JOSÉ MARIO RAMOS CORREIA DE ARAÚJO[1]
(Coautor)
Resumo: O artigo visa trazer novas questões relativas ao debate do direito e literatura, trabalhando diferentes perspectivas na abordagem do tema. A ciência desenvolvida na relação entre estes dois campos do saber é de variada conceituação, no que se refere ao modo como devem ser tratados os textos literários e jurídicos, quando de sua análise. A metodologia utilizada no trabalho foi de revisão bibliográfica, a busca por autores expoentes, e conflitantes, como Posner e Dolin teve o intuito de demostrar as diferentes formas de caracterização do discurso jurídico. A obra O Processo, de Franz Kafka, foi utilizada como base para análises do contexto histórico e jurídico de determinado período, além de representar sensações humanas quando diante da institucionalidade judicial e trazer ensinamentos relativos ao conhecimento jurídico e sua atuação social, na perspectiva do autor. Conclui-se que a perspectiva plural, de cunho didático, serve para esclarecer a lei enquanto literatura, e a literatura presente na lei, demonstrando o ordenamento jurídico não somente de forma autopoiética, como também envolvido em seu contexto social.
Palavras-chave: Direito – Literatura – Kafka – Discurso jurídico
Abstract:The article aims to bring new issues regarding the debate of law and literature, working different perspectives when approaching the theme. The social sciences developed, in the relation between these two fields of knowledge, is of varied conceptualization, as regards the way in which the literary and juridical texts must be treated, during their analysis. The methodology used in the work was a bibliographical review, the search for exponents, and conflicting authors such as Posner and Dolin had the intention of demonstrating the different forms of characterization of legal discourse. Franz Kafka's work Der Prozeß was used as a basis to analyze the historical and juridical context of a given period, as well as representing human sensations when faced with judicial institutions and teaching about legal knowledge and its social influence from the perspective of the author. It is concluded that the plural perspective, of didactic nature, serves to clarify the law as literature, and literature present in the law, demonstrating the legal order not only in autopoietic form, but also involved in its social context.
Keywords: Law – Literature – Kafka – Legal discourse
Zusammenfassung: Der Artikel versucht neue Themen in Bezug auf die Debatte über Recht und Literatur zu bringen und unterschiedliche Perspektiven bei der Annäherung an das Thema zu behandeln. Die in der Beziehung zwischen diesen beiden Wissensgebieten entwickelte Wissenschaft ist hinsichtlich der Art und Weise, in der die literarischen und juristischen Texte behandelt werden müssen, in ihrer Analyse sehr unterschiedlich. Die in der Arbeit verwendete Methodik war eine bibliographische Überprüfung, die Suche nach Wissenschaftsexponenten, und widersprüchliche Autoren wie Posner und Dolin hatte die Absicht, die verschiedenen Formen der Charakterisierung des Rechtsdiskurses zu demonstrieren. Franz Kafkas Arbeit Der Prozeß diente als Grundlage für Analysen des historischen und juristischen Kontextes einer bestimmten Zeit, als auch für die Darstellung menschlicher Empfindungen vor Justizinstitutionen und für die Vermittlung juristischer Kenntnisse und ihrer sozialen Leistung aus der Sicht des Autors. Es wird zum Schluss angedeutet, dass die pluralistische Perspektive didaktischer Natur dazu dient, das Gesetz als Literatur und auch die im Gesetz vorhandene Literatur zu erklären und die Rechtsordnung nicht nur in autopoietischer Form darzustellen, sondern auch in ihren sozialen Kontext einzubeziehen.
Schlüsselwörter: Recht – Literatur – Kafka - Rechtsdiskurs
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Contexto histórico 3. Law and literature 4. Por que o senhor K.?: a influência do positivismo criminológico e a indiferença jurídica 5. Senhor K. fala uma língua, a lei fala outra: linguagem jurídica como mecanismo do estigma social 6. Considerações finais
1. INTRODUÇÃO
O artigo trata a temática dos estudos relacionados a Direito e Literatura, abordando as diferentes perspectivas debatidas sobre essa relação entre os campos do saber. A obra der Process ou O processo será o texto base para análise. O contexto histórico do autor, F. Kafka, será abordado, no intuito de evidenciar situações sociais vividas pelo mesmo, que influenciaram sua obra.
Law in literature e law as literature serão diferentes metodologias citadas durante o artigo, destacando as diversas perspectivas de integração entre os temas. A primeira delas visa à compreensão do Direito e sua representação nas narrativas literárias, chamando a atenção para os dramas humanos vividos diante do confronto com o ordenamento jurídico e suas instituições. A segunda perspectiva envolve a análise do discurso legal, enquanto discurso literário, utilizando as ferramentas de análise do discurso, advindas, por exemplo, da teoria crítica, para identificar os elementos que compõem as decisões judiciais, muitas vezes expondo o uso da lei enquanto mecanismo de poder.
Teóricos como Posner defendem o monopólio da interpretação jurídica pelos juristas, afirmando a ausência de método dos críticos literários, quando da análise dos discursos jurídicos. A diferente natureza das disciplinas, nomeadamente, Direito e Literatura, seriam um fator impeditivo do exercício de análise crítica das decisões legais utilizando-se métodos de análise textual próprios da teoria crítica literária. A relação entre os campos do saber seria de law in literature, onde a função desta última seria fornecer experiências capazes de influenciar os julgadores por meio de um maior conhecimento da alma humana.
Apontada a possibilidade de uso da teoria crítica como viável, Kieran Dolin se dedica a analisar o modo como as narrativas literárias abordam questões legais, demonstrando, muitas vezes, o funcionamento do aparato judicial, identificando mecanismos de poder, percebendo a interação do ordenamento jurídico na sociedade. As decisões jurídicas são vistas em seu contexto histórico, carregadas de seus valores, herança cultural, o uso das referências comuns constrói na comunidade um sentido para o Direito.
