MARCOS PAULO DA SILVA MOITA [1]
(coautor)
JULIANO DE OLIVEIRA LEONEL [2]
(Orientador)
RESUMO: A escolha do presente tema foi determinada na medida em que o art. 156 do Código de processo penal é violador do texto constitucional por ser princípio unificador do sistema inquisitorial frente à Constituição Federal de 1988. Para tanto analisam-se os princípios e garantias constitucionais que tange o sistema inquisitorial, a gestão da prova na mão do juiz é violadora do sistema acusatório delineado pelo texto constitucional, como também a imparcialidade do juiz e a gestão da prova, ante o quadro mental paranoico, primazia da hipótese sobre o fato. Por fim desenvolve-se uma crítica a inciativa probatória do juiz no processo penal, trazendo os argumentos acerca da incompatibilidade desta previsão legal com o sistema processual penal adotado pelo atual ordenamento jurídico e com as regras e princípios previstos na carta magna, com a constatação da parcialidade do juiz na instrução probatória que exerce de ofício no processo penal, confrontando modelo processual adotado no Brasil.
Palavras-chave: Sistemas Processuais. Processo Penal. Instrução Probatória.
ABSTRACT: The choice of the present theme was determined to the extent that art. 156 of the Code of Criminal Procedure violates the constitutional text as it is a unifying principle of the inquisitorial system compared to the 1988 Federal Constitution. For that purpose, the constitutional principles and guarantees that pertain to the inquisitorial system are analyzed, the management of the evidence in the hand of the judge violates the accusatory system outlined by the constitutional text, as well as the judge's impartiality and the management of the evidence, before the mental framework paranoid, primacy of the hypothesis over the fact. Finally, a criticism is developed of the judge's evidentiary initiative in the criminal process, bringing the arguments about the incompatibility of this legal provision with the criminal procedural system adopted by the current legal system and with the rules and principles provided for in the Constitution, with the confirmation of partiality of the judge in the probative instruction that he exercises in the criminal proceedings, confronting the procedural model adopted in Brazil.
Keywords: Process Systems. Criminal Proceedings. Evidence Instruction.
Sumário: 1 Introdução. 2 Sistemas processuais penais: gestão da prova e a busca da verdade no processo penal: 2.1 Sistema processual Acusatório; 2.2 Sistema processual inquisitório; 2.3 Da inexistência de um sistema misto. 3 A instrumentalidade do processo penal: 3.1 Máxima eficácia de direitos e garantias fundamentais; 3.2 Natureza jurídica e a base principiológica processual penal. 4 Da incosntitucionalidade do art. 156 do código de processo penal: 4.1 A iniciativa instrutória do juiz perante o sistema constitucional acusatório; 4.2 Quebra da imparcialidade. 5 Conclusão. Referências.
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa trata acerca da análise do art. 156 do Código de Processo Penal - CPP (1941) enquanto violador do texto constitucional por ser princípio unificador do sistema inquisitorial. Visto que, a função originária do juiz não condiz com a citada conduta, o que pode tornar-se arbitrária e causar dúvidas quanto o respeito aos princípios constitucionais.
Diante disso, é evidente que os artigos que compõem o Código de Processo Penal devem identificar-se com os ideais democráticos da Constituição Federal (1988), isto é, por ser norma superior, hierarquicamente, as demais devem obedecer as prerrogativas descritas. Entretanto, é factual que apesar dos avanços da norma jurídica, ainda se registram retrocessos diante do respeito à Carta Magna.
Ademais, quando há abertura no Código de processo penal quanto à possibilidade de produção de provas de ofício pelo o juiz e este age de forma imparcial durante o processo, o modelo adotado pela Constituição Federal (1988) é frontalmente colidido. Sendo assim, culmina na adoção de um modelo processual diferente do adotado no Brasil. Como veremos, são resquícios de um processo inquisitório predominante na maioria dos sistemas processuais da antiguidade, ou seja, um retrocesso dentro do processo penal brasileiro, onde viola normas constitucionais incorporadas no seu texto.
Busca-se então, com o presente estudo, analisar a concepção que foi ampliada com a inovação na legislação, considerando se é ou não adequada à diretriz Constitucional. Tem-se como objetivo, avaliar as posições doutrinárias pertinentes no tocante à constitucionalidade das mudanças ocorridas. Além disso, perscrutar se há violação na presunção de inocência, como no sistema acusatório que vigora atualmente no ordenamento pátrio.
