o que abranda a combinação de penas. ” (PANTOLFI, 2018). Essas diferentes e específicas atribuições designam se cabe ou não aceitar a existência de circunstâncias que podem atenuar a pena, privilegiadoras.
Para configurar-se a privilegiadora é necessário também que o crime tenha ocorrido logo após injusta provocação da vítima, conforme ensinamentos de Cunha (v.8, p.75):
A provocação trazida pelo parágrafo em comento não traduz, necessariamente, agressão, mas compreende todas e quaisquer condutas incitantes, desafiadoras e injuriosas. Pode, inclusive, ser indireta, isto é, dirigida contra terceira pessoa ou até contra um animal. (CUNHA, 2010. p. 75)
É importante ressaltar que, caso o homicídio privilegiado seja reconhecido, a pena será obrigatoriamente reduzida e tal privilégio será incomunicável, conforme o artigo 30 do Código Penal.
2.3. Homicídio em sua forma qualificada
O homicídio qualifica-se mediante as circunstâncias objetivas e subjetivas utilizadas pelo agente no momento da prática do crime. As qualificadoras objetivas relacionam-se aos meios utilizados na execução, enquanto as subjetivas tratam das possíveis motivações.
Destaca-se que o homicídio qualificado, em todas as suas formas, é considerado hediondo, conforme a Lei 8.072 de 1990. O crime hediondo é aquele considerado de extrema gravidade, que apresenta motivos ainda mais repugnantes, recebendo assim tratamento diferenciado e mais rigoroso em comparativo a outros crimes e infrações penais. Nesse sentido, Souza explicita:
A Lei nº. 8.072/1990 trouxe um rol específico de crimes em seu artigo 1º: latrocínio (artigo 157, parágrafo 3º, in fine); extorsão qualificada pela morte (artigo 158, parágrafo 2º), extorsão mediante sequestro e na forma qualificada (artigo 159, caput e parágrafos 1º e 2º); estupro (artigo, 213, caput, e sua combinação com o artigo 223, caput, e parágrafo único); epidemia com resultado morte (artigo 267, parágrafo 1º); envenenamento de água potável ou de substancia alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte (artigo 270, combinado com o artigo 285), todos do Código Penal, e o genocídio (artigos 1º, 2º e 3º da Lei 2.889/56), tentados ou consumados.
Foi acrescentado poucos anos depois:
Portanto, a Lei nº. 8.930/1994 incluiu no rol dos crimes hediondos o homicídio simples executado em atividade típica de grupo de extermínio e o homicídio qualificado, em todas as suas hipóteses, (SOUZA, 2014, P.15)
Esta modalidade de crime geralmente repercute no clamor público de forma muito intensa e ascende discussões ardorosas. Os fatos relacionados a esta modalidade são articulados a práticas que a sociedade recrimina, reprova e julga reproduzindo a prática jurisprudencial, que segundo Silva:
Entendem-se como crimes hediondos aqueles considerados de extrema gravidade que, devido a sua natureza, recebem tratamento diferenciado, com mais rigor em relação às demais infrações penais. Como já dito, são, também, insuscetíveis de graça, indulto ou anistia. Os crimes hediondos afetam, ainda, a dignidade da pessoa humana e agem em desrespeito aos valores coletivos. (SILVA, 2018, p.1)
Esses valores citados por Silva representam o anseio coletivo pelo gozo de um direito primeiro e essencial, teoricamente assegurado pela legislatura pátria: o direito à vida. E a forma grotesca como esse direito repercute quando é interrompido afeta não somente a vítima, mas toda uma sociedade.
2.4. Homicídio na forma culposa
O homicídio culposo é aquele em que o agente age com imprudência, negligência ou imperícia, deixando de empregar atenção ou diligência do que era capaz, provocando através de sua conduta o resultado lesivo morte previsto ou previsível, porém que não era aceito ou desejado (SANCHES, 2016).
Por imprudência, entende-se que o agente agiu de maneira afoita e sem os cuidados necessários, enquanto que na negligencia há uma omissão, uma ausência de precaução. Por fim, na imperícia o criminoso tem falta de aptidão técnica para o exercício de arte ou profissão, não possuindo um conhecimento especifico (SANCHES, 2016).