As diferentes perspectivas têm a vantagem de trazer aspectos diversos, quando da abordagem da obra O processo, promovendo uma visão mais completa de possíveis interpretações da obra. Para Posner, a obra de Kafka quase nada diz sobre o funcionamento do aparato judicial durante a época do Império Austro-húngaro, não instruindo diretamente sobre aspectos de Direito, todavia, explicitando a situação do cidadão comum, quando encontra a indiferença dos tribunais para com suas angústias. Dolin percebe a representação do Zeitgeist, diante do caso Josef K., onde o aparato jurídico é utilizado para determinados fins de dominação social.
Ian Ward divide a abordagem de Direito e Literatura nos tópicos law in literature e law as literature. Pleiteando a adoção de uma perspectiva plural que utilize os dois métodos de análise, para gerar uma contribuição didática, da interação entre os dois ramos do saber, fazendo com que o jurista possua uma visão interdisciplinar sobre os temas aos quais se dedica.
O artigo desenvolve, nesta perspectiva, a análise da obra de Kafka inicialmente abordando o contexto histórico, em seguida, trazendo pontuais esclarecimentos sobre Direito e Literatura, analisando o Positivismo jurídico e a indiferença deste para com os jurisdicionados, enquanto mecanismo de poder, findando com a linguagem legal e seu uso estratégico no âmbito social.
2. CONTEXTO HISTÓRICO
A compreensão do contexto histórico é fundamental para um melhor entendimento da obra, a vivência pessoal dos autores, permeia a escrita de suas obras, sendo influenciada pelas concepções filosóficas e políticas, quando da confecção dos textos. O período vivido por Kafka explicita as contradições de seu tempo e materializa muito da situação vivida na época por pessoas como ele, pertencentes a uma minoria. A vida e trabalho de Franz Kafka se desenvolveram em Praga, sendo a sua condição de judeu um fator importante na sua época. A cidade era uma metrópole cosmopolita, residência da dinastia dos Habsburg, regentes do Império Austro-húngaro, um Estado dinâmico, moderno e industrializado.
Praga pertencia ao referido Império até a dissolução deste, em 1918, após o final da Primeira Guerra Mundial. A composição multiétnica da cidade era fruto da constituição do Estado, formado por países de diversas matrizes culturais, como germanos, eslavos e judeus. O frequente contato destes diferentes povos transformou Praga em uma cidade multicultural, com o passar de séculos[2].
Os eslavos representavam a maioria da população, onde durante o período vivenciado por Kafka, os alemães étnicos, em conjunto com os judeus, eram as principais minorias. A língua tcheca era utilizada pela população em geral, de menor renda, condição desenvolvida originariamente após a Guerra dos Trinta Anos, quando a nobreza católica saiu vitoriosa na região, transformando o alemão e o francês nas línguas utilizadas pela elite, corroborada posteriormente com o maior dinamismo econômico dos austríacos. No centenário anterior ao nascimento de Kafka, o imperador (Kaiser) Josef II adotou a língua alemã como idioma oficial do Império dos Habsburg.[3] [4].
A ação dos alemães acabou fomentando uma reação em sentido oposto: em Praga, o nacionalismo tcheco voltou-se contra os germânicos e judeus, os nativos eslavos passaram a almejar a independência de sua região, enquanto as minorias permaneceram fiéis à coroa. A diferenciação tornou-se perceptível com a divisão de diversas instituições, como a existência de uma universidade tcheca e uma alemã, assim como escolas igualmente separadas[5].
No meio das disputas entre as nacionalidades estavam os judeus, que se associavam, em sua maioria, com os alemães, o que desagradava os nacionalistas tchecos. A preferência dos judeus era pelas instituições alemães, pelo correspondente maior desenvolvimento das regiões germânicas. Desta forma, havia a perspectiva de alcançar maior êxito profissional com a referida aproximação. A minoria judaica tinha relativa aceitação social, após a emancipação dos judeus, ocorrida com a política de tolerância do Imperador Josef II, sendo esta ampliada pelo sucessor Franz Josef. Todavia, a maior penetração no tecido social e a disputa por posições sociais favoreceu o antissemitismo na sociedade de Praga.
Kafka foi muitas vezes confrontado com atitudes de hostilidade para com os judeus (Dezembersturm), ainda que estes já estivessem integrados socialmente, não fossem mais obrigados a viver em guetos e possuíssem boa condição de vida. Durante a década de 1920 a situação se agravou, diante das tensões entre alemães, judeus e tchecos[6]. Kafka foi ainda um contemporâneo da Primeira Guerra mundial, entretanto, não participou da frente de batalha. Em 1918, o autor viu o final do conflito e a consequente ruína do Império Austro-húngaro. O processo desencadeou a formação de novos estados como a Iugoslávia e a Tchecoslováquia, país do qual Praga passou a ser capital, concentrando tchecos, eslovacos, alemães e judeus. Neste novo Estado, o autor passou por maior isolamento, uma vez que a condição de judeu-alemão era duplamente indesejável socialmente pelos nacionalistas da recém-formada nação.
A condição de jurista possibilitou a Kafka a vivência de insegurança jurídica em uma época de transformações sociais profundas. A ausência do sentimento de pertencer a algum lugar foi percebida por Kafka quando este confiou na institucionalidade legal, que formalmente tornava os homens iguais, todavia, em sua práxis, a origem do indivíduo determinava o grau de liberdade possível. [7]
Stephan Zweig, escritor contemporâneo de Kafka, que também habitou o Império Austro-húngaro, descreve a situação dos judeus de modo simbólico, porém exemplar, em seu conto Ungeduld des Herzens. Quando o personagem principal da trama, um militar, se coloca em uma situação constrangedora por assumir compromisso de noivado impensadamente, seu diálogo interno afirma não haver coisa pior para sua família que saber do casamento com alguém de sangue judeu, também os seus companheiros do regimento certamente o discriminariam por tal feito[8].
