RESUMO: O presente artigo versa sobre o poder familiar, hipóteses de suspensão, extinção e perda do poder familiar, à luz do Estatuto da Criança e do Adolescente, e sua repercussão na vida das pessoas envolvidas, visando a proteção integral dos sujeitos em desenvolvimento.
Palavra-Chave: poder familiar. suspensão. extinção. perda. destituição.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Hipóteses legais de suspensão, perda e extinção do poder familiar. 2. Da Possibilidade de Tutela de Urgência de Suspensão do Poder Familiar. 3. Da Legitimação Constitucional Da Defensoria Pública para Propor Ação De Destituição Do Poder Familiar. 4. Do Procedimento da Ação de Destituição do Poder Familiar; 4.1 Da competência do juízo da Infância e Juventude; 4.2 Da Competência Territorial.5. Das Consequências da Perda do Poder familiar. 6. Considerações finais. 7. Referências Bibliográficas
Introdução
O poder familiar é uma instituição do Direito de Família, por meio do qual os pais exercem suas obrigações e direitos perante os filhos. É o conjunto dos direitos e deveres que os pais exercem sobre os filhos e seus bens.
O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece, em seus artigos 4o, 5o e 22, um conjunto de princípios e deveres a serem observados tanto pelos responsáveis legais da criança ou do adolescente como à sociedade em geral, in verbis:
Art. 4º, ECA - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (…)
Art. 5º, ECA: Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Art. 22, ECA: Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. (grifos e destaques nossos).
Nos termos do art. 1.634, do Código Civil, o poder familiar pode ser conceituado como o complexo de direitos e deveres quanto à pessoa e bens do filho, exercidos pelos pais na mais estreita colaboração, e em igualdade de condições .
O artigo 1.634 do Código Civil estabelece a competências dos pais, no tocante aos filhos menores de idade, tais como a de dirigir-lhes a criação e a educação e a de tê-los em sua companhia e guarda, in verbis:
Art. 1.634, CC: Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
I - dirigir-lhes a criação e educação;
II - tê-los em sua companhia e guarda;
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
É, portanto, dever legal de todo e qualquer genitor proporcionar a sua prole os meios necessários e suficientes para que sejam atendidos os direitos básicos como saúde, alimentação, educação, lazer, dentre outros, de acordo com a situação econômica e social dos obrigados.
1. Hipóteses legais de suspensão, perda e extinção do poder familiar.
Os pais ou responsáveis ao deixarem de prover os meios adequados à fruição dos direitos elementares dos filhos ou faltarem com os deveres intrínsecos ao poder familiar sujeitam-se às consequências desses atos que podem ensejar a suspensão ou a perda do poder familiar, conforme dispõe o Art. 129, X, da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA) e Art. 1.638, do Código Civil Brasileiro:
Art. 24, ECA - A perda e a suspensão do poder familiar serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o art. 22.
Art. 129, CC - São medidas aplicáveis aos pais ou responsável: (...)
X - suspensão ou destituição do poder familiar; (...)
Art. 1.638, CC - Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I - castigar imoderadamente o filho;
II - deixar o filho em abandono;
III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;
IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente. (grifos e destaques nossos)
A suspensão do poder familiar, prevista no art. 1637 do CC, deve ser adotada, na falta de outra medida capaz de promover a defesa do interesse da segurança da criança e do adolescente e de seus haveres, em caso de abuso do poder familiar como o descumprimento dos deveres dos pais ou responsáveis, em caso de ruína, provocada por eles, aos bens dos filhos e de condenação em decorrência de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão:
Art. 1.637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha.
Parágrafo único. Suspende-se igualmente o exercício do poder familiar ao pai ou à mãe condenados por sentença irrecorrível, em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão.
A suspensão impede, temporariamente, o exercício do poder familiar, mas, pode ser revista ou revogada, se desaparecerem os fatores que a provocaram.
A perda do poder familiar, por seu turno, é determinada por decisão judicial, nas hipóteses previstas no art. 1.638 do CC, em caso de castigo imoderado do filho; abandono do filho; prática de atos contrários à moral e aos bons costumes; reiteração de faltas aos deveres inerentes ao poder familiar; entrega de forma irregular do filho a terceiros para fins de adoção; prática contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar de homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher, in verbis:
Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I - castigar imoderadamente o filho;
II - deixar o filho em abandono;
III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;
IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.
V - entregar de forma irregular o filho a terceiros para fins de adoção.
Parágrafo único. Perderá também por ato judicial o poder familiar aquele que:
I – praticar contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar:
a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher;
Desta feita, descumprindo os pais ou representantes legais o dever legal de proteção e sustento e impondo grave risco aos filhos menores, vulneráveis pela própria natureza, emerge a necessidade de se providenciar um ambiente familiar e salutar para o desenvolvimento da mesma, ainda que provisório, podendo ser, inclusive, por meio de acolhimento institucional de caráter excepcional e provisório, enquanto perdurar esse estado de coisas, pelo prazo máximo de 18 meses, nos termos do art. 19, §2º, A do ECA.
A prolongar-se esse “status quo” de modo a agravar mais ainda as vulnerabilidades da criança ou do adolescente e a lhe causar prejuízo irreparável ao seu desenvolvimento físico, mental e social, não há como aceitar essa situação por período indeterminado, sendo necessário resguardar o interesse superior da criança de forma rápida e precoce e evitar que a situação irregular se prolongue no tempo. Deste sentido homenageia-se o disposto no Art. 100, ECA:
Art. 100, ECA - Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.