Para se configurar um crime de homicídio culposo é indispensável que exista uma aferição da previsibilidade do agente. Caso o fato escape totalmente a sua previsibilidade, o resultado não poderá lhe ser atribuído, mas sim o caso fortuito ou força maior. Importante ressaltar também que, não cabe a tentativa no homicídio culposo. Nesse sentido, ensina Cleber Masson:
“Lembre-se que o crime culposo (salvo em relação à culpa imprópria) é incompatível com a tentativa. Com efeito, é impossível conceber a não produção de um resultado naturalístico indesejado por circunstâncias alheias à vontade do agente. O dolo da tentativa, como se sabe, é idêntico ao dolo da consumação. E no crime culposo não há dolo. (MASSON, 2018, p.74).
O homicídio culposo, conforme o Código Penal determina, terá sua pena aumentada de um terço caso o agente cause o crime por desleixo, desídia no exercício de uma profissão. Também ocorrerá esse aumento, caso o agente após o cometer o crime não preste socorro imediato à vítima, não procure diminuir as consequências do seu comportamento ou fuja para evitar sua prisão.
Diferentemente do homicídio doloso, no culposo há a possibilidade da aplicação do perdão judicial, que é uma causa de extinção de punibilidade, baseado no fato de que penalizar o agente seria desnecessário já que o próprio crime cometido o pune, conforme leciona Rogerio Sanches:
Perdão judicial é o instituto pelo qual o juiz, não obstante a prática de um fato típico e antijurídico por um sujeito comprovadamente culpado, deixa de lhe aplicar, nas hipóteses taxativamente previstas em lei, o preceito sancionador cabível, levando em consideração determinadas circunstancias que concorreram para o evento. Em casos tais, o Estado perde o interesse de punir. (CUNHA, 2016, p.89).
Conclui-se assim que a intencionalidade não é aferida ao homicídio culposo sendo a culpa atribuída inconscientemente e as causas que conduziram à sua prática são atribuídas a negligência, imprudência ou imperícia. Esta concepção assim o difere do homicídio doloso, pois neste a intenção de matar aparece como qualificadora. É nesta última classificação que se encontra a tipologia selecionada como objeto do estudo: o Feminicídio.
3 O CRIME DE FEMINICÍDIO
O crime de Feminicídio originou-se em uma proposta do Grupo Especial Contra Violência Doméstica contra a mulher (GEVID) do Ministério Público de São Paulo, baseando-se no fato de que o número de mulheres assassinadas no Brasil apresentava enorme crescimento e a legislação da época era insuficiente para regular o assunto. Uma comissão parlamentar mista de inquérito sobre a violência contra a mulher (CPMI–VCM) foi instaurada para verificar as políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres, nos 26 Estados brasileiros e no Distrito Federal, de março de 2012 a julho de 2013. No relatório final apresentado consta mais de mil páginas e está disponível para acesso ao público no site do Senado, onde em sua conclusão apresentou diversas recomendações direcionadas a entes e órgãos, para prevenir e combater tamanha violência contra a mulher
O Feminicídio conceitua-se como o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher (MASSON, 2018). O homicídio contra a mulher, em razão apenas justificada no sexo feminino, por ela pertencer a esta categoria. Tornou-se crime de homicídio na modalidade qualificada pela Lei 13.104/2015, que incluiu o inciso VI ao parágrafo 2º e o parágrafo 7º, apart.121 do Código Penal brasileiro.
Suas motivações mais comuns, de acordo com artigo produzido pela ONU Mulheres, são: o ódio, o desprezo ou o sentimento de perda do controle e da propriedade sobre as mulheres, comum em sociedades marcadas pelo machismo, onde há uma desigualdade cultural explícita entre homens e mulheres.
O parágrafo segundo do artigo supracitado é uma norma penal explicativa interpretativa que indica em quais casos considera-se que há razões da condição do sexo feminino (MASSON, 2018).