A questão da culpa (Schuld) é debatida em nova perspectiva, na obra O processo, saindo da questão legal da culpabilidade, passando a tomar o sentido de estar em erro, agir erroneamente. A questão assume caráter moral, admitindo que todo ser humano é falível, não sendo justo escolher determinadas pessoas aleatoriamente e culpá-las. O debate tem reflexo no entorno social do autor, onde muitas vezes a existência enquanto minoria era, sozinho, fator de marginalização.
3. LAW AND LITERATURE
As questões relativas a interação entre Direito e Literatura estão distantes de constituir uma unidade teórica e metodológica. Esta relação passou por diferentes abordagens, considerando as possibilidades e impossibilidades de permeabilidade entre estes dois campos das humanidades (Geisteswissenschaft); a retórica e o uso da linguagem como instrumento são, todavia, características compartilhadas pelos teóricos, enquanto pontos de convergência para as análises.
Richard Posner[9] destaca a existência de várias obras que têm a centralidade do enredo em torno de questões que envolvem o Direito, como é o caso do livro O Mercado de Veneza de William Shakespeare ou ainda O processo de Franz Kafka; muitos escritores também eram juristas, fato que estreita ainda mais os laços entre Direito e Literatura. O ordenamento jurídico também traz disposições relativas a questões literárias, como os direitos autorais.
A possibilidade do uso de textos literários no intuito de proporcionar aos magistrados maior sensibilidade na resolução de casos é aceita por Posner, que cita a obra de juristas da Suprema Corte Americana, como Oliver Holmes, que utilizavam elementos de Literatura em suas decisões. O maior destaque dado é para a questão do uso da linguagem e retórica, vistos como as áreas onde a lei e a narrativa fictícia se encontram.
Os problemas da vida cotidiana são objetos da lei que a Literatura a dramatiza, como o processo pelo qual Joseph K. tem que passar, ou ainda, o contrato firmado no Mercador de Veneza. A autonomia entre os dois ramos do saber é destacada por Posner[10], quando ressalta a condição de disciplinas acadêmicas distintas. A condição de humanizar os juristas é o principal ponto destacado pelo autor, de um modo geral, o teórico rejeita a possibilidade da Literatura fornecer instrumentos que ajudem a resolver casos jurídicos, pelo diferente propósito desempenhado pelas disciplinas, apenas o uso de metáforas é visto como tolerável.
Ian Ward[11] coloca a relação entre lei e as narrativas literárias como complementar. Para ele, é possível dividir as abordagens teóricas entre Law in Literature e Law as Literature. O autor destaca a necessidade de compreender a inter-relação de modo abrangente, levando em conta a influência dos textos literários no julgador, sem esquecer dos problemas essenciais do século XX, manifestados através do conhecimento filosófico e literário, denotando o Zeitgeist.[12]
O Iluminismo postula a positivação do Direito, o monopólio da produção de textos normativos pelo Estado[13], prevalecendo a ótica dos jurisconsultos e economistas. Todavia, Ward destaca o uso de metáforas, parábolas, ou seja, contos de narrativa literária, por parte da tradição legal judaica, muçulmana, indígena, dentre outras; indicando a experiência histórica de povos que atribuem uma importância maior do uso de narrativas literárias na solução de conflitos.
O papel das metáforas utilizadas nos contos é colocado como responsável por criar traços culturalmente comuns a uma comunidade. Kieran Dolin[14] cita o caso de narrativas literárias utilizadas por magistrados e advogados durante o ofício, no intuito de esclarecer os pontos de vista, ou teses, defendidos. O caso do juiz Justice Scalia, que utiliza expressão poética da Literatura americana (Good fences make good neighbors) quando da resolução de um caso concreto, é citado enquanto uso da herança cultural americana, constituída de seus específicos ideais e valores, viabilizando um critério comum, quando da decisão de demandas jurídicas.
Richard Posner[15] propõe uma aproximação entre Direito e Literatura que não tenha enfoque político. As narrativas literárias seriam uma abordagem sobre a lei, na medida em que esta demonstra os sentimentos humanos quando colocados diante de situações onde há envolvimento com a jurisdição institucional. A interpretação ampla, colocada em seu contexto social, é vista pelo autor com muito criticismo, por este rejeitar os métodos de análise da teoria da literatura.
Os Posner e Dolin teóricos representam diferentes visões ao compreender a inter-relação entre Direito e Literatura. O primeiro, como mencionado, muito embora reconheça a política no Direito e, principalmente, na Literatura, admite a influência destas narrativas enquanto meio para influenciar subjetivamente o julgador, no sentido de sensibilizá-lo para perceber os sentimentos humanos. Dolin, por outro lado, utiliza uma abordagem mais socialmente engajada, preocupada em conhecer as relações de poder que determinam a linguagem legal. A visão interdisciplinar apregoada por esta última, visa expor a retórica utilizada nas decisões legais, enquanto argumento que legitima autoridade, enquanto discurso de coerção, aplicado em determinado contexto social.