Parágrafo único. São também princípios que regem a aplicação das medidas:
I - condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos: crianças e adolescentes são os titulares dos direitos previstos nesta e em outras Leis, bem como na Constituição Federal;
II - proteção integral e prioritária: a interpretação e aplicação de toda e qualquer norma contida nesta Lei deve ser voltada à proteção integral e prioritária dos direitos de que crianças e adolescentes são titulares
IV - interesse superior da criança e do adolescente: a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do adolescente, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto;
VI - intervenção precoce: a intervenção das autoridades competentes deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida;
VIII - proporcionalidade e atualidade: a intervenção deve ser a necessária e adequada à situação de perigo em que a criança ou o adolescente se encontram no momento em que a decisão é tomada;
X - prevalência da família: na promoção de direitos e na proteção da criança e do adolescente deve ser dada prevalência às medidas que os mantenham ou reintegrem na sua família natural ou extensa ou, se isso não for possível, que promovam a sua integração em família adotiva;
XI - obrigatoriedade da informação: a criança e o adolescente, respeitado seu estágio de desenvolvimento e capacidade de compreensão, seus pais ou responsável devem ser informados dos seus direitos, dos motivos que determinaram a intervenção e da forma como esta se processa;
XII - oitiva obrigatória e participação: a criança e o adolescente, em separado ou na companhia dos pais, de responsável ou de pessoa por si indicada, bem como os seus pais ou responsável, têm direito a ser ouvidos e a participar nos atos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção, sendo sua opinião devidamente considerada pela autoridade judiciária competente, observado o disposto nos §§ 1o e 2o do art. 28 desta Lei.
Todavia, em se tratando de caso grave, como maus tratos, abandono, abusos, violência ou exploração, faz-se necessário o ajuizamento da competente ação de destituição do poder familiar, de pronto, observando-se, obviamente, o devido processo legal e os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.
Em síntese, evidenciada a incapacidade dos pais ou responsáveis em cumprir os deveres legais com a criança e com adolescente e de continuar no exercício do poder familiar, justifica-se a destituição do poder familiar, medida extrema a oportunizar a criança e ao adolescente a possibilidade de colocação em família extensa ou substituta que possa lhes oferecer condições de pleno desenvolvimento, sustento e afeto.
Por último, a extinção do poder familiar interrompe definitivamente o poder familiar, por concessão dos pais, mediante instrumento público, dispensando-se homologação judicial, se o filho contar mais de 16 anos; em caso de morte dos pais ou do filho; de emancipação do filho; da maioridade do filho; de adoção do filho, por terceiros; da perda por decisão judicial.
Art. 1.635. Extingue-se o poder familiar:
I - pela morte dos pais ou do filho;
II - pela emancipação, nos termos do art. 5o, parágrafo único;
III - pela maioridade;
IV - pela adoção;
V - por decisão judicial, na forma do artigo 1.638.
2. Da possibilidade de tutela de urgência de suspensão do poder familiar
O Art. 157 do Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe sobre a possibilidade de se suspender, em caráter liminar, o poder familiar da parte suplicada:
Art. 157, ECA - Havendo motivo grave, poderá a autoridade judiciária, ouvido o Ministério Público, decretar a suspensão do poder familiar, liminar ou incidentalmente, até o julgamento definitivo da causa, ficando a criança ou adolescente confiado a pessoa idônea, mediante termo de responsabilidade. (grifo e destaque nosso)
O requisito para a concessão da suspensão pretendida é a existência de motivo grave, o grau de negligência e abandono, a ser aferida em cada caso em concreto, de acordo com o grau de violação aos direitos da criança e do adolescente, de modo que a suspensão do poder familiar possa garantir sua proteção integral e o respeito a dignidade da criança e do adolescente em atendimento os princípios protetivos já narrados anteriormente.
3. Da legitimação constitucional da defensoria pública para propor ação de destituição do poder familiar.
A Constituição Federal, em seu art. 134, dispõe sobre a atuação da Defensoria Pública na esfera da defesa dos direitos daqueles que, não dispondo de recursos, necessitam de amparo legal, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos hipossuficientes, assim compreendidos não só os que comprovarem insuficiência de recursos, como os socialmente vulneráveis.
Em se tratando da defesa de crianças e adolescentes, o texto constitucional não outorgou a defesa privativa de seus direitos a nenhuma instituição específica, de forma privativa. Ao contrário, atribuiu a todos, sociedade e ao poder público em geral, nele incluída a Defensoria Pública, o dever de defesa dos direitos essenciais de crianças e adolescentes, senão vejamos:
Art. 5º todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LXXIV - o estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;
Art. 227, CF - é dever da família, da sociedade e do estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (grifo e destaque nosso).
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal.
Assim, por interpretação sistemática e, em conformidade com a hermenêutica constitucional, em especial o princípio da máxima efetividade e na interpretação das normas protetivas da criança e do adolescente, deve-se levar em consideração não apenas os fins sociais a que se destinam, mas também a condição peculiar da criança e do adolescente. De onde se conclui pela legitimidade da Defensoria Pública para a propositura de ação para destituição do poder familiar, bem como para assumir, de forma proativa, a defesa processual da criança e do adolescente.
art. 6º, ECA - na interpretação desta lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. (grifos e destaques nossos)
Em nível infraconstitucional, o Código de Processo Civil prevê, expressamente, o instituto da curatela especial para os casos em que a criança ou adolescente não tiver representante legal ou quando este tem interesses colidentes com o seu assistido ou representando, como instituto a garantir e assegurar a efetivação dos direitos do incapaz, previsão esta anterior a própria teoria da proteção integral apregoada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
art. 71, CPC – o incapaz será representado ou assistido por seus pais, por tutor ou por curador, na forma da lei.
art. 72, CPC - o juiz nomeará curador especial ao:
i - ao incapaz, se não tiver representante legal, ou se os interesses deste colidirem com os daquele; (...) (grifo e destaque nosso)
O ECA expandiu as responsabilidades e o dever de atuação dos agentes estatais no contexto da proteção integral da criança e do adolescente, a qualquer órgão estatal, quando instados em situações em que os direitos fundamentais dos infantes e adolescentes encontram-se infligidos, não podendo o agente público fugir de suas responsabilidades sob o pretexto estritamente formalista.