A primeira, diz respeito a violência doméstica e familiar, quando o homicídio for resultante de, ou juntamente com violência doméstica e familiar, praticada por cônjuge ou qualquer outro familiar da vítima. Por fim, a segunda, que diz respeito ao menosprezo ou discriminação a condição de mulher, onde o Feminicídio como um crime de ódio a mulher, onde o criminoso trata a mulher como um ser inferior. Nesse sentido, pontua Eleonora Menicucci, ministra chefe da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência (SPM-PR):
“Trata-se de um crime de ódio. O conceito surgiu na década de 1970 com o fim de reconhecer e dar visibilidade à discriminação, opressão, desigualdade e violência sistemática contra as mulheres, que, em sua forma mais aguda, culmina na morte. Essa forma de assassinato não constitui um evento isolado e nem repentino ou inesperado; ao contrário, faz parte de um processo contínuo de violências, cujas raízes misóginas caracterizam o uso de violência extrema. Inclui uma vasta gama de abusos, desde verbais, físicos e sexuais, como o estupro, e diversas formas de mutilação e de barbárie. ”
Consoante o Mapa da Violência 2015 (Cebela/Flacso), entre 1980 e 2013, 106.093 brasileiras foram vítimas de assassinato. Somente em 2013, foram 4.762 assassinatos de mulheres registrados no Brasil – ou seja, aproximadamente 13 homicídios femininos diários. Demonstrou também que esse número crescendo cada vez mais, já que segundo o mesmo, de 2003 a 2013, o número de vítimas do sexo feminino aumentou de 3.937 para 4.762, ou seja, mais de 21% na década.
Diante de tantas constatações, o Congresso Nacional aprovou a Lei De Feminicidio que enquadra o crime como uma qualificadora do Homicídio e também em crime Hediondo, apresentando maior pena e também as denominadas causas de aumento, para quem o comete.
Dentre as causas de aumento, está previsto na lei que a pena será aumentada de um terço até metade se no momento do crime a vítima estiver grávida ou nos três meses posteriores ao parto, o que demonstra uma reprovabilidade maior da conduta. A segunda causa de aumento, refere-se ao crime cometido contra a vítima menor de catorze anos, maior de sessenta, com deficiência ou portadora de doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental.
Tais condições demonstram uma fragilidade maior do sujeito passivo, o que torna mais abominável o crime, diante da covardia do sujeito ativo, e consequentemente aumenta sua pena. Na terceira causa de aumento, o legislador incriminou de maneira mais severa quando o Feminicídio é cometido na presença física ou virtual de descendente ou ascendente da vítima, fundamentando-se no intenso sofrimento causando a aqueles que presenciaram e também o quanto tal fato irá gerar graves transtornos psicológicos (MASSON 2018).
Por fim, a quarta e última causa de aumento diz respeito ao crime cometido concomitantemente com o descumprimento das medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006), em seus incisos I, II e III do caput do art.22 (incluído pela Lei nº13.771, de 2018). Nesse sentido, pontua a Lei nº 11.340:
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
I –Suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II - Afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - Proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) Aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) Contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) Frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
Sendo assim, justifica-se a causa de aumento no fato do assassino já ter sido penalizado em outra lei e ainda assim descumpri-la e cometer o crime de Feminicídio, o que demonstra desprezo do mesmo pelas leis e pela punibilidade.
3.1 Feminicídio e transexualidade
O referido crime, como conceituado anteriormente, caracteriza-se como o homicídio contra a mulher em razão do sexo feminino. No entanto, o leque de sujeitos passivos que podem compor esse tipo de crime é mais extenso do que se imagina. Neste sentindo, leciona Cezar Roberto Bitencourt:
“O substantivo mulher abrange, logicamente, lésbicas, transexuais e travestis, que se identifiquem como do sexo feminino. Além das esposas, companheiras, namoradas ou amantes, também podem ser vítimas desse crime filhas e netas do agressor, como também mãe, sogra, avó ou qualquer outra parente que mantenha vinculo familiar com o sujeito passivo”. (BITENCOURT, 2019, p.100).
Portanto, é necessário desmistificar a ideia de que apenas a esposa ou companheira do sujeito ativo poderia ser vítima de Feminicídio. Comumente, o sujeito passivo deste crime é uma pessoa do sexo feminino, devendo o crime ser cometido por razão de sua condição de gênero ou em situação de violência doméstica ou familiar, segundo ensinamentos de Bitencourt: “Via de regra, uma mulher, ou seja, pessoa do sexo feminino, e que o crime tenha sido cometido por razões de sua condição de gênero, ou que ocorra em situação caracterizadora de violência doméstica ou familiar”. (BITENCOURT, 2019, p. 100).
Um ponto bastante polêmico e que merece um maior destaque, é a inclusão de mulheres transexuais como vítimas de Feminicídio, ainda na visão de Bitencourt vejamos:
“No entanto, uma questão, outrora irrelevante, na atualidade mostra-se fundamental e precisa ser respondida: quem pode ser considerada mulher para efeitos da tipificação da presente qualificadora? Seria somente aquela nascida com anatomia de mulher ou também quem foi transformado cirurgicamente em mulher, ou algo similar? ” (BITENCOURT, 2019, p.100).