A posição do supracitado Ian Ward traz uma análise que relaciona as posições de Posner e Dolin, lançando uma nova perspectiva sobre o debate entre Direito e Literatura. Sistematicamente a abordagem dita Law in Literature, da qual Posner é o principal representante, concentra-se em perceber o uso de metáforas, narrativas literárias, para esclarecimento e compreensão do Direito; o uso de contos literários seria subsidiário, ilustrativo. A análise do discurso jurídico permanece em perspectiva legal, científica, não literária. A interpretação da lei deve permanecer atividade técnica, restrita aos que dominam o saber jurídico. Posner justifica sua posição diante da premissa de que a obra O processo, por exemplo, de nada ajudaria a instruir sobre o conhecimento processualístico do Império Austro-Húngaro, diante disso, seria de limitado valor para juristas.[16]
Na concepção de Law as Literature, Ian Ward destaca a contribuição de Dolin, dentre outros. Neste conceito o autor situa aqueles que aplicam a teoria de análise do discurso literário para com as decisões judiciais, desnudando relações de poder, percebendo o uso instrumental de retórica para controle social. O discurso legal é colocado em seu contexto histórico e social, obras literárias revelam não necessariamente ferramentas de construção de conteúdo jurídico, senão o Zeitgeist de uma época, quando escritores falam das injustiças legitimadas pelo Direito.
Ward[17] disserta obre a necessidade de compreensão da relação entre Direito e Literatura sob uma perspectiva didática, englobando Law in Literarture e Law as Literature. Afirmando a necessidade de se conhecer a obra, mas também o autor e todo seu contexto, vivência. Além de sentir as situações expostas diretamente nos textos literários, a percepção do papel do autor para além dos escritos, é de fundamental importância.
Posner[18], debatendo a obra der Process, de Kafka, conceitua a ficção como crítica a uma modelo de compreensão econômica do homem moderno. Joseph K. vive em um Estado imperial regido por um aparato jurídico, que possui todo um ordenamento funcional, no qual ele confia, demonstrando preocupações alheias ao devido processo legal. K. é processado sem saber os reais motivos, sendo executados igualmente sem saber as razões para tal coisa.
Levar em consideração que a obra der Process aborda questões de Direito relativas ao devido processo legal, garantias de Direitos fundamentais, ou ainda a perversão do aparato judicial, é uma leitura advinda compreensão errônea, ainda segundo Posner, a obra trataria de aspectos relativos às responsabilidades diante da Lei, por Joseph K. foi punido por nada ter feito, onde este não fazer equivale a uma omissão punível, diante de uma culpa produzida pelo aparato legal.
A dificuldade de Joseph K. em descobrir os motivos de ser sujeito de ação legal demonstra, para Posner[19], a angustia que o leigo tem, diante do poder coercitivo do aparato jurídico, representando as dificuldades em compreender a linguagem e as ações desenvolvidas no processo, o que impossibilita alguma relativa previsão dos acontecimentos. Portanto, não só o destaque para a passividade do personagem é colocado como central na interpretação desenvolvida pelo autor, também a incompreensão das ações desenvolvidas no ordenamento jurídico. A ausência de motivações políticas destaca-se no personagem de Joseph K., para Posner[20] a sua incapacidade de fazer algo acaba por se o maior motivo de sua condenação. Ler Kafka politicamente, com isso, seria um erro, pois os personagens não se manifestam politicamente, e sim, ressaltam a liberdade de escolha, ainda que seja para não agir, o que é identificado pelo teórico como um dos pilares do liberalismo clássico. [21]
Dolin percebe o discurso jurídico como suscetível de um tipo de análise que utiliza métodos interdisciplinares. Os textos emanados das instituições legais trazem uma narrativa que engloba discursos culturais, representando valores, além da luta pelo poder. A teoria crítica literária seria metodologia capaz de exibir os mecanismos que influenciaram determinadas decisões, proporcionando reflexão dos operadores do Direito quando confrontados com situações similares, buscando esclarecer como a lei interage com a linguagem, na condição de texto culturalmente construído, denotando seus efeitos na sociedade.
A análise interdisciplinar se baseia na semiótica e sua concepção crítica, por exemplo, para investigar a fonte de legitimação de determinados discursos jurídicos, o significado legal e político de decisões, por meio dos instrumentos retóricos utilizados. Para Dolin, a autoridade da Lei deve ser instrumento apto a fundamentar a justiça, tanto para o indivíduo quanto para a sociedade. O uso de perspectivas advindas de outras ciências, analisando os discursos jurídicos, contribui também para uma maior legitimação destes.
Ian Ward identifica as diferentes perspectivas, classificando-as de acordo com as diferentes compreensões, portanto a divisão entre Law in Literature e Law as Literature terminam por se demonstrar visões complementares, se observadas de acordo com as possibilidades didáticas oferecidas por ambos os métodos. Der Process deve ser analisado, portanto, levando em consideração as diferentes perspectivas, no sentido de desenvolver uma percepção ampla sobre a temática do livro.
Jenifer Cushman segue uma linha de análise que chega a resultados similares a Ward, atentando para a influência do meio social vivido por Kafka, enquanto judeu-alemão, vivenciando hostilidades por tal condição. K percebe a frieza da burocracia ao tratar de seu caso, fruto de sua condição minoritária. O conto trata de modo mais abrangente a questão da rejeição para com minorias, a burocracia e sua indiferença para diante do cidadão, a omissão de K. em tomar uma atitude que viesse de fato a mudar sua condição, por acreditar na institucionalidade; estes aspectos, por serem mais abstratos, acabam adquirindo maior universalidade, todavia, a narrativa se insere em seu contexto histórico, e muito embora não seja diretamente um tratado jurídico, aborda a discriminação existente no tempo de Kafka, vivenciada por este e materializada em sua obra.
O fato do autor ser jurista aproxima ainda mais a crítica deste ao sistema judicial do Império, pois este coloca as inconsistências do sistema jurídico, quando de sua aplicação prática, registrando o Zeitgeist em sua obra literária. Importante ressaltar que Kafka estava interado com o mundo jurídico, pela sua profissão de advogado, acompanhando também, portanto, o debate em torno das questões legas envolvendo as leis penais. Um dos pontos cruciais era a tipificação de crimes, onde a codificação alemã, de base kantiana, previa a responsabilização do indivíduo pelos seus atos, focando em aspectos morais e exigindo uma efetiva ação e punindo de acordo com a natureza do delito. Já o Código utilizado no Império Austro-Húngaro definia o crime não só de acordo com as ações empreendidas e resultados obtidos, mas também valorando a intencionalidade da ação, punindo o agente, ainda que o crime não ocorresse por situações alheias a sua vontade, o equivalente atual à questões relativa ao dolo e tentativa, enquanto componentes do Direito Penal.