Diz o Estatuto no tocante a atuação dos entes públicos:
art. 3º, ECA - a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
art. 4º, eca - é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
parágrafo único. a garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; (…)
O ECA faz também menção expressa, em seus arts. 87 e 142, como parte da política de atendimento público a proteção jurídica (e social) por entidade de defesa dos direitos da criança e do adolescente, devendo inclusive ser nomeado curador especial à criança e adolescente que carecer de representação ou assistência legal. In verbis:
art. 87, ECA - são linhas de ação da política de atendimento: (...)
v - proteção jurídico social por entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente. (...)
art. 142, ECA - os menores de dezesseis anos serão representados e os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos assistidos por seus pais, tutores ou curadores, na forma da legislação civil ou processual.
parágrafo único. a autoridade judiciária dará curador especial à criança ou adolescente, sempre que os interesses destes colidirem com os de seus pais ou responsável, ou quando carecer de representação ou assistência legal ainda que eventual. (grifo e destaque nosso)
Merece destaque ainda o art. 3o da Lei Complementar do Estado do Ceará no 06/97 (Lei de estruturação da Defensoria Pública Geral do Estado), que repete o inteiro teor do art. 4o da Lei Complementar Federal no 80/94, ao dispor sobre a função institucional da Defensoria Pública para atuar como curador especial e exercer a defesa da criança e do adolescente, in verbis:
Art. 3, LCE 06/97 -. são funções institucionais da defensoria pública, dentre outras: (...)
VI - atuar como curador especial, nos casos previstos em lei;
VII - exercer a defesa da criança e do adolescente;
Diante do exposto resta clara a legitimidade de atuação da Defensoria Pública para tal mister, mas também para as circunstâncias que envolvam situação de risco envolvendo crianças ou adolescentes, de modo a lhes promover, em todos os graus, a defesa judicial e extrajudicial dos seus interesses e direitos.
4. Do procedimento da ação de destituição do poder familiar
De acordo com tudo que já foi dito e, em consonância com o artigo 1.624 do Código Civil, aos pais compete a criação e educação dos filhos menores de idade, além de tê-los em sua companhia e guarda, in verbis:
Art. 1.634, CC: Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
I - dirigir-lhes a criação e educação;
II - tê-los em sua companhia e guarda;
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
Assim, é dever legal de todo e qualquer genitor proporcionar a sua prole os meios necessários e suficientes para que esta tenha atendido seus direitos básicos à saúde, alimentação, educação, lazer, moradia, afeto, dentre outros. Dever este que deve ser aferido, por óbvio, de acordo com a situação econômica e social dos obrigados.
Ao deixarem de prover tais meios, os pais faltam com os deveres intrínsecos ao poder familiar, circunstância a ensejar a destituição desse poder, nos termos do art. 129, X, da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA) e art. 1.638, do Código Civil Brasileiro:
Art. 24, ECA - A perda e a suspensão do poder familiar serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o art. 22.
Art. 129, CC - São medidas aplicáveis aos pais ou responsável: (...)
X - suspensão ou destituição do poder familiar; (...)
Art. 1.638, CC - Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I - castigar imoderadamente o filho;
II - deixar o filho em abandono;
III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;
IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente. (grifos e destaques nossos)
Assim sendo, comprovada a situação de risco suportada por criança ou adolescente, a permanência do “status quo” pode tornar mais grave as vulnerabilidades e acarretar prejuízo irreparável ao seu desenvolvimento físico, mental e social, motivo pelo qual, deve se fazer cessar a situação de abandono e de risco por período indeterminado, sob pena de prejuízo irreparável ao desenvolvimento saudável da criança ou adolescente que tem o direito de crescer em ambiente familiar que lhe promova e garanta cuidado, proteção e afeto.
Vejamos o posicionamento dos Tribunais acerca da matéria:
EMENTA: APELAÇÃO. DESTITUIÇÃO DE PODER FAMILIAR. GUARDA. Tendo havido negligência materna, com prova de que a genitora não apresenta condições de exercer o poder familiar, adequada a destituição do mesmo. Descumprimento do dever de sustento, guarda e educação (art. 231, IV e 229 da CF/88). A guarda destina-se a regular a posse de fato (art. 33, §1º do ECA), sendo que o menor está bem-adaptado com a família substituta. APELO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70006857700, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 09/10/2003)
APELAÇÃO CÍVEL. DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR E ADOÇÃO. ABANDONO DE MENOR. NEGLIGÊNCIA NO EXERCÍCIO DO PODER FAMILIAR. DANOS À SAÚDE E AO DIREITO DE SER INSERIDA EM UM NÚCLEO FAMILIAR. ADOÇÃO CONCEDIDA. - Justifica a extinção do poder familiar a negligência nos deveres de sustentar, educar e guardar a menor, permanecendo a criança por vários meses em abrigo, por não deter a família biológica condições de provê-la com os cuidados necessários ao seu desenvolvimento saudável, sob o aspecto físico, mas também intelectual, emocional, afetivo, espiritual e social.- Hipótese em que a menor nasceu com problemas de saúde decorrentes do alcoolismo da mãe, tendo sido prestados auxílios por programas sociais à família sem se obter o retorno esperado, ausente estrutura necessária para criar a menina. - Verificada a adaptação da criança na família substituta, onde encontrou todo o amparo necessário para viver dignamente, e presentes os requisitos legais, cabe a adoção, resguardando-se os melhores interesses da infante.- Recurso improvido. (Tribunal de Justiça de Minas Gerais), processo no. 10024.05.570839-0/001(1), Relator HELOISA COMBAT, data de julgamento 27/11/2007).
