Com o aumento das práticas criminosas que envolvem a movimentação de material entorpecente tornou-se cada vez mais comum as estampas jornalísticas que anunciam a prisão de agentes delitivos – sobretudo menores infratores - aliada a apreensão de farto material tóxico como crack, cocaína e maconha, num contexto fático em que envolve, no mais das vezes, comunidades carentes, armas de fogo de grosso calibre e instrumentos comunicadores personalizados com iniciais e adesivos que fazem referência à facção pertencente e ao time de futebol de preferência.
Neste contexto, o script operacional é recorrente: jovem, negro, de estatura mediana, preso (ou apreendido) no interior de comunidade dominada pelo tráfico de drogas, portando pequena quantidade de material entorpecente, camisa de time de futebol, um celular, quantia em dinheiro e camisa de time de futebol.
Imputação ministerial: tráfico de drogas e associação para o tráfico. Sentença do juízo de custódia: converto a prisão em flagrante delito em prisão preventiva, para garantia da ordem pública, ordem econômica, conveniência da instrução criminal e gravidade do delito cometido.
A cena é real, recorrente e representa grande parte do “acervo carcerário” brasileiro, pautado em prisões preventivas descompromissadas com a comprovação de requisitos demasiadamente genéricos para decretação da restrição cautelar, tangenciando prisões e apreensões obscuras em que, na maior parte das vezes, o único material probatório é o testemunho dos agentes policias que promoveram a abordagem.
Desta forma, importante refletir acerca de um dos delitos de maior recorrência nas denúncias ministeriais, quase sempre aliado ao tráfico ilegal de drogas verificado no contexto preteritamente explanado, numa espécie de “venda casada suburbana”, a associação para o tráfico, previsto no art. 35 da Lei 11.343/06, in verbis:
Art. 35. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º , e 34 desta Lei:
Parágrafo único. Nas mesmas penas do caput deste artigo incorre quem se associa para a prática reiterada do crime definido no art. 36 desta Lei.
Não é necessário epopeico esforço interpretativo para perceber que uma das elementares do tipo penal em comento é a associação de pessoas para a venda de drogas. Isto é, não é associação para o tráfico se não houver a intenção de traficar, irrelevante a reiteração ou não da conduta.
Outra elementar apreciada é a pluralidade de agentes para constituir a associação. Logo, não há como se associar consigo próprio.
Contudo, não se faz necessária a menção na redação dos tipos penais caracterizados pelo agrupamento de agentes para cometer práticas delitivas de que tais agrupamentos necessitam ser estáveis e permanentes, não sendo necessária a efetiva prática dos delitos pretendidos, desde que esteja presente o dolo específico, o animus dos agentes de associarem-se, de forma estável e permanente, para cometer crimes – no caso em tela, o tráfico de drogas -, sendo irrelevante a duração da associação e a divisão de tarefas e funções.
Neste sentido, Cezar Roberto Bitencourt:
“Estabilidade e permanência são, por sua vez, duas características específicas, próprias e identificadoras de uma associação criminosa. A demonstração de sua estabilidade e permanência é imprescindível para a aptidão e validade de uma denúncia por esse tipo de crime. Nessa mesma linha, destaca Regis Prado, com acerto, que não basta para o crime em apreço um simples ajuste de vontades. Embora seja indispensável, não é suficiente para caracterizá-lo. É necessária, além desse requisito, a característica da estabilidade. No mesmo sentido, pontificava Hungria que “a nota de estabilidade ou permanência da aliança é essencial. Não basta, como na ‘cooparticipação criminosa’, um ocasional e transitório concêrto (sic) de vontades para determinado crime: é preciso que o acôrdo (sic) verse sobre uma duradoura situação em comum...” (grifo nosso)
Portanto, conforme já pontuado pelo Superior Tribunal de Justiça, no HC 462.888/RJ, de relatoria do Ministro Rogério Schietti, faz-se necessária a demonstração do elemento subjetivo do tipo, consubstanciado na “demonstração concreta da estabilidade e da permanência da associação criminosa”.