A inter-relação entre Direito e Literatura, no Brasil, segue padrões citados pelos autores estrangeiros, quando já no século XVII diversos autores de obras literárias eram também juristas, como José de Alencar ciado como maior expoente[22]. O final do século XX e início do século XXI demonstrou-se o período onde os estudos sobre Direito e Literatura se desenvolveram. Lênio Streck [23], um dos autores dedicados aos tema, cita a possibilidade da literatura tratar temas que importam aos juristas, quando estes precisam lidar com a decisão de conflitos, uma vez que as obras literárias muito transmitem sobre a condição humana.
4. POR QUE O SENHOR K.?: A INFLUÊNCIA DO POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO E A INDIFERENÇA JURÍDICA
[...] Aqui não há erro. Nossas autoridades, até onde as conheço, e só conheço seus níveis mais baixos, não buscam a culpa na população, mas conforme consta na lei, são atraídas pela culpa e precisam nos enviar – a nós, guardas. Esta é a lei. Onde aí haveria erro?[24]
Por que o senhor K.? A resposta (que por sinal é a grande denúncia do livro) é muito simples e, ao mesmo tempo, muito complexa: não existe um porquê. K. não fora escolhido especificamente. Ele, na verdade, comprova o inverso, de que não importa quem seja o destinatário da lei, os abusos e falhas pelo judiciário sempre ocorrerão. Qualquer um pode ser vítima da lei. Por mais estranha que essa afirmação possa parecer, esse é o sentimento comum compartilhado por todo indivíduo inserido socialmente. O sentimento de que, um dia, ele poderá ser o próximo a ser perseguido por uma conduta que foi considerada falha pelo sistema punitivo, ainda que nem saiba que fez algo contrário à lei. A própria narrativa passa essa sensação ao não mencionar claramente do que K. está sendo acusado. Não importa o âmbito, o Direito serve para passar a imagem de onipresença.
Se as autoridades são atraídas pela culpa, ela é pré-existente e se manifestará em algum momento. Como pode ser isso? Ainda que não se saiba o que se tenha feito (ou ainda não tenha feito), esse fazimento ocorrerá para que a culpa recaia sobre ele. Essa pseudo arte da premonição vem claramente do período que antecede a primeira publicação feita por Kafka de O processo em que o crime passava a ser extensão, manifestação da personalidade do indivíduo[25]. Era o que defendia Enrico Ferri, contemporâneo do grande nome do positivismo criminológico, Cesare Lombroso, o fundador da Antropologia Criminal.
Curiosamente, Lombroso não era jurista e sim médico, e isso tem dois efeitos diretos: o primeiro, de que o Direito se deixou contaminar por um discurso médico e o segundo de que o viés científico adquirido pelo Direito nessa época trouxe a falsa impressão de que a comprovação científica não admite falhas. Esses dois aspectos foram fundamentais em uma época de aumento do punitivismo. Lombroso injetou uma concepção de livre arbítrio que não era livre. Sim, um paradoxo de que o homem normal era livre, porém tinha suas vontades freadas por motivos religiosos, familiares, sociais...[26]. Uma vez que a criminalidade se manifestasse, era um caminho sem volta, pois a reincidência seria uma consequência direta das mazelas da mente. Ou seja, quando o guarda se dirige a K. e afirma que os guardas estão ali, não porque as autoridades procuraram sua culpa e sim que ela se manifestou, o recado é lombroferriano: K. não era mais que um doente social que, por alguma razão, não atendeu aos interesses de um sistema e precisava ser contido. E a contenção vem antes das explicações. Observe-se a seguinte explicação de Ferri:
[...] o crime não pode ser o fulcro da lei e da sentença, devendo ser somente a condição preliminar de procedibilidade (portanto, punibilidade) e um dos elementos, decerto o mais característico, para individualizar a periculosidade do delinquente, como o são a vida anterior, o comportamento depois do fato, etc. [...][27]
Trazendo para o universo da obra, se o crime é apenas uma condição, o que vale é o que está por trás da sua realização. De que vale saber o crime cometido por K.? Um mero detalhe, uma mera condição de procedibilidade. Tal ato apenas apontou na sua direção e, assim, a lei foi ao seu encontro por meio do processo. Fica evidente a paradoxal contribuição do cientificismo no Direito. Na mesma proporção que a ciência jurídica ganhou respeitabilidade por, aparentemente, explicar e provar suas teorias, o excesso tecnicismo afastou o Direito da realidade.