Assim, neste momento, antes de adentrar no mérito do artigo, faz-se necessário conceituar a transexualidade. Inicialmente considerada um transtorno, os indivíduos que não apresentavam adequação de sexo/gênero eram considerados doentes pela Associação Americana de Psiquiatria e pela Organização Mundial da Saúde, estando a transexualidade diagnosticada em seus instrumentos avaliativos, DSM e CID, desde 1980. Avaliada assim como distúrbio, precisava constar nesta Classificação Estatística Internacional de Doenças, e ser apresentada mediante um código que a tipificasse como doença diagnosticada, para que tivesse validade legal (BENTO, 2012).
O comitê responsável por reformular o Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM-IV) em 1994, substituiu o diagnóstico de "Transexualidade" pelo de "Transtorno de Identidade de Gênero" (BENTO,2012). A transexualidade passou a ser considerada, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como sendo “uma incongruência acentuada e persistente entre o gênero experiente de um indivíduo e o sexo atribuído ao mesmo” (CID 11).
Segundo os princípios de Yogyakarta, que versam sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero, o modo como a identidade de gênero de uma pessoa deve ser entendida vai além de aspectos físicos e visíveis que ela queira modificar (pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos, ou outros), inclusive o modo de vestir-se, o modo de falar e maneirismos”(YOGYAKARTA, 2007).
O direito à readequação de gênero está prescrito legalmente, já que está embasado nos direitos constitucionais da liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana, além do direito da personalidade, não sendo admitida qualquer discriminação ou exclusão de direitos e proteção perante a lei.Neste sentido, antes de explanar a possibilidade da inclusão das mulheres transexuais, como vítimas de Feminicídio, além de apresentar jurisprudências nesse sentido, faz-se necessário conceituar a transexualidade.
Quando um indivíduo repele sua identidade genética, inclusive sua própria anatomia de gênero, o que leva o mesmo a um desejo de redesignação sexual ou feminilização/masculinização, é caracterizado como transexual.
Conforme conceitua Jaqueline Gomes de Jesus, em seu livro Orientações sobre Identidade de Gênero:
“Cada pessoa transexual age de acordo com o que reconhece como próprio de seu gênero: mulheres transexuais adotam nome, aparência e comportamentos femininos, querem e precisam ser tratadas como quaisquer outras mulheres. Homens transexuais adotam nome, aparência e comportamentos masculinos, querem e precisam ser tratados como quaisquer outros homens. ” (JESUS, p. 15, 2012).
Sendo assim, é evidente que o respeito ao homem transexual e à mulher transexual, nasce a partir do momento em que ocorre uma aceitação em todas as esferas da vida do mesmo, seja familiar, social, profissional, cível e jurídica.
4. TRANSGÊNEROS, TRANSEXUAIS E TRAVESTIS
Antes de fazer a explanação desses termos, e, consequentemente a diferenciação dos seus conceitos, é necessário distinguir orientação sexual e identidade de gênero. Um dos complexos entraves para o entendimento desse tema é justamente sua subjetividade em relação a seus conceitos, entender a construção desse novo sujeito social, que reivindica sua inclusão na esfera dos direitos, requer uma definição melhor construída, justamente para pautar sua reivindicação por amparo legal.
Trazendo o foco para o sujeito do estudo concorda-se aqui com Araújo e Penna ao sintetizar: “A identidade de gênero diz respeito à percepção subjetiva de ser masculino ou feminino, ao senso de pertencimento a um ou outro gênero. ”. Aqui se reivindica o direito de a mulher transexual ser reconhecida a partir dessa identidade de gênero que adotou, do gênero a qual se sente pertencer.