Neste sentido, dispõe o Art. 100, ECA:
Art. 100, ECA - Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.
Parágrafo único. São também princípios que regem a aplicação das medidas:
I - condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos: crianças e adolescentes são os titulares dos direitos previstos nesta e em outras Leis, bem como na Constituição Federal;
II - proteção integral e prioritária: a interpretação e aplicação de toda e qualquer norma contida nesta Lei deve ser voltada à proteção integral e prioritária dos direitos de que crianças e adolescentes são titulares
IV - interesse superior da criança e do adolescente: a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do adolescente, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto;
VI - intervenção precoce: a intervenção das autoridades competentes deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida;
VIII - proporcionalidade e atualidade: a intervenção deve ser a necessária e adequada à situação de perigo em que a criança ou o adolescente se encontram no momento em que a decisão é tomada
X - prevalência da família: na promoção de direitos e na proteção da criança e do adolescente deve ser dada prevalência às medidas que os mantenham ou reintegrem na sua família natural ou extensa ou, se isto não for possível, que promovam a sua integração em família substituta. (…) (grifos e destaques nossos)
Em síntese, evidenciada a incapacidade da parte promovida em cumprir com seus deveres legais para com os filhos, crianças e adolescentes sob sua tutela ou curatela e, consequentemente, a impossibilidade de continuar no exercício do pátrio poder; justifica-se de pronto o ajuizamento de ação de destituição do poder familiar, medida extrema capaz de oportunizar às crianças e aos adolescentes a possibilidade de colocação em família substituta ou ampliada que possa lhes oferecer condições de pleno desenvolvimento.
Dispõe o Art. 157 do Estatuto da Criança e do Adolescente acerca da possibilidade de se suspender, em caráter liminar, o poder familiar da parte suplicada:
Art. 157, ECA - Havendo motivo grave, poderá a autoridade judiciária, ouvido o Ministério Público, decretar a suspensão do poder familiar, liminar ou incidentalmente, até o julgamento definitivo da causa, ficando a criança ou adolescente confiado a pessoa idônea, mediante termo de responsabilidade. (grifo e destaque nosso)
Desta feita, o requisito essencial para o cabimento da ação é a existência de motivo grave; gravidade essa que deve ser aferida, por óbvio, de acordo com o grau de violação de direito; negligência e abandono praticados contra crianças e adolescentes.
Além dessas situações, merece destaque a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela, em caso da prática de crimes dolosos sujeitos à pena de reclusão. Trata-se de efeito da condenação disposto no art. 92, inc. II, do Código Penal, cujo propósito é evitar que condenados pela prática de delitos que contrariam a natureza do poder familiar mantenham seu exercício em detrimento dos interesses de quem está submetido a esse poder.
A Lei 13.715/18 alterou o teor do art. 92, do Código Penal e ampliou as hipóteses de perda do poder familiar por incapacidade e passou a incluir entre as vítimas que atraem o referido efeito também outros descendentes.
Incluem-se nessas situações os casos de violência doméstica, não importa se do homem contra a mulher ou da mulher contra o homem. O indivíduo que agride a mulher ou companheira grávida e lhe provoca, por exemplo, aceleração do parto, comete crime de lesão corporal de natureza grave, apenada com reclusão de um a cinco anos e pode ser privado do exercício do poder familiar sobre o filho nascido prematuramente em decorrência da agressão. Da mesma forma, ex-cônjuges, ex-companheiros ou mesmo ex-namorados que exerçam o poder familiar sobre menores de idade, e que cometam crimes apenados com pena de reclusão contra a outra pessoa que partilhe do mesmo poder, podem sofrer este efeito da condenação.
Incluem-se também os crimes cometidos contra descendente que não o próprio filho, quando a vítima é filho ou filha de alguém também menor de idade, submetido ao poder familiar do agressor. Nesse caso, a lei, em sua nova redação, permite que o autor do crime perca o poder familiar em relação a seu filho.
É possível ainda vislumbrar a perda do poder familiar nos casos de crime cometido contra descendente, distinto de filho, mas que, em face da gravidade da situação concreta, seja possível concluir que a manutenção do poder familiar sobre o filho contraria seus interesses.
Assim, traçando um paralelo com a condição de indignidade que exclui da sucessão os herdeiros que houverem sido autores, coautores ou partícipes de homicídio doloso contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente, apesar de não serem vítimas diretas da conduta praticada pelo agente, de alguma forma estão colocados em risco por ela, nos termos da Lei 13.715/18 que alterou o ECA e passou a permitir a perda do poder familiar sobre menores
A Lei 13.715/18 alterou também o Código Civil para inserir no art. 1.638 um parágrafo único dispondo que perde o poder familiar quem:
I– praticar contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar:
a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher;
b) estupro ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão;
II – praticar contra filho, filha ou outro descendente:
a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher
b) estupro, estupro de vulnerável ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão.