Nossa tentativa de aproximar a obra de Kafka desse debate tem plena conexão com a necessidade de superação do positivismo jurídico como um todo, pois foi assim que o movimento Law and Literature ganhou expressão com Benjamin Nathan Cardozo em 1925, expondo o procedimento judiciário como narrativa, estabelecendo relação entre forma e conteúdo da decisão judicial[28]. Mas, retomando a questão, ainda que as concepções positivistas tenham sido superadas, seus efeitos continuaram repercutindo. Isso se reflete na constante sensação do leitor de se colocar no lugar de Josef K e, por mais absurdas que as situações sejam, tudo parecer tão atual e real. A violação de direitos individuais fundamentais no Estado Democrático de Direito transcende o Direito ficcional de Franz Kafka[29]. Depender do próprio Direito para afirmar direitos soa cíclico e é exatamente esse ciclo que alimenta o punitivismo. Ao mesmo tempo que se deseja a punição do desvio social, teme-se por estar incluso na mira da lei. A questão que queremos levantar é: seria, de fato, um receio da punição em si ou da sua repercussão? O homem teme a prisão ou a falta de perdão do meio social ao qual está inserido? Qual o peso de ser processado?[30]
Do outro lado da rua, o grupo ainda estava na janela, mas agora parecia um pouco perturbado no sossego da contemplação pelo fato de K. ter chegado à janela. Os velhos tentaram se levantar, mas o homem atrás deles os tranquilizou.[31]
Essa passagem simples não fala da mera curiosidade. O que nos chama atenção aqui é algo muitas vezes ignorado pelos juristas ao longo do tempo: o estigma e a força da lei. K. poderia ser um criminoso potencial, mas, uma vez que as autoridades o inseriram no processo, não importando o que teria feito, se seria condenado; para a sociedade, ele não seria mais visto da mesma maneira. Não era mais um homem íntegro que trabalhava no banco. K. se tornara, como dissemos, vítima da lei e do medo. Quem contempla alguém ser levado à julgamento não deseja ser confundido, tem o receio de ser o próximo ainda que pense ser errada tal decisão. Essa intimidação seria o que, anos depois, Liszt classificaria como prevenção geral positiva: proteção de bens jurídicos e prevenção de delitos[32]. Quais bens seriam protegidos com a detenção de um homem inocente? Que delito, afinal, teria sido cometido por K.? Que delitos seriam evitados com sua remoção do meio social? Kafka deixa claro que nada disso estava em jogo.
5. SENHOR K. FALA UMA LÍNGUA, A LEI FALA OUTRA: LINGUAGEM JURÍDICA COMO MECANISMO DO ESTIGMA SOCIAL
- Oh, céus! – disse o guarda – É incrível como o senhor não consegue se submeter à sua situação e parece empenhado em nos irritar inutilmente, a nós, que decerto somos neste momento os mais próximos de todos os seus semelhantes! [...] Esqueceu-se de que, não importa o que formos, diante do senhor somos no mínimo homens livres, e essa superioridade não é pequena. [...][33]
A resistência às regras do sistema é comumente confundida com atestado de culpa, devendo ser mais duramente combatida. Onde não há submissão, haverá punição e a principal delas é o estabelecimento de uma diferenciação, uma criação de categorias que possam apontar superioridade. Quando o guarda diz que eles são os mais próximos dos seus semelhantes, isso não tem apenas um efeito na narrativa, mas também dentro da concepção jurídica. Um estigma é um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo, que gera diversas perspectivas de interpretação: o estigmatizado assume uma determinada característica que ele supõe ou ser conhecida ou evidente ou, ao menos, perceptível. De acordo com cada uma dessas situações, o indivíduo transita entre ser acreditado, desacreditado ou desacreditável, deixando instável a possível dele ser facilmente ou não recebido nas relações sociais cotidianas. Porém, se ele for identificado com determinado traço que chama atenção do coletivo, isso acaba por diminuir ou aniquilar a possibilidade de atenção para outros atributos seus[34].
Antes de ser procurado pela polícia, K. se considerava uma pessoa de respeito, um bancário bem-sucedido e deduziu que as outras pessoas o reconheceriam desta maneira, sendo suficiente para comprovar sua inocência. A criminalidade era incompatível com sua identidade social. Entretanto, este é um engano comum entre as pessoas de uma forma geral: acreditar que, em hipótese alguma, sua imagem será maculada pela manifestação da Justiça (como, popularmente, imagina-se as leis). O Direito, mais especificamente o Direito penal, possui uma força que as outras formas de controle social não possuem. É a única que consegue transcender seu próprio universo. Por exemplo, se K. tivesse pecado, ele seria mal visto e perseguido pela sua comunidade religiosa. Entretanto, isso não valeria para os outros núcleos de convivência social: ele continuaria sendo o cidadão exemplar, bom vizinho e etc.. Contudo, ele fora acusado de cometer um delito, então, não importava mais a qual grupo ele se dirigia. Sua imagem nunca mais seria a mesma.
É nesse momento que o Direito penal constrói sua própria teoria do estigma. Uma ideologia capaz de explicar a inferioridade dos indivíduos e evidenciar o perigo que eles representam, racionalizando animosidades baseadas em diferenças sociais pré-existentes, como, por exemplo, a de classe social. É aí que utilizamos os termos específicos de estigma, tais como aleijado, bastardo, retardado em nossos discursos diários, quase sempre de forma simbólica e esquecendo de pensar em seu significado original ou efetivo[35]. Nesta numeração, pode-se adicionar bandido, delinquente, marginal ou qualquer outro sinônimo. Goffman deu a formula geral de como o efeito do estigma funciona. Uma vez que o Direito penal designa que aquele que contraria a norma deverá ser punido, este passará a ser reconhecido por esse desvio. Deixará de ser senhor K. e passará a ser o criminoso.
O método aqui, percebe-se, é uma das técnicas da linguagem jurídica que se estrutura através de normas complexas, compreendidas apenas por quem as aplica, e que dita um processo também complexo. Aliás, o Direito três efeitos poderosos: além de transcender seu próprio universo; seu processo consegue efeito semelhante ao de sua condenação; e sua necessidade e legitimidade serão reafirmadas independentemente de suas falhas. Seja na obra de Kafka ou em qualquer outra que critique a estrutura jurídico-penal, a lição extraída é a mesma: os indivíduos se vão, o sistema prevalece.