O autor resume ainda que “A orientação sexual está relacionada ao afeto, desejo. Trata-se do sexo do indivíduo ao qual a pessoa se sente atraída”. E se estende diferenciando importantes aspectos para atender as atuais classificações de orientação sexual:
A identidade sexual refere-se a duas questões diferenciadas: por um lado, é o modo como a pessoa se percebe em termos de sua orientação sexual, ao sexo das pessoas que elege como objetos de desejo e afeto; por outro lado, é o modo como ela torna pública, ou não, essa percepção de si em determinados ambientes e situações. A orientação sexual não é uma escolha livre e voluntária; porém, sua publicização o é. Assumir-se como gay, lésbica ou bissexual, seja perante amigos e familiares, seja em contextos mais públicos, representa uma afirmação de pertencimento e uma tomada de posição crítica diante das normas sociais (ARAÚJO, PENNA, 2014, p. 136)
Atualmente, são reconhecidos os seguintes tipos de orientação sexual: homossexualidade, heterossexualidade, bissexualidade, assexualidade e pansexualidade de acordo com o Manual de Comunicação LGBT, que baseado na “definição contida nos Princípios de Yogyakarta, princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero” sintetiza:
Basicamente, há três orientações sexuais preponderantes: pelo mesmo sexo/gênero (homossexualidade), pelo sexo/gênero oposto (heterossexualidade) ou pelos dois sexos/gêneros (bissexualidade). (...) (pansexualidade) termo polêmico que se refere a pessoas cujo desejo sexual é abrangente, podendo se dirigir inclusive a objetos. (ABGLT, 2010, p. 12)
É importante enfatizar que a orientação sexual não designa necessariamente uma identidade de gênero, pois esta última independe da percepção afetiva do sujeito para com os outros e está sim voltada da percepção dele em relação a si mesmo, corresponde à maneira como o indivíduo se reconhece com relação ao seu gênero, podendo não ter relação com seu sexo biológico ou sua orientação sexual, corresponde à forma como o indivíduo se identifica. Segundo Jaqueline Gomes de Jesus:
“Sexo é biológico, gênero é social. E o gênero vai além do sexo: O que importa, na definição do que é ser homem ou mulher, não são os cromossomos ou a conformação genital, mas a auto percepção e a forma como a pessoa se expressa socialmente. ” (JESUS, p.06, 2012).
Com tanta complexidade na inferência de aspectos ligados a sexualidade de cada um, muitos termos novos aparecem para designar diferentes sujeitos, formados nesse processo de reconhecimento identitário social, que de acordo com Jesus, em relação à expressão de gênero, podem ser classificados:
Cisgênero Conceito “guarda-chuva” que abrange as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento. Transgênero Conceito “guarda-chuva” que abrange o grupo diversificado de pessoas que não se identificam, em graus diferentes, com comportamentos e/ou papéis esperados do gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento. (JESUS, 2012, p. 15)
Inclui-se no termo transgênero um grupo diversificado de pessoas, que se expressam socialmente e se reconhecem divergentemente do órgão sexual de nascimento. Podemos ainda, classificar os transgêneros como transexuais e travestis. Já as travestis, que preferem ser tratadas no feminino, expressam uma feminilização, no entanto mantém o órgão original de nascença. Para Larissa Pelúcio, as travestis são:
“ Pessoas que nascem com o sexo genital masculino [...] e que procuram inserir em seus corpos símbolos do que é socialmente sancionado como feminino, sem, contudo, desejarem extirpar sua genitália, com a qual, geralmente, convivem sem grandes conflitos” (PELUCIO, 2006, p.3-4,).
Portanto, as mesmas apresentam uma “ambiguidade”, assumindo ambos os gêneros, mas sem apresentarem maiores conflitos em relação ao gênero biológico. Feita essa distinção sobre as formas de expressão de gêneros, é possível identificar com clareza a posição ocupada pelos transexuais.
4.1. Mulheres transexuais como vítimas do Feminicídio
A lei 13.104/2015 conceitua o Feminicídio como o assassinato de uma mulher por razões da condição de sexo feminino, e, embora, a palavra gênero não conste nesse conceito, a definição deve ir muito além de um conceito biológico ou do sexo de nascimento.
Conforme ensinamentos de Sanematsu:
“Para entender o que é o feminicídio é necessário compreender o que é a violência de gênero, já que o crime de feminicídio é a expressão extrema, final e fatal das diversas violências que atingem as mulheres em sociedades marcadas pela desigualdade de poder entre os gêneros masculino e feminino e por construções históricas, culturais, econômicas, políticas e sociais discriminatórias. ” (PRAZO, SANEMATSU, 2017, p-10).