Portanto, o sistema acusatório utilizado pelo Estado brasileiro não pode sofrer tamanha afronta, devendo repelir normas editadas nos princípios constitucionais. Pois a segurança jurídica deve ser um pressuposto inarredável na garantia de um devido processo legal, sendo, a dialética processual, um direito inafastável das partes, na instrução e no processo.
2 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS: GESTÃO DA PROVA E A BUSCA DA VERDADE NO PROCESSO PENAL
Justifica-se o presente estudo, mesmo diante do senso comum teórico (STRECK, 2001) [3], porque segundo Silva (2011, p. 17) [4]: “Muito daquilo que, para os operadores de uma disciplina jurídica é tido como ponto pacífico pode ser (...) um completo despropósito”. E, para tanto, necessário se torna analisar os sistemas processuais penais.
Dessa maneira, o que se buscará, nas linhas que se seguem, será a tentativa, quase impossível, segundo Coutinho (2012, p. 41) [5], “de compatibilizar a Constituição Federal de 1988, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália” [6]. Aliás, neste cenário de um verdadeiro choque ideológico entre a Constituição Federal de 1988, de nítida matriz democrática (FERRAJOLI, 2014) [7], e o Código de Processo Penal de 1941, claramente fascista, policialesco, ditatorial e autoritário, não se pode perder de vista que, nos dizeres de Novais (2006) [8], inspirando-se em Dworkin, ter um direito fundamental é ter um trunfo contra o Estado ou contra a maioria[9].
De plano, não se almeja realizar uma historiografia dos sistemas processuais, mas “uma pequena construção dos sistemas processuais é necessária” (GLOECKNER, 2013, p.134) [10] para sedimentar as noções elementares a fim de se analisar a possibilidade de se poder ou não fazer uso, na busca da captura psíquica dos jurados, dos atos de investigação na sessão de julgamento pelo Tribunal do Júri, bem como o double jeopardy, por exemplo, dentre tantos outros reflexos e previsões a nível infraconstitucional.
Inicialmente, poder-se-ia conceituar, sistema processual penal como “o conjunto de princípios e regras constitucionais, de acordo com o momento político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas à aplicação do direito penal a cada caso concreto” [11].
Lopes Jr. (2012) [12] adverte que na história do Direito, alternaram-se momentos de amplas liberdades e duras opressões, sendo que os sistemas acusatórios e inquisitivos[13] refletem as exigências do Direito e do Estado da época. Nesse sentido, Goldschmidt (1935, p. 67) [14] leciona que “los princípios de la politica procesal de uma nación no son outra cosa que segmentos de su política estatal em general”, destacando Zaffaroni (2004, p. 27-28) [15] que “todo discurso penal autoritário (y totalitário) es una reiteracióndel discurso inquisitorial”.
Logo, nossa construção legislativa processual penal infraconstitucional está apoiada na “busca da verdade real”, inclusive, nos pontos que já foram objeto de reforma, como por exemplo, se infere das alterações trazidas no rito do júri em 2008 e no malfadado e inconstitucional artigo 156 do Código de Processo Penal (1941), com redação dada pela Lei 11.690, de 09 de junho de 2008.
Além da patente inconstitucionalidade do artigo 156 do Código de Processo Penal (1941), que de há muito já deveria ter sido reconhecida pelos Tribunais, parece-nos agora que em razão do chamado Pacote anticrime, teria se operado a sua revogação, ainda que tácita.
O art. 3º-A. do Código de Processo Penal (1941) [16], inserido pela lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, prevê que o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação. Desse modo, não haveria mais a possibilidade de determinação de produção de prova de ofício pelo juiz na fase investigativa ou durante a instrução processual.
Cumpre ressalvar que, acertadamente, Carnelutti (1965) [17], com apoio em Heidegger, adverte que a verdade está no todo e não nas partes, sendo que o todo é demais pra nós, o que evidencia ser a “verdade real” um mito.