– Essa lei eu não conheço – disse K. - Tanto pior para o senhor – disse o guarda. - Ela só existe nas suas cabeças – disse K., querendo de alguma maneira se infiltrar nos pensamentos dos guardas, revertê-los em seu favor ou neles se instalar. Mas o guarda, num tom de rejeição, disse apenas: - O senhor irá senti-la. Franz se intrometeu e disse: - Veja, Willem, ele admite que não conhece a lei e ao mesmo tempo afirma que é inocente.[36]
Falemos mais dessa força que Direito penal tem, ou melhor, é. Foucault traz uma percepção muito pertinente de que a punição, ao longo da história, utiliza-se de táticas basicamente resumidas em: excluir, impor uma compensação, marcar e encarcerar. Seja uma ou outra ou mais de uma, sempre serão elas as alternativas que prevalecem como opção punitiva[37]. A questão é que essas técnicas, remetendo a Hobbes e Rousseau, tentam convencer que as normas são necessárias para manter uma estabilidade social. Tal como falamos anteriormente, o ciclo de dependência jurídico-penal: sem as leis penais, haverá caos com uma infinidade de crimes. Com as leis penais, será preciso também conter os crimes, porque, conforme se entendeu historicamente, é a sociedade que gera o crime. Em outras palavras, vivemos em um estado de conflito iminente e constante ao mesmo tempo.
O Direito penal, com suas regras, sustenta, supostamente, relações de poder por meio de um esquema contrato-opressão, ou seja, a soberania constituída por meio de uma sessão coletiva de direitos e que, uma vez que o poder político receptor dessa cessão ultrapasse os limites desse contratos, haverá opressão. Diz-se supostamente, porque, conforme interpretação foucaultiana e as entrelinhas de O processo, devido a essa guerra silenciosamente camuflada de paz, na verdade, os mecanismos jurídicos são de repressão: uma oposição entre a luta dos indivíduos contra a imposição constante de uma submissão[38]. “É incrível como o senhor não consegue se submeter à sua situação”, já dizia o guarda a Josef K., enquanto ele permanecia lutando. Retomando os questionamentos que lançamos: quais bens seriam protegidos com a detenção de um homem inocente? Que delito, afinal, teria sido cometido por K.? Quem decide isso é a norma, porque:
[...] a verdade é a norma; é o discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; ele veicula, ele próprio propulsa efeitos de poder. Afinal de contas, somos julgados, condenados, classificados e obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer, em função de discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder. Portanto: regras de direito, mecanismos de poder, efeitos de verdade. [...][39]
O suposto crime cometido por K., com tamanha ostentação de poder dos procedimentos jurídicos, tornara-se verdade. A lei adequa o resultado à norma e não o inverso, um caso de juízo determinante em que o geral foi feito para se subsumir ao caso particular[40]. É nessa inversão que o Direito penal deixa de se adequar às necessidades do coletivo e passa a ser porta-voz dos detentores do poder. K., por qualquer motivo, passou a ser um resultado indesejado. O seu valor seria medido pela reafirmação da eficácia do sistema. Não tinha mais importância até o ponto que nem ele mesmo acreditava mais na sua relevância e a morte lhe pareceu a melhor saída: K. se livraria da sua vergonha, de si próprio (ser repugnante) e da lei (espelho da verdade inquebrantável) que não compreendia. Ficaria sem coração tal como a sociedade jurídica que o escolheu como bode expiatório do seu mecanismo. Contudo, naquele derradeiro instante de Josef K., “a morte já não é suplício, é encerramento definitivo, a absoluta segurança”[41].
[...] A lógica, na verdade, é inabalável, mas ela não resiste a uma pessoa que quer viver. Onde estava o juiz que ele nunca tinha visto? Onde estava o alto tribunal ao qual ele nunca havia chegado? Ergue as mãos e esticou todos os dedos. Mas na garganta de K., colocavam-se as mãos de um dos senhores, enquanto o outro cravava a faca profundamente no seu coração e a virava duas vezes. Com os olhos que se apagavam, K. ainda viu os senhores perto do seu rosto, apoiados um no outro, as faces coladas, observando o momento da decisão. -Como um cão. – disse K. Era como a vergonha devesse sobreviver a ele.[42]
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tentar compreender as ciências de maneira absolutamente independente, além de quase impossível, é um desserviço à coletividade. Relações humanas são assim: complexas por natureza. Qualquer recurso ao técnico que venha a colaborar para uma melhor compreensão dos conflitos deve ser bem-vinda. Em poucas páginas, foi possível ver a influência do período histórico na vida de Franz Kafka e isso demonstra uma cadeia de marcos: Kafka foi marcado pela história de seu tempo, projetou isso em sua obra O processo e O processo marca uma nova fase histórica e seus leitores; seus leitores, por sua vez, refletem, reproduzem novas interpretações sobre a obra.. e assim por diante.
Talvez Posner tenha apenas seguindo uma linha tradicional do Direito que tentou, a todo o custo, elevar seu caráter científico, isolando a ciência jurídica. A função de uma obra literária não é descrever o funcionamento de sistemas jurídicos e detalhes específicos, para isso existem manuais e doutrina (Algo mais próximo da ideia de law as literature. A condução textual pelo jurista pode ser envolvente e crítica). A Literatura tem sim um papel fundamental na formação de pensamento, de revelar as entrelinhas da experiência jurídica, de denunciar os abusos que dificilmente virão retratados em produções puramente jurídicas. Tal como Kieran Dolin, é a esse pensamento que aderimos.
Outrossim, ainda que tenham sido curtas páginas, buscamos demonstrar os efeitos de O processo. A riqueza da sua narrativa fantástica fica ainda maior quando o jurista que a lê está preocupado com o destino da principal parte: Josef K., a representação metafórica da vítima do processo penal. O que seria dessa obra além do retrato da vida jurídica; os personagens a personificação de possíveis indivíduos que figurarão possíveis processos; e a narrativa o próprio desenrolar do caso? Kafka deixa bem clara sua mensagem para os juristas futuros: não deixemos a dureza da lei nos cegar perante a injustiça, lembremos que o Direito nos serve e não o contrário; e antes das palavras, títulos, cargos e importância, enxerguemos pessoas e suas histórias.