A Mulher transexual, adota nome, possui aparência e comportamentos femininos, possuindo, portanto, a condição do gênero que define o sujeito passivo do crime de Feminicídio. No entanto, torna-se necessário um critério jurídico, para cumprimento da segurança jurídica indispensável no Direito, qual seja um registro oficial, que, nitidamente expresse o sexo feminino da vítima, podendo assim, ser considerada sujeito passivo do Feminicídio. Neste sentido dispõe Cezar Roberto Bitencourt:
“Na atualidade, com essa diversificação dos espectros sexuais, para fins penais, precisa-se mais do que simples critérios biológicos ou psicológicos para definir-se o sexo das pessoas, para identifica-las como femininas ou masculinas. Por isso, quer nos pareceres que devemos nos socorrer de um critério estritamente jurídico, por questões de segurança jurídica em respeito à tipicidade estrita, sendo insuficiente simples critérios psicológicos ou biológicos para definir quem pode ser sujeito passivo desta novel qualificadora”. (BITENCOURT, 2019, p.103).
Em mesmo sentido, Rogério Greco traz as circunstâncias especiais onde a mulher transexual passa a ser considerada pessoa do sexo feminino para o mundo jurídico, podendo então se tornar vítima do crime de Feminícidio, vejamos:
“Aqui pode ocorrer que a vítima tenha nascido com o sexo masculino, havendo tal fato constado expressamente de seu registro de nascimento. No entanto, posteriormente, ingressando com uma ação judicial, vê sua pretensão de mudança de sexo atendida, razão pela qual, por conta de uma determinação do Poder Judiciário seu registro original vem a ser modificado, passando a constar, agora como pessoa do sexo feminino. Somente a partir desse momento é que poderá, segundo nossa posição, ser considerada como sujeito do feminicídio. Assim, concluindo, das três posições possíveis, somente este último nos traz a segurança necessária para efeitos de reconhecimento do conceito de mulher” (GREGO, 2019, 44).
O Feminicídio é uma norma penal incriminadora, e sua interpretação deve ser feita da forma mais restrita possível. Uma ampliação indevida, considerando critérios subjetivos, afrontaria o princípio da legalidade, podendo ocorrer uma condenação arbitrária, sem o devido enquadramento no expressamente previsto em lei.
Percebe-se, de acordo com a doutrina majoritária, que há exigência de uma formalidade jurídica para que a mulher transexual possa ser considerada sujeito passivo do crime de feminicídio, que seria a modificação do registro de nascimento que faça constar a qualidade de sexo feminino, preservando assim a segurança jurídica do referido tipo penal.
Aqui deve ser lembrado o projeto de Lei do Senado, nº 191/2017, de autoria do Senador Jorge Viana (PT/AC), que propôs a alteração do artigo 2º da Lei Maria da Penha (lei 11.340/2006), garantindo às mulheres oportunidades para viver uma vida sem violência, independente da identidade de gênero, encontra-se em tramitação, tendo sido aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania – CCJ dia 22/05/2019.
Por outro lado, nota-se que a jurisprudência, mesmo admitindo se tratar de questão complexa, já vem se posicionando no sentido de amparar essas mulheres, respeitando a condição de feminilidade das mesmas, a maneira como elas se comportam perante a sociedade, mostrando-se favorável à aceitação dessas mudanças sociais de gênero, resguardando a proteção jurídica cabível nas demandas que lhes são apresentadas.
A título de exemplo, recentemente, mais precisamente em 08 de agosto de 2019, a 3ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, manteve denúncia do Ministério Público, no processo 20180710019530RSE, contra réus por tentativa de Feminicídio contra mulher transexual.
Nesta ocasião, os réus interpuseram recurso alegando que a vítima se tratava de mulher transgênero e, biologicamente, portanto, não pertencia ao sexo feminino. Ao analisar o referido recurso, os Desembargadores entenderam que há indícios suficientes de que o crime foi motivado por ódio à condição de transexual da vítima, caracterizando menosprezo e discriminação ao gênero feminino adotado por ela, admitindo, portanto, que o sujeito passivo do crime de feminicídio deve abarcar a mulher transexual, julgando improcedente o recurso.