Contudo, se a busca da verdade real é uma utopia, no processo penal, de acordo com Ávila (2013, p. 35) [18] “é impossível negar por completo a verdade. É um ‘erro’ negar a verdade no processo penal, pois seria pretender construir uma ‘verdade que é falsa na sua essência”. Ensina ainda o referido autor que “a verdade processual não pretende ser, como a ‘real’, a verdade. É condicionada em si mesma pelo respeito ao sistema de garantias e não obtida mediante indagações inquisitivas ‘alheias ao objeto processual’” (AVILA, 2013, p. 35).
Dessa maneira, o processo penal é uma tentativa sempre aproximada de reconstrução do passado, respeitando-se as regras do jogo. Nesse sentido, Lopes Jr. (2012, p. 568) [19]:
Em suma, a verdade real é impossível de ser obtida. Não só porque a verdade é excessiva, senão porque constituí um gravíssimo erro falar em ‘real’, quando estamos diante de um fato passado, histórico. É o absurdo de equiparar o real ao imaginário. O real só existe no pres0ente. O crime é um fato passado, reconstruído no presente, logo, no campo da memória, do imaginário. A única coisa que ele não possui é um dado de realidade.
O que se precisa entender, a partir de Khaled Jr. (2013) [20], é que a verdade no processo penal não é algo a ser buscada, por ser impossível de ser encontrada, já que o crime é sempre um fato histórico. Mas, sim, que a verdade, através dos rastros de passeidade [21], é construída no processo, assemelhando-se o trabalho do magistrado ao do historiador, sendo ela, inclusive, analógica ao fato criminoso (ROSA; KHALED JR, 2014).
Considerar a passeidade como elemento crucial do referencial cognitivo processual nos leva a considerar que os historiadores não estudam os eventos enquanto acontecem, mas sim as condutas dos homens, ou seja, os eventos protagonizados por eles em um tempo já passado, em um tempo escoado. Da mesma forma, os juízes tomam decisões com base na formação de sua convicção sobre a ocorrência de condutas que foram protagonizadas por pessoas, através de um meio muito peculiar que é o processo (KHALED JR, 2013, p.335) [22].
Dessa forma, a verdade no processo penal acusatório é sempre contingente, não podendo ser fundante do sistema processual. O processo penal democrático, portanto, não pode ter por finalidade principal a impossível “busca da verdade real”, que serviu apenas para fundar a construção de processos penais utilitaristas e autoritários, que por evidente é incompatível com o atual paradigma constitucional.
2.1 Sistema processual Acusatório
O sistema acusatório assegura a imparcialidade e a tranquilidade psicológica do juiz que irá sentenciar, garantido o trato digno e respeitoso com o acusado, que deixa de ser um mero objeto para assumir sua posição de autêntica parte passiva do processo penal.
Aponta, ainda, Lopes Jr. (2012, p. 118-119) [23], as seguintes notas características do sistema acusatório, na atualidade:
a) clara distinção entre as atividades de acusar e julgar; b) a iniciativa probatória deve ser das partes (decorrência lógica da distinção entre as atividades); c) mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio a labor de investigação e passivo no que se refere à coleta da prova, tanto de imputação como de descargo; d) tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunidades no processo); e) procedimento é em regra oral (ou predominantemente); f) plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte); g) contraditório e possibilidade de resistência (defesa); h) ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional; i) instituição, atendendo a critérios de segurança jurídica (e social) da coisa julgada; j) possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição.
Lopes Jr. (2012) [24] destaca ainda que, o sistema acusatório predominou até o Século XII, quando passou a sofrer a crítica de que a inércia do juiz, no campo da gestão da prova, fazia com que o julgador tivesse que decidir com base em um material probatório defeituoso, fruto de uma atividade incompleta das partes. Assim, ao longo do Século XII até o XIV, o sistema acusatório vai sendo substituído pelo inquisitório, em razão “dos defeitos” da inatividade das partes na produção das provas, levando o Estado a assumir a gestão da prova, a fim de não se deixar apenas nas mãos dos particulares essa função, pois isso comprometeria a eficácia do combate à criminalidade.
Aliás, a gestão da prova é o núcleo fundante dos sistemas processuais. Dessa forma, a mera separação das funções de acusar e julgar no processo penal não é o que realmente define e diferencia o sistema inquisitório do acusatório (LOPES JR., 2012) [25].
Com acerto, Goldschmidt (1935) [26]ensina que no sistema acusatório, a produção da prova, ou seja, a apresentação de requerimentos e o recolhimento do material probatório compete às partes, cabendo ao juiz tão-somente decidir.