É o que ensina Sílvio de Savio Venosa:
“Não é exigida a condenação penal. O exame da prova será todo do juízo cível. Indigno é o que comete o fato e não quem sofre a condenação penal (Pereira, 1984, v. 6:30).”
“No entanto, se o juízo conclui pela inexistência do crime ou declara não ter o agente cometido o delito, bem como se há condenação, isso faz coisa julgada no cível.”
(Direito Civil – Direito das Sucessões. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 62/63)
Por fim, a Lei 13.715/18 alterou o art. 23, § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente para – assim como fez no art. 92, inc. II, do CP – ampliar sua incidência:
“A condenação criminal do pai ou da mãe não implicará a destituição do poder familiar, exceto na hipótese de condenação por crime doloso sujeito à pena de reclusão contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar ou contra filho, filha ou outro descendente”.
O procedimento de destituição do poder familiar está previsto nos art. 152 a 164 do Estatuto da Criança e do Adolescente, aplicando-se subsidiariamente as regras do CPC, no que lhe não for contrário. A perda ou suspensão do poder familiar e da tutela somente será decretada após processo judicial respeitado o contraditório das partes demandadas.
Aos procedimentos quer versem sobre o interesse de criança e adolescentes é assegurada, sob pena de responsabilidade, prioridade absoluta na tramitação dos processos e procedimentos previstos na lei, assim como na execução dos atos e diligências judiciais a eles referentes. Para tanto, os prazos estabelecidos no ECA e aplicáveis aos seus procedimentos são contados em dias corridos, excluído o dia do começo e incluído o dia do vencimento, vedado o prazo em dobro para a Fazenda Pública e o Ministério Público.
Assim, nos termos do art. 155, do Estatuto da Criança e do adolescente, o procedimento para a perda ou a suspensão do poder familiar terá início por provocação do Ministério Público, da Defensoria Pública ou de quem tenha legítimo interesse, por meio de petição apta, nos termos do art. 156 c/c art. 319 do CPC. Na tramitação do processo, será nomeado curado especial à criança ou adolescente a ser destituída, salvo se a ação tiver sido proposta pelo Ministério Público.
O prazo máximo para conclusão do procedimento será de 120 (cento e vinte) dias, e caberá ao juiz, no caso de notória inviabilidade de manutenção do poder familiar, dirigir esforços para preparar a criança ou o adolescente com vistas à colocação em família substituta.
Havendo motivo grave, poderá a autoridade judiciária, ouvido o Ministério Público, como custos legis, decretar a suspensão do poder familiar, liminar ou incidentalmente, até o julgamento definitivo da causa, ficando a criança ou adolescente confiado a pessoa idônea, mediante termo de responsabilidade ou colocada em acolhimento institucional.
A parte requerida será citado para, no prazo de dez dias, oferecer resposta escrita, indicando as provas a serem produzidas, oferecendo, desde logo, o rol de testemunhas e documentos com os quais pretende se contrapor ao pedido.
Reitere-se que, para a validade do processo, é necessário o esgotamento de todos os meios para localização dos requeridos e sua citação pessoal, caso em que se iniciarão as tentativas de citação por hora certa e por edital.
Em que pese o entendimento minoritário, o poder familiar é indisponível, portanto, uma vez citado por edital ou deixando o réu de apresentar resposta não lhe serão aplicados os efeitos da revelia.
Para Nucci, havendo inercia por parte dos requeridos “...deveriam ser aplicados os efeitos da revelia (art. 344 do CPC), julgando-se procedente a ação”. Contudo, esse não tem sido o entendimento majoritário da doutrina e jurisprudência pátrios.” (NUCCI, Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, 2016)
Desta feita, por se tratar de direito indisponível, não podendo os réus arcarem com os custos de um advogado, deverá ser nomeado defensor público ou, na falta dele, defensor dativo. Assim sendo, ao réu revel citado por edital ou com hora certa, bem como ao réu preso será nomeado curador especial, de modo que lhe seja assegurada a ampla defesa e o contraditório.
Se o pedido não for contestado e tiver sido concluído o estudo social ou a perícia realizada por equipe interprofissional ou multidisciplinar do Juizado da Infância e Juventude, a autoridade judiciária dará vista dos autos ao Ministério Público, por 5 (cinco) dias, como custos legis e decidirá em igual prazo.
Após isso, a autoridade judiciária, de ofício ou a requerimento das partes ou do Ministério Público, determinará a oitiva de testemunhas que comprovem a presença de uma das causas de suspensão ou destituição do poder familiar. Se o pedido importar em modificação de guarda, será obrigatória, desde que possível e razoável, a oitiva da criança ou adolescente, respeitado o estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida.
Se apresentada resposta, a autoridade judiciária dará vista dos autos ao Ministério Público, por cinco dias, salvo quando este for o requerente, designando, desde logo, audiência de instrução e julgamento, para oitiva das testemunhas, colhendo-se oralmente o parecer técnico, se não apresentado por escrito, manifestando-se sucessivamente o requerente, o requerido e o Ministério Público.
Concluída a instrução, colhidas todas as provas e relatório social pela equipe interprofissional do Juizado da Infância e Juventude ou do Fórum, nas Comarcas onde não houver Juizado, será proferida sentença que, caso decrete a perda ou a suspensão do poder familiar, deverá ser averbada à margem do registro de nascimento da criança ou adolescente.