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[1] Graduado e especialista em Direito Público pela Faculdade de Ciências Humanas de Pernambuco. Graduado em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Advogado. Contato: [email protected]
[2] KRISCHEL, Volker. Erläuterungen zu Franz Kafka: Der Proceß. Hollfeld: Bange Verlag, 2008. p.14
[3] KRISCHEL, Volker. Erläuterungen zu Franz Kafka: Der Proceß. Hollfeld: Bange Verlag, 2008. p.15
[4] ROBERTSON, Ritchie. Kafka: a very short introduction. Oxford (UK): Oxford University Press; 2004. p.23
[5] ROBERTSON, Ritchie. Kafka: a very short introduction. Oxford (UK): Oxford University Press; 2004. p.23
[6] KRISCHEL, Volker. Erläuterungen zu Franz Kafka: Der Proceß. Hollfeld: Bange Verlag, 2008. p. 17
[7] CUSHMAN, Jenifer. Criminal apprehensions: Prague minorities and the Habsburg legal system in Jaroslav Hašek´s The good soldier Švejk and Franz Kafka´s The trial. In: MEYER, Michael J (Org.). Literature and law. Amsterdam – New York (NY): Editions Rodopi B.V., 2004. p. 52 a 56
[8] ZWEIG, Stephan. Ungeduld des Herzens. Stockholm: Bermann-Fischer Verlag; 1939. p. 383
[9] POSNER, Richard. Law and literature. Massachusetts (USA): Harvard University Press; 2009. p.11
[10] POSNER, Richard. Law and literature. Massachusetts (USA): Harvard University Press; 2009. p.5
[11] WARD, Ian. Law and literature: possibilities and perspectives. New York (USA): Cambridge University Press; 2004. p.4
[12] HERDER, Johann Gottfried von. Kritische Wälder. Riga; 1769. p.164
[13] GROSSI, Paolo. A History of European Law. New Jersey (USA): Wiley-Blackwell, 2010. p. 69
[14] DOLIN, Kieran. A critical introduction to law and literature. New York (USA): Cambridge University Press; 2007. p.2
[15] POSNER, Richard. Law and literature. Massachusetts (USA): Harvard University Press; 2009. p. 7 a 17
[16] WARD, Ian. Law and literature: possibilities and perspectives. New York (USA): Cambridge University Press; 2004. p. 9 a 14
[17] WARD, Ian. Law and literature: possibilities and perspectives. New York (USA): Cambridge University Press; 2004. p.42
[18] WARD, Ian. Law and literature: possibilities and perspectives. New York (USA): Cambridge University Press; 2004. p.174
[19] WARD, Ian. Law and literature: possibilities and perspectives. New York (USA): Cambridge University Press; 2004. p.179 e 180
[20] WARD, Ian. Law and literature: possibilities and perspectives. New York (USA): Cambridge University Press; 2004. p. 186
[21] POSNER, Richard. Law and literature. Massachusetts (USA): Harvard University Press; 2009. p. 237 a 247
[22] TRINDADE, André Karam; BERNSTS, Luísa Giuliani. O estudo do direito e da literatura no Brasil: surgimento, evolução e expansão. ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura. v. 3, n. 1, janeiro-junho 2017. p. 229
[23] KARAM, Henriete. Entrevista com Lênio Streck: a literatura ajuda a existencializar o direito. ANAMORPHOSIS – Revista Internacional. p.615 a 626
[24] KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Companhia das letras, 2011. p. 15
[25] FERRI, Enrico. Princípios de Direito Criminal: O Criminoso e o Crime. Campinas: Bookseller, 2003. p. 201
[26] LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. São Paulo: Ícone editora, 2016. p. 223
[27] FERRI, Enrico. Princípios de Direito Criminal. 2 ed. Campinas: Bookseller, 2003. p. 202
[28] JESKE, Thaís. Súmula vinculante: uma abordagem à luz de Kafka. In: Amicus Curiae, Santa Catarina, vol. 11, 2014. Disponível em: http://periodicos.unesc.net/amicus/article/viewFile/1714/1597. Acesso em jan. 2019
[29] MARQUES, Mara Rubia. Superou-se O Processo de Franz Kafka? Uma análise do sistema inquisitivo. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 85, fev. 2011. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9032#_ftn4>. Acesso em jan 2019.
[30] Nesse momento, é possível fazer um paralelo entre Josef K. e Raslkolnikov, protagonista de Crime e Castigo, obra de Dostoievski. Em ambos os casos, os personagens só se libertam da angústia de serem desviantes se rendendo: um à morte e o outro ao cárcere.
[31] KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Companhia das letras, 2011. p. 23
[32] LISZT, Franz. La idea de fin en el Derecho penal. Granada: Editorial Comares, 1995. p. 66
[33] KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Companhia das letras, 2011. p. 14 a 16
[34] GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. São Paulo: LTC, 1981. p. 7
[35] GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. São Paulo: LTC, 1981. p. 8
[36] KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Companhia das letras, 2011. p. 15 e 16
[37] FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva: curso no Collège de France (1972-1973). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015. p. 7 a 9
[38] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. p. 16 e 17
[39] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. p. 22
[40] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 20004. p. 61
[41] FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva: curso no Collège de France (1972-1973). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015. p. 12
[42] KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Companhia das letras, 2011. p. 278
Graduada pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Direito Penal pela Faculdade Damásio de Jesus. Advogada. Professora.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Marianna de Athayde. Literature as Law: uma análise jurídico-literária de o processo de Kafka revelando a linguagem do Direito como mecanismo de poder, estigma e controle social Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 abr 2020, 04:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54381/literature-as-law-uma-anlise-jurdico-literria-de-o-processo-de-kafka-revelando-a-linguagem-do-direito-como-mecanismo-de-poder-estigma-e-controle-social. Acesso em: 22 nov 2024.
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