2.2 Sistema processual inquisitório
À luz do que se expôs, percebe-se nitidamente que o sistema inquisitório, fundado no princípio inquisitivo (gestão das provas nas mãos do juiz) é construído a partir de um conjunto de falaciosos conceitos, especialmente o da busca da “verdade real0” (CAPEZ, 2011) [27] e “se este é o seu fim esta é seu definitivo mote, se está autorizado a encontrá-la a qualquer preço: doa a quem doer, custe o que custar, até tratar o réu como objeto onde se encontra a verdade” (CARVALHO, 2013, p. 145) [28]. Inclusive, cumpre ressaltar que, foi essa busca desenfreada pela “verdade real” que gerou a derrocada do sistema acusatório e o surgimento do nefasto sistema inquisitorial.
O problema é que, como adverte Carvalho (2013, p. 135-136) [29] “embora as práticas inquisitoriais sejam fortemente erradicadas no século XIX, quando os Tribunais do Santo Ofício são definitivamente abolidos em Portugal (1821) e Espanha (1834), sua matriz material e ideológica predominará na legislação laica”, continuando a orientar “a tessitura dos sistemas penais da modernidade”.
E, um claro exemplo disso é o Brasil, já que o malfadado artigo 156 do Código de Processo Penal (1941) reflete a adoção infraconstitucional do princípio inquisitivo, ao prever a possibilidade do julgador produzir provas de ofício, inclusive, na fase de investigação. Nesse sentido, Coutinho (2001, p. 29) [30] afirma que “O sistema processual penal brasileiro é, na sua essência, inquisitório, porque regido pelo princípio inquisitivo, já que a gestão da prova está, primordialmente, nas mãos do juiz”.
2.3 Da inexistência de um sistema misto
Coutinho (2001, p. 28) [31], afirma que “a gestão da prova, na forma pela qual ela é realizada, identifica o princípio unificador” do sistema processual, apontando que o princípio dispositivo é o núcleo estruturante do sistema acusatório, onde a gestão das provas está nas mãos das partes, sendo o juiz um mero espectador, enquanto no princípio inquisitivo a gestão das provas está nas mãos do julgador, cabendo-lhe a produção de ofício. Alerta, ainda, o referido autor que não existe um princípio misto e, portanto, não haveria um sistema “misto”, como sugere parte da doutrina pátria (NUCCI, 2007) [32].
Realmente, por não haver um princípio unificador “misto” não se pode sustentar a existência de um sistema “misto”, já que a construção de um sistema exige uma viga-mestra. Ademais, os sistemas acusatório e inquisitório, de maneira “pura”, são dados históricos, pois hoje o que existe é uma mescla de elementos dos dois sistemas (LOPES JR., 2012) [33].
Logo, na atualidade, poderemos ter um sistema nitidamente inquisitorial com adereços do acusatório ou, ao contrário, um sistema predominantemente acusatório com acessórios inquisitoriais. Mas, certamente, na esteira de Coutinho (2001) [34], essa simbiose, nos dias de hoje, dos dois sistemas ao longo da persecutio criminis não configuraria a existência de um sistema “misto”, como se existisse essa terceira espécie do gênero sistema processual.
3 A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO PENAL
3.1 Máxima eficácia de direitos e garantias fundamentais
À medida que o Estado consegue identificar o perigo que trazia a auto tutela, avoca para si o monopólio da justiça, a partir de então, substitui a necessidade da justiça com as próprias mãos, ou melhor, a vingança privada. Logo a elaboração das penas veio como meio necessário para coibir a prática de delitos, fazendo com que haja o monopólio estatal para assumir a responsabilidade sobre a tutela social e o possível infrator (LOPES JR., 2014).
Dessa maneira, as penas surgem para coibir a prática de delitos e aplicar sanção sobre aqueles que praticarem tal ato, em que estes representam uma transgressão da ordem social. Portanto, leciona Lopes Jr (2014) que ao tomar para si a responsabilidade de manter a paz social, cabe ao Estado utilizar-se de suas prerrogativas legais para interceder contra o autor do delito, denominada jus puniendi.