4.1 Da competência do juízo da Infância e Juventude
O reconhecimento de um direito pela norma jurídica de um Estado, especialmente quando se trata de direito fundamental diretamente vinculado ao princípio da dignidade, da proteção integral e ao melhor interesse da criança e do adolescente careceria de sentido se não lhe fosse garantido o direito a um provimento judicial que assegure seu efetivo cumprimento em caso de violação ou omissão.
Nesse sentido, o Sistema Justiça assume relevante papel para a efetividade dos direitos reconhecidos pelo sistema legal e deve, por isso mesmo, atuar no sentido de dar à devida proteção ao cidadão titular de um direito, ainda mais quando se trata de pessoa em estado de vulnerabilidade, como é o caso daqueles que necessitam se socorrer da via judiciária para fazer valer seus direitos à proteção, à dignidade e à convivência familiar onde lhes seja assegurado afeto e cuidado.
Em razão da relevância dos interesses tutelados e da demonstração da situação de risco pessoal e social envolvendo crianças e adolescentes é da competência da Justiça da Infância e Juventude para conhecer e julgar as ações de destituição do poder familiar e para aferição da medida mais adequada prevista pela Lei nº 8.069/90, em observância aos princípios da proteção integral e do melhor interesse.
Art. 148. A Justiça da Infância e da Juventude é competente para:
VII - conhecer de casos encaminhados pelo Conselho Tutelar, aplicando as medidas cabíveis.
Parágrafo único. Quando se tratar de criança ou adolescente nas hipóteses do art. 98, é também competente a Justiça da Infância e da Juventude para o fim de: a) conhecer de pedidos de guarda e tutela; b) conhecer de ações de destituição do pátrio poder poder familiar, perda ou modificação da tutela ou guarda;
Sendo assim, em face da condição peculiar de crianças e adolescentes, consideradas pessoas em desenvolvimento, da relevância dos interesses tutelados e da demonstração da situação de risco pessoal e social, esses indivíduos são beneficiários de obrigações por parte da família, da sociedade e do Estado (Arts. 1º, 3º e 6º da Lei 8.069/90), razão pela qual, de acordo com o princípio da Proteção Integral, preceituada pela Constituição Federal, estabeleceu-se a competência da Justiça da Infância e Juventude conhecer e julgar as ações de destituição do poder familiar.
4.2 Da competência territorial
Como é de comum sabença, a regra de fixação de competência, prevista no artigo 43 do CPC/2015, estabelece que nas ações de natureza civis, a competência será fixada pelo domicílio dos pais ou responsáveis, e, na ausência destes, do lugar em que se encontra a criança ou o adolescente. O mesmo artigo 43 do Código de Processo Civil dispõe que a mudança voluntária de domicílio não altera a competência firmada no momento da distribuição da demanda.
Todavia, o STJ firmou o entendimento de que deve prevalecer o princípio do superior interesse da criança. Assim, a mudança de domicílio do infante, depois do ajuizamento da demanda, pode acarretar a alteração da competência do juízo, aplicando de forma subsidiária ao Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei n.º 8.069/1990:
PROCESSO CIVIL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO D E RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL C/C GUARDA DE FILHO. MELHOR INTERESSE DO MENOR. PRINCÍPIO DO JUÍZO IMEDIATO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITANTE. 1. Debate relativo à possibilidade de deslocamento da competência em face da alteração no domicílio do menor, objeto da disputa judicial . 2. Em se tratando de hipótese de competência relativa, o art. 87 do CPC institui, com a finalidade de proteger a parte, a regra da estabilização da competência (perpetuatio jurisdictionis), evitando-se, assim, a alteração do lugar do processo, toda a vez que houver modificações supervenientes do estado de fato ou de direito. 3. Nos processos que envolvem menores, as medidas devem ser tomadas no interesse desses, o qual deve prevalecer diante de quaisquer outras questões.4. Não havendo, na espécie, nada que indique objetivos escusos por qualquer uma das partes, mas apenas alterações de domicílios dos responsáveis pelo menor, deve a regra da perpetuatio jurisdictionis ceder lugar à solução que se afigure mais condizente com os interesses do infante e facilite o seu pleno acesso à Justiça. Precedentes. 5. Conflito conhecido para o fim de declarar a competência do Juízo de Direito de Carazinho/RS (juízo suscitante), foro do domicilio do menor. (CC 114782, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 12.12.2012
O artigo 147, inciso I e II, do ECA, descreve que a competência será determinada pelo domicílio dos pais ou responsáveis, ou pelo lugar onde se encontre a criança ou adolescente, à falta dos pais ou responsáveis.
Dessa forma, entende Luciano Alves Rossato:
Se a criança ou o adolescente estiver em companhia de responsável (que não genitor), será o seu domicílio o competente, ainda que demandado pelos pais.
DE OUTRO LADO, SE ESTIVER A CRIANÇA OU O ADOLESCENTE EM CUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL OU FAMILIAR E NÃO FOR POSSÍVEL O SEU RETORNO AO GRUPO FAMILIAR DE ORIGEM, A AÇÃO SERÁ PROCESSADA PERANTE O FORO EM QUE SE ENCONTRA O INFANTE. (ROSSATO et AL., 2017)
Ainda segundo o entendimento dos referidos autores, há de se observar o princípio da perpetuatio jurisdiction, descrito no artigo 87, o qual privilegia a celeridade e a eficácia em relação à criança. Sendo assim, será legítima a modificação do foro em que tramita a ação, quando houver mudança de domicílio da criança e seus responsáveis, mesmo já iniciada a ação.