Vejamos o entendimento do Desembargador relator Waldir Leôncio Lopes Junior em seu voto:
“(...) Não se pode deixar de considerar a situação de dupla vulnerabilidade a que as pessoas transgêneros femininas, grupo ao qual pertence a ofendida, são expostas "por um lado, em virtude da discriminação existente em relação ao gênero feminino, e de outro, pelo preconceito de parte da sociedade ao buscarem o reconhecimento de sua identidade de gênero"
A questão é complexa e a jurisprudência, sobre a figura do feminicídio, ainda está em construção, notadamente quando se trata de crime cometido por razões de característica do sexo feminino, envolvendo menosprezo ou discriminação à condição de mulher, fora do contexto da violência doméstica e familiar. Para os Tribunais pátrios, a amplitude que se deve dar ao sujeito passivo do tipo penal do feminicídio é tema ainda mais recente, revelando o ineditismo da matéria. Na espécie, a inclusão da qualificadora do feminicídio decorreu do fato de o crime ter sido praticado (fl. 2B), "por ódio à condição de transexual de Jéssica", uma vez que, enquanto os acusados
Assim, malgrado os fatos descritos na denúncia não se tratarem de violência praticada no âmbito doméstico e familiar, a imputação do feminicídio se deveu ao menosprezo ou discriminação à condição de mulher trans da ofendida (inciso II do §2º-A do art. 121 do CP), extraídos da conduta delitiva preconceituosa atribuída aos réus. Diante disso, os indícios da presença da qualificadora estão, em tese, fundamentados no acervo probatório. ”
Outra questão que merece destaque a respeito do que se tem entendido nos tribunais quanto ao reconhecimento das mulheres transexuais, como vítimas de crimes antes cometidos somente contra mulheres de sexo biológico feminino, é o que se discute no processo de Conflito de Jurisdição nº: 0032035-86.2018.8.26.0000, da Comarca de São Paulo, no Voto nº: 17979, onde o Juiz ISSA AHMED, afirmou:
“De acordo com Maria Berenice Dias, “No que diz com o sujeito passivo, ou seja, a vítima da violência há a exigência de uma qualidade especial: ser mulher. Assim, lésbicas, transexuais, travestis e transgêneros, que tenham identidade social com o sexo feminino estão sob a égide da Lei Maria da Penha”. Nesse sentido já se pronunciou esta Corte de Justiça, ao decidir pela aplicação das medidas protetivas da lei em comento a indivíduo biologicamente do sexo masculino, mas com nome social feminino, que sofreu agressões de ex-companheiro. Colha-se trecho do v. acórdão de lavra da Excelentíssima Desembargadora Ely Amioka: “Assim é que a Lei nº 11.340/06 não visa apenas a proteção à mulher, mas sim à mulher que sofre violência de gênero (...). Tem-se que a expressão “mulher”, contida na lei em apreço, refere-se tanto ao sexo feminino quanto ao gênero feminino. O primeiro diz respeito às características biológicas do ser humano (...) enquanto o segundo se refere à construção social de cada indivíduo (...). ” No caso em exame, muito embora a vítima seja biologicamente do sexo masculino, sua identidade está assentada no gênero feminino, tanto que ostenta nome social deste gênero. Dessa forma, em prestígio ao princípio da dignidade da pessoa humana, deve ser reconhecida sua identificação com o gênero feminino e a consequente vulnerabilidade no relacionamento amoroso, compatível com a ratio legis invocada, em razão da dominação do gênero masculino sobre o feminino, fazendo incidir, na apuração supostas lesões sofridas, a Lei n. 11.340/06.
Importante ressaltar ainda, no que diz respeito ao reconhecimento da condição de gênero adotado pela mulher transexual, Raquel Dodge, à época Procuradora Geral da República, em parecer da ADPF 527/DF, proposta pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais ao Supremo Tribunal Federal, onde manifestou-se favorável ao reconhecimento de manifesta violação aos direitos da dignidade da pessoa humana e da personalidade, ao manter essas mulheres presas em estabelecimento prisional incompatível com sua identidade de gênero, e que as mesmas deveriam cumprir pena somente em unidade prisional feminina, conforme se ver:
EMENTA: PROCESSO CONSTITUCIONAL. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. ART. 102, IX, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CONCEITO DE “CLASSE”. REVISITAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ACESSO DE GRUPOS VULNERÁVEIS E MINORIAS À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL. CABIMENTO. CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL NA INTERPRETAÇÃO DE ATO NORMATIVO FEDERAL. LESÃO A PRECEITOS FUNDAMENTAIS. CONTRARIEDADEÀ JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. VIABILIDADE DA ADPF. PARÂMETROS DE ACOLHIMENTO DA PESSOA TRANSGÊNERO NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO. NEGATIVA DE RECONHECIMENTO DA IDENTIDADE DE GÊNERO. DIREITO À IDENTIDADE INVIDUAL E SOCIAL. DIREITOS DA PERSONALIDADE. VIOLAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DA PROIBIÇÃO DE TRATAMENTO DESUMANO OU DEGRADANTE, E DOS DIREITOS À IGUALDADE, À NÃO-DISCRMINAÇÃO, À SAÚDE E À SEGURANÇA PESSOAL DA PESSOA TRANSGÊNERO. CARACTERIZAÇÃO.