Segundo Greco (2015) se certo indivíduo praticar um fato típico, antijurídico e culpável, nasce para o Estado a prerrogativa de poder-dever punir o autor do delito, por isso, ante a uma violação de um bem juridicamente protegido nasce o direito pela busca da tutela jurisdicional, em que a mesma utilizará o processo judicial cometido de um terceiro imparcial, dotado de poder estatal para solucionar o conflito e atribuir sanção.
Nesse viés, Khaled Jr. (2013, p. 142) [35]afirma que:
"O processo deve ser um limite ao poder; se não fosse esse o seu sentido, sequer precisaria existir. Trata-se de um meio de redução da complexidade que condiciona a manifestação do poder punitivo a um conjunto de requisitos, exigindo que o processo seja o caminho necessário – o único possível – para a imposição da pena".
Nessa linhagem, a atuação do Direito Processual Penal enquadra-se somente como meio legítimo para a aplicação do Direito Penal, até porque que o mesmo não possui autonomia para a efetivação do direito material fora do processo, visando apenas a segurança da sociedade. Entretanto, deve-se compreender que a finalidade do processo não é somente a pretensão acusatória, paralelamente subsiste a função constitucional do processo, ou seja, o mesmo serve como instrumento para assegurar direitos e garantias fundamentais, configurando assim o estado democrático de direito (LOPES JR., 2014).
Destarte, reconhecendo a legitimidade da atuação estatal-arbitrária, frente a situações delitivas, deve ser levado em consideração o autor do delito, que a prima facie, tutelado pelo mesmo Estado e dotado também de prerrogativas constitucionais, ao cometer um crime dificilmente seus direitos e garantias constitucionais são assegurados. Portanto o Processo Penal entra em cena visando não deixar o indivíduo à disposição a uma equivocada atuação do jus puniendi estatal, buscando a máxima eficácia de seus direitos tutelados pela Carta Magna.
Levando em consideração ao contexto histórico e cultural do Código de Processo Penal (1941), deve-se compreender esse viés inquisidor imposto pelo Estado, dessa maneira necessário se faz, no âmbito do processo penal, uma revolução hermenêutica, com a quebra dos paradigmas autoritários de uma ordem legal (CPP) anacrônica, policialesca, fascista, punitivista, fomentadora da violência estatal e de nítida base ditatorial. Na atual quadra da história, mister se faz uma nova ordem processual penal, constitucional e internacionalmente comprometida com a proteção da dignidade da pessoa humana.
Aliás, Coutinho (2010, p. 16-17) [36] de há muito sustenta que “não esquecer, porém, antes de tudo, que se não volta atrás nas conquistas democráticas de direitos e garantias constitucionais, sob pena de se perder a própria democracia”.
Nessa seara, acertadamente, Giacomolli (2015, p. 12) [37] leciona que “uma leitura convencional e constitucional do processo penal, a partir da constitucionalização dos direitos humanos, é um dos pilares a sustentar o processo penal humanitário”. Assim, para ele há que se falar em processo penal constitucional, convencional e humanitário. Dessa maneira, prosseguindo em suas ilações, exalta que a proteção convencional internacional dos direitos é justificada na Comissão Americana de Direitos Humanos – CADH (1969), por serem atributos da pessoa humana, cujo ser humano é reconhecido e integra a normatividade internacional (GIACOMOLLI, 2015).
Portanto o modo de operar o jus puniendi não pode ser desproporcional. Visto que o fato gerador da atuação legítima dos órgãos estatais em um Estado Democrático de Direito, encontra-se pautado no respeito a direitos e liberdades individuais que tão caro custaram para serem reconhecidos.
3.2 Natureza jurídica e a base principiológica processual penal
A busca para determinar o vínculo entre as partes envolvidas no processo (Juiz, Acusador e Réu) e a estrutura dessa relação fez emergir vertentes que ao longo do tempo buscaram determinar a natureza jurídica que traz a essência do direito processual penal. Reescrevendo a imprecisa concepção de processo como relação jurídica, Bullow traduz que a relação processual traz direitos e obrigações recíprocas, inter partes e entre as partes e o juiz, portanto o acusado deixa de ser mero objeto do processo e passa a ser um sujeito de direitos e deveres, ou seja, possui os mesmos direitos da acusação; porém essa equivocada concepção de processo parte de uma equívoca noção de igualdade e segurança (LOPES JR., 2014).