Destaque-se também a competência para processar e julgar ações conexas de interesse de menor é, em princípio, do foro do domicílio do detentor de sua guarda. O entendimento é da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e agora, passa a ser uma súmula, a de número 383:
Súmula 383
A competência para processar e julgar ações conexas de interesse de menor é, em princípio, do foro do domicílio do detentor de sua guarda.
Neste sentido, à guisa de fundamentação, segue também decisão sobre o conflito de competência suscitado sob o n. 43.322-MG (2004/0066767-4):
Competência Guarda menor. Prevalência do foro do domicílio de quem já exerce a guarda. Art. 147, da Lei n. 8.069, de 13.7.1990. Interesse do menor a preservar. Segundo a jurisprudência do STJ, a competência para dirimir as questões referentes ao menor é a do foro do domicílio de quem já exerce a guarda, na linha do que dispõe o art. 147, I, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Hipótese em que, ademais, a fixação da competência atende aos interesses da criança. Conflito conhecido, declarado o Juízo da 3ª Vara de Família de Niterói.
Assim, com base no mesmo entendimento, o juízo do local em que se encontra a criança e o adolescente poderá adotar qualquer decisão judicial que entender pertinente, como, por exemplo, conhecer de ação de medida de proteção e de destituição do poder familiar.
O Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei n.º 8.069/1990, em seus art. 101 e 147, dispõe:
Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:
I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade;
II - orientação, apoio e acompanhamento temporários;
III - matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental;
IV - inclusão em serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família, da criança e do adolescente; V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial;
VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;
VII - acolhimento institucional;
VIII - inclusão em programa de acolhimento familiar;
IX - colocação em família substituta.
§ 1.º O acolhimento institucional e o acolhimento familiar são medidas provisórias e excepcionais, utilizáveis como forma de transição para reintegração familiar ou, não sendo esta possível, para colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade.[…]
§ 7.º O acolhimento familiar ou institucional ocorrerá no local mais próximo à residência dos pais ou do responsável e, como parte do processo de reintegração familiar, sempre que identificada a necessidade, a família de origem será incluída em programas oficiais de orientação, de apoio e de promoção social, sendo facilitado e estimulado o contato com a criança ou com o adolescente.
Art. 147. A competência será determinada:
I - pelo domicílio dos pais ou responsável;
II - pelo lugar onde se encontre a criança ou adolescente, à falta dos pais ou responsável.
5. Das consequências da perda do poder familiar.
O poder familiar é irrenunciável, por se tratar de um múnus publico imposto aos pais em proveito não apenas dos filhos, mas de toda sociedade.
A destituição ou perda do poder familiar por descumprimento de dever legal acarreta a inscrição da criança ou adolescente no Sistema Nacional de Adoção -SNA, habilitando-a à adoção e, por consequência, a possibilidade de colocação em família extensa ou substituta.
Além das hipóteses de perda e extinção do poder familiar já expostas, a criança ou adolescente pode ainda ser inscrita no SNA, após entrega legal da mãe ou consentimento expresso dos titulares do poder familiar que deve ser colhido com observância das cautelas relacionadas no art. 166 da Lei 8.069/90 – ECA, procedimento que permite o arrependimento e retratação dos titulares do poder familiar até publicação da sentença de adoção, in verbis:
Art. 166. Se os pais forem falecidos, tiverem sido destituídos ou suspensos do poder familiar, ou houverem aderido expressamente ao pedido de colocação em família substituta, este poderá ser formulado diretamente em cartório, em petição assinada pelos próprios requerentes, dispensada a assistência de advogado.
§ 1o na hipótese de concordância dos pais, esses serão ouvidos pela autoridade judiciária e pelo representante do ministério público, tomando-se por termo as declarações.
§ 2º. o consentimento dos titulares do poder familiar será precedido de orientações e esclarecimentos prestados pela equipe interprofissional da justiça da infância e da juventude, em especial, no caso de adoção, sobre a irrevogabilidade da medida.
§ 3o o consentimento dos titulares do poder familiar será colhido pela autoridade judiciária competente em audiência, presente o ministério público, garantida a livre manifestação de vontade e esgotados os esforços para manutenção da criança ou do adolescente na família natural ou extensa.
§ 4o o consentimento prestado por escrito não terá validade se não for ratificado na audiência a que se refere o § 3o deste artigo.
§ 5o o consentimento é retratável até a data da publicação da sentença constitutiva da adoção”
O Estatuto da Criança e do Adolescente reconhece o direito de retratação do consentimento prestado pelos pais à adoção (art. 166, §5º), que impõe nesses casos seja ouvida a mãe novamente para que, uma vez devida e adequadamente orientada e contando com o apoio e o com acolhimento da família ampliada, quando possível, na forma como é prevista no mesmo art. 166, e, antes dele, no art. 100, parágrafo único, inciso XI, do Estatuto da Criança e do Adolescente), diga se ainda mantém seu consentimento, ad litteram:
“Art. 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.
Parágrafo único. São também princípios que regem a aplicação das medidas.
IV - interesse superior da criança e do adolescente: a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do adolescente, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto;
Assim, uma vez retratado o consentimento, devem ser avaliadas as condições e a possibilidades do retorno da criança ao convívio familiar ou a necessidade de colocação em família substituta ou acolhimento institucional provisório, conforme o caso concreto.
Importante destacar, desde logo, que a manifestação inicial do consentimento em relação à adoção não é causa de destituição do poder familiar (apenas autoriza a tramitação do processo de adoção sem a necessidade da instauração de um procedimento contencioso) e, uma vez retratado, inexistindo motivação outra que autorize a decretação daquela medida extrema e excepcional ou a necessidade de colocação em família substituta, a reintegração do filho menor no âmbito de sua família natural ou extensa será o caminho normal a seguir, por força da norma cogente expressamente versada no art. 100, par. único, inciso X, do ECA, já transcrito.