À vista disto, a mesma Corte Cidadã, recentemente, no HC 476.215/SC, de relatoria da Ministra Laurita Vaz, julgado em 26/11/19, apreciou situação semelhante àquela narrada no início de nossa explanação, em que foi promovida a busca no interior de um veículo, ato que resultou na localização de pequena quantidade de maconha.
Segue ementa da decisão:
HABEAS CORPUS. TRÁFICO E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA O ACESSO AOS DIÁLOGOS MANTIDOS NO WHATSAPP. DESNECESSIDADE. PACIENTE QUE INSERIU ESPONTANEAMENTE A SENHA DE DESBLOQUEIO DA TELA DO SEU CELULAR AOS AGENTES QUE O ABORDARAM. DILIGÊNCIAS INVESTIGATÓRIAS REALIZADAS PELA POLÍCIA MILITAR. USURPAÇÃO DAS ATRIBUIÇÕES DA POLÍCIA CIVIL. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE. INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS QUE NÃO DECLINARAM OBJETIVA E CONCRETAMENTE A ESTABILIDADE E PERMANÊNCIA DOS AGENTES PARA A PRÁTICA DA NARCOTRAFICÂNCIA. ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO (DOLO) NÃO INDICADO. ÔNUS QUE SE IMPÕE NO SISTEMA ACUSATÓRIO. CONFIGURAÇÃO DE MERA REUNIÃO OCASIONAL. ABSOLVIÇÃO QUANTO AO CRIME NO ART. 35 DA LEI N.º 11.343/06 DE RIGOR. ORDEM DE HABEAS CORPUS PARCIALMENTE CONCEDIDA.
Contudo, no caso narrado, o proprietário do veículo também teria franqueado o acesso de seu aparelho de telefone celular aos policias militares que promoveram a busca em seu automóvel, momento em que estes teriam constatado conversas das quais se extraíam informações sobre a venda de “loló” por parte do agente a um terceiro.
Nesta oportunidade, os policias teriam se deslocado até a residência do agente, local onde teriam sido localizadas balanças de precisão, materiais entorpecentes e embalagens para acondicionamento e possível venda posterior das drogas, bem como demais agentes que se evadiram do local com a chegada dos agentes policias.
Sendo este o fato narrado, o agente foi condenado pela prática do crime de tráfico de drogas (art.33) e associação para o tráfico (art.35), em razão da adoção do entendimento de que a situação fática exposta constitui material probatório suficiente para a demonstração da estabilidade e permanência da associação que haveria entre os agentes para o comércio ilegal de drogas.
Não obstante, em razoável análise técnico-jurídica, arredando os anseios sociais punitivas, a Corte Superior adotou o entendimento de que a descrição de mera reunião ocasional – conforme verificado no caso concreto -, não aponta com suficiente concretude o ímpeto dos agentes de se associarem para os fins tipicamente propostos, devaneando a hipótese de mero tráfico de drogas em concurso “eventual” de agentes.
A vista do exposto, reflexiona ignominiosa a necessidade de declarar a trivial necessidade de comprovar o elemento subjetivo específico nos crimes que possuem elementares subjetivas específicas, fato este que apresenta maior dislate nos crimes de associação, em razão da impossibilidade de se associar por acidente, por acaso, culposamente ou “sem querer”.
[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Associação criminosa e responsabilidade pelos crimes por ela praticados. Cezar Bitencourt Advogados Associados, 2018. Disponível em: http://www.cezarbitencourt.adv.br/index.php/artigos/46-associacao-criminosa-e-responsabilidade-pelos-crimes-por-ela-praticados. Acesso em: 10 dez. 2019.
[2] STJ. HABEAS CORPUS: HC 462.888/RJ. Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ. DJe 05/11/2018. JusBrasil, 2018. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/644113409/habeas-corpus-hc-462888-rj-2018-0197815-3/relatorio-e-voto-644113430?ref=serp. Acesso em: 10 dez. 2019.
[3] STJ. HABEAS CORPUS. HC 476.215/SC. Rel. Ministra Laurita Vaz. DJe 29/11/2019. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=MON&sequencial=103831884&num_registro=201802843302&data=20191129&tipo=0. Acesso em: 10 dez.2019.
Precisa estar logado para fazer comentários.