Ratificando essa vertente, Lopes Jr. (2014, p.66), leciona que para Bulow “o processo é uma relação jurídica de direito público, autônoma e independente da relação jurídica de direito material”, ou seja, é de direito público, pois a tutela jurisdicional se dá por um ente estatal em que visa assegurar direitos e garantias individuais das partes; por conseguinte, a forma contínua que se dá essa tutela jurisdicional é resultado de atos sucessivos já delineados para as partes.
A partir de Beck (2011) [38] é inegável que vivemos numa sociedade de risco, onde os riscos estão em tudo e em todos os lugares, evidenciando que estamos inseridos num Estado Insegurança. Logo, por óbvio, que o processo penal não está fora desse contexto, ao contrário, também está inserido na mais completa epistemologia da incerteza, já que a sentença judicial nunca pode ser prevista com segurança, coexistindo em igualdade de condições a possibilidade de serem prolatadas no processo sentenças justas e injustas (LOPES JR., 2012) [39].
Logo, a melhor representação do processo se dá na concepção de Goldschmidt (1935), que reflete a verdadeira essência processual, retratando o mesmo como uma situação de guerra, envolto numa epistemologia da incerteza, dotado de dinamicidade, em que o mais habilidoso sairá vencedor, para isso deverá aproveitar as chances processuais, formando a sua base persuasiva recheada de elementos probatórios para levar ao convencimento do juiz.
Dessa maneira, destaca Calamandrei (1999, p. 224) [40]: “Afortunada coincidência é a que se verifica quando entre dois litigantes o mais justo seja também o mais habilidoso”, sendo que para ele o processo “vem a ser nada mais que um jogo no qual há que vencer”.
O processo como uma situação jurídica, retrata um conjunto de rel(ações) processuais que as partes dispõem de situações para obter uma sentença ao seu favor, dessa forma fica estabelecido as regras do jogo. Portanto, com luz no explanado por Lopes Jr (2014) a ideia de continuidade (de Bulow) é superada pelo ideal de dinamicidade e pautada pelo risco da incerteza, visto que a sucessão de atos delineia a definição positiva no curso processual para o lado que melhor aproveitar as cargas processuais e as chances que trazem o processo e que se não aproveitadas incorrerá no risco de obter uma sentença desfavorável.
Logo, o processo penal como único meio de aplicação da norma penal e instrumento de proteção dos direitos e garantias individuais, quanto a sua aplicação, deve ter como base a Constituição Federal de 1988 dotada de princípios (explícitos e implícitos) que também possuem força normativa fornecendo uma ampla interpretação e integração objetivando assegurar uma equidade na relação processual, dando amparo significativo ao polo passivo no processo (indivíduo).
A supremacia constitucional sobre todo o sistema normativo retrata a ligação ao processo de criação da Lei Fundamental, encabeçado pela vontade do povo, como dita o artigo 1º, parágrafo único da Constituição Federal de 1988: “todo o poder emana do povo”, este, detentor do poder constituinte originário. Por esse ângulo, nenhuma norma infraconstitucional pode sobrepor, impor paradigmas conflitantes com a Constituição, respeitando sempre a supremacia da Carga Magna.
Porém, conforme Pacelli (2017), o Código de Processo Penal (1941) refletido na legislação processual penal italiana que fora produzida na década de 30, durante o regime fascista, traduz todo o autoritarismo da época, manchado de um viés inquisitório, trazendo consigo a preocupação com a segurança pública, como se tal código fosse uma solução para tal. Em contra partida, a Constituição Federal (1988) tomou o caminho oposto, assegurando a eficácia de um sistema acusatório, pauta pelo amparo pela máxima eficácia de direitos e garantias fundamentais.
A Constituição Federal de 1988 estrutura-se pela conjugação do Direito Interno e o Direito Internacional, portanto as normas internacionais que tratam de Direitos Humanos o Brasil incorpora em sua Carta Magna. Dessa forma, a Presunção de Inocência encontra-se assegurada na Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) assinada em 1969 no seu artigo 8 que trata das garantias judiciais do acusado, assim como também assevera o artigo 9° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), complementando que todo ato desmedido para a punição do acusado deverá ser reprimido por lei.