3. A manutenção de mulheres transexuais e de travestis identificadas socialmente com o gênero feminino em estabelecimento prisional incompatível com sua identidade de gênero contraria diversos preceitos fundamentais inscritos na Constituição Federal e em compromissos internacionais assumidos pela República Federativa do Brasil, em especial a dignidade da pessoa humana, a igualdade, a não-discriminação, a saúde, a segurança pessoal e os direitos da personalidade da pessoa transgênero, justificando a imediata intervenção do Supremo Tribunal Federal para fazer cessar o quadro de violação de direitos humanos. - Parecer pelo conhecimento da ação e pelo deferimento da medida cautelar.
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 527/DF.
Ao analisarmos o parecer proferido na ADPF 527/DF, demonstra-se o reconhecimento à condição de vulnerabilidade das mulheres transexuais devido à condição de gênero feminino por elas adotado, com intuito de amparo à essas mulheres que se encontram presas em estabelecimento prisional incompatível com essa condição de feminilidade assumida por elas perante o meio social, violando os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da personalidade.
Portanto, é perceptível que, na doutrina majoritária o sujeito passivo do crime de feminicídio abrange também as mulheres transexuais vítimas de violência doméstica ou familiar, ou em situação de menosprezo e discriminação à condição de gênero feminino adotado por ela, desde que possua a mudança do registro civil constando a condição de sexo feminino da mesma.
Perceptível também nas decisões jurisprudenciais aqui demonstradas, a tendência dos julgadores em aceitar a possibilidade de amparo das mulheres transexuais no polo passivo do crime de feminicídio, sendo este cometido pela condição de gênero feminino que a vítima adota socialmente, devendo ser protegida juridicamente em patamar de igualdade à mulher biológica.
5. CONCLUSÃO
Com base no que foi apresentado, conclui-se que a lei 13.104/2015 e suas atualizações que tratam sobre o crime de Feminicídio são de extrema importância para consagrar a efetiva proteção para aquelas pessoas que são as principais vítimas do delito. O homicídio doloso contra mulher por razão das condições do sexo feminino encontra embasamento para sua aplicação no próprio princípio da isonomia, presente no art. 5º da Constituição Federal e se concretiza na igualdade material, já que a realidade atual do Brasil demonstra claramente que existe uma desigualdade de forças e cultural entre homens e mulheres.
O crime de Feminicídio, por caracterizar-se como o homicídio contra a mulher em razão do sexo feminino, pode incluir as mulheres transexuais em seu polo passivo. A identidade de gênero de uma pessoa corresponde à maneira como o indivíduo se reconhece com relação ao seu gênero, podendo não ter relação com seu sexo biológico ou sua orientação sexual.Nos casos em que a vítima, mesmo sendo do sexo masculino, tem sua identidade enraizada no gênero feminino, ostentando um registro oficial, nitidamente expressando o sexo feminino da vítima, poderá ser o sujeito passivo imputado no crime de Feminicídio.
Como demonstrado, já existem julgados no sentido de incluir as mulheres transexuais como vítimas do crime de Feminicídio, no entanto, tal avanço não está ocorrendo no ritmo necessário para a atual conjuntura social, na qual os casos de preconceito e crimes sofridos pelas mulheres transexuais aumentam a cada dia, devendo os legisladores incluírem essas pessoas na proteção que lhes é devida pela condição de vulnerabilidade em que se encontram, desmistificando o conceito de mulher como sendo apenas aquela que nasce com o sexo biológico feminino, mas também aquela que para o mundo jurídico e social se comporta e apresenta como mulher detentora de todos os direitos inerentes à pessoa humana.
REFERÊNCIAS
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[i] Professor, Mestre e Orientador deste artigo. Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/1311527371890806
Bacharelanda do Curso de Direito pela UNIFSA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, BRUNA CRISTINA VIEIRA DE. A mulher transexual como vítima do crime de feminicídio Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 dez 2019, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53964/a-mulher-transexual-como-vtima-do-crime-de-feminicdio. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: LEONARDO DE SOUZA MARTINS
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Por: BRUNA RAPOSO JORGE
Por: IGOR DANIEL BORDINI MARTINENA
Por: PAULO BARBOSA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO
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