“Art. 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.
Parágrafo único. São também princípios que regem a aplicação das medidas:
X - prevalência da família: na promoção de direitos e na proteção da criança e do adolescente deve ser dada prevalência às medidas que os mantenham ou reintegrem na sua família natural ou extensa ou, se isto não for possível, que promovam a sua integração em família substituta;”
A condenação criminal pode ter efeitos que ultrapassam a execução forçada da sanção penal imposta. Há efeitos que decorrem automaticamente da sentença condenatória, como a obrigação de indenizar o dano causado e o confisco dos instrumentos e produtos do crime, assim como há outros que dependem da natureza do crime cometido e da devida fundamentação do juiz.
6. Considerações finais
O poder familiar pode ser conceituado como o complexo de direitos e deveres quanto à pessoa e bens do filho. É dever legal de todo e qualquer genitor proporcionar a sua prole os meios necessários e suficientes para que sejam atendidos seus direitos básicos fundamentais, de acordo com a situação econômica e social dos obrigados.
A extinção do poder familiar interrompe definitivamente o poder familiar, por concessão dos pais, mediante instrumento público; em caso de morte dos pais ou do filho; de emancipação do filho; da maioridade do filho; de adoção do filho, por terceiros; da perda por decisão judicial.
Os pais ou responsáveis ao deixarem de prover os meios adequados à fruição dos direitos elementares dos filhos ou faltarem com os deveres intrínsecos ao poder familiar sujeitam-se às consequências desses atos que podem ensejar a suspensão ou a perda do poder familiar, conforme dispõe o art. 129, X, da Lei 8.069/90 e art. 1.638, do Código Civil Brasileiro
A perda do poder familiar é determinada por decisão judicial, nas hipóteses previstas no art. 1.638 do CC, em caso de descumprimento pelos pais ou representantes legais, do dever legal de proteção e sustento e impondo grave risco aos filhos menores, vulneráveis pela própria natureza.
Em síntese, evidenciada a incapacidade dos pais ou responsáveis em cumprir os deveres legais com a criança e com adolescente e de continuar no exercício do poder familiar, justifica-se a destituição do poder familiar, medida extrema a oportunizar a criança e ao adolescente a possibilidade de colocação em família extensa ou substituta que possa lhes oferecer um ambiente familiar e salutar ao pleno desenvolvimento, ainda que provisório, podendo ser, inclusive, por meio de acolhimento institucional de caráter excepcional e provisório, enquanto perdurar esse estado de coisas, pelo prazo máximo de 18 meses, nos termos do art. 19, §2º, A do ECA.
Assim sendo, comprovada a situação de risco suportada por criança ou adolescente, a permanência do “status quo” poderá agravar a ainda mais as vulnerabilidades e acarretará prejuízo irreparável ao seu desenvolvimento físico, mental e social, motivo pelo qual, deve se fazer cessar a situação de abandono e de risco por período indeterminado, sob pena de prejuízo irreparável ao desenvolvimento saudável da criança ou adolescente que tem o direito de crescer em ambiente familiar que lhe promova e garanta cuidado, proteção e afeto.
A destituição ou perda do poder familiar por descumprimento de dever legal acarreta a inscrição da criança ou adolescente no Sistema Nacional de Adoção -SNA, habilitando-a à adoção e, por consequência, a possibilidade de colocação em família extensa ou substituta.
7. Referências Bibliográficas
BULOS, Uadi Lammego. Constituição Federal Anotada. São Paulo: Saraiva, 2002.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 6ª.ed.rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
DIDIER, FREDIE JR. Defensoria pública. Coleção Repercussões do Novo CPC. V.5. Salvador: juspodivm, 2015.
FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade; relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
______. Comentários ao novo Código Civil: do Direito de Família, do Direito Pessoal, das relações de parentesco. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direito de Família. Vol. VI. 4. ed. São Paulo, Saraiva, 2008.
MADALENO, Rolf. Novas perspectivas no direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.
MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009.
NUCCI, Guilherme de Souza. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 3ª edição. Revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
OLIVEIRA, José Sebastião de. Fundamentos constitucionais do direito de família. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002..
ROSSATO. Luciano Alves Et all. Estatuto da Criança e do Adolescente - Comentado Artigo Por Artigo . 9ª Edição. Saraiva: 2017
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004.
VALVERDE, Tadeu. Guia de Adoção. São Paulo: Ed. Roca. P. 637-645
VENOSA, Sílvio de Sávio. Direito Civil – Direito das Sucessões. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2013.
Defensora Pública do Estado do Ceará do Núcleo de Atendimento da Defensoria na infância e juventude – NADIJ . Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Especialista em Direito Empresarial pela UECE. Especialista em Direito Processual Civil e em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARRETO, Ana Cristina Teixeira. Breves Anotações Sobre a Destituição do Poder Familiar à Luz do Estatuto da Criança e do Adolescente. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 abr 2020, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54457/breves-anotaes-sobre-a-destituio-do-poder-familiar-luz-do-estatuto-da-criana-e-do-adolescente. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: André Luís Cavalcanti Chaves
Por: Lara Pêgolo Buso
Por: Maria Guilhermina Alves Ramos de Souza
Por: Denise Bueno Vicente
Por: CARLOS ALERTO DOS SANTOS JUNIOR
Precisa estar logado para fazer comentários.