Todo indivíduo em seu estado natural deve ser considerado inocente até que se prove o contrário diante de uma sentença penal condenatória transitada em julgado, assim determina o art.5º, LVII, da Constituição Federal (1988), descrevendo então a Presunção de Inocência, ou da não culpabilidade, como um princípio basilar para eficácia do processo brasileiro e uma das maiores garantias constitucionais contra o (ab)uso Estatal. Assim como defende Bulow, processo enquanto relação jurídica, ao passo que o acusado passa a ser um sujeito de direitos e deveres em face de um estado dotado de prerrogativas maquiadas pelo autoritarismo (LOPES, JR., 2014).
Outros princípios reitores do processo, contraditório e ampla defesa, constitucionalmente assegurados no art.5º, LV, Constituição Federal de 1988, estão relacionados a própria essência do sistema processual vigente, pois na falta de qualquer um desses poderá representar um mero procedimento inquisitorial. Não se deve negar que ambos são indissoluvelmente ligados, mas não se confundem, porquanto o contraditório trata-se de uma garantia essencial, até mesmo imprescindível para a instrução ao passo que o mesmo dispõe da garantia das partes de obterem informações sobre o processo e apresentarem, diante de um terceiro imparcial que representa o Estado, provas do fato assim como também de contraporem a carga probatória liberada (LOPES JR., 2014).
Nesse viés deve-se ressaltar o equilíbrio entre a acusação e a defesa, visto que não adianta dar direito a uma resposta à parte contrária, se não lhe são outorgados meios necessários e condizentes para tal. Assevera Coutinho (1998) que o contraditório é um processo no qual o julgador deve estar equidistante de ambas as partes no exercício de sua função jurisdicional, exaltando a sistemática acusatória disposta na Constituição Federal (1988), dessa forma incumbe ao magistrado apenas o julgamento das provas produzidas pelas partes, do contrário, resta-se cristalino a parcialidade.
Visando o contraditório como o direito de se manter informado de todos os atos inter procedimentais e a consequente participação, desponta a ampla defesa como os métodos utilizados para melhor formar o convencimento do magistrado, como esclarece Lopes Jr. (2014), a distinção não adentra na realidade processual, pois a fusão retrata a garantia de um sistema acusatório efetivo.
O princípio em tela dispõe da utilização de todos os mecanismos de provas admitidos em direito, sendo elas: prova testemunhal, documental, perícia, acareações, dentre outros, assim como também a utilização de todos os recursos admitidos no Código de Processo Penal (1941) para formar o convencimento do magistrado visando uma sentença favorável, devendo ser lembrado das regras do jogo, de Goldschmidt (1935), enquanto que as partes tem que aproveitar as chances e dispor de todas as armas no processo diante da epistemologia da incerteza.
4 DA INCOSNTITUCIONALIDADE DO ART. 156 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
O art. 156 do Código de Processo Penal (1941), trazido pela lei nº 11.690, de 9 de junho de 2008, onde menciona o posicionamento do juiz em relação a prova de ofício, redação do art. in verbis:
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;
II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.
É de grande valia, para entender-se o art. mencionado relaciona-lo ao período em que o Código de Processo Penal brasileiro foi elaborado, em 1941, por força da influência ditatorial da época. Nessa perspectiva, em diversos momentos, ao decorrer de seu texto, exterioriza os ideais inquisitórios e repressivos que fundamentavam o processo penal do tempo. A título de exemplo, apresentar o acusado como mero objeto da acusação concedendo liberdade de atuação às autoridades policial e judiciária.
Verifica-se, no entanto, uma clara e evidente contradição entre o Processo Penal e a atual Constituição Federal. Diante desse cenário, fazer uma análise a respeito da constitucionalidade das regras infraconstitucionais é de suma importância, visto que há uma incompatibilidade com o princípio acusatório previsto na Constituição Federal (1988).
No que tange a prerrogativa probatória, se houver dúvida ante o necessário para a condenação do acusado, ou seja, na apresentação das provas pela parte, isso é suficiente para absolver o réu. Como expõe Nucci (2011), no princípio in dubio pro reo, nasce a presunção de inocência. Nesse viés, não cabe ao juiz continuar a instrução para encontrar fundamento condenatório em detrimento da verdade meramente formal dos fatos. Quanto a isso, para a produção antecipada de provas, deve-se demonstrar a relevância e a urgência, porém, o ônus de requerer provas deve ser da acusação.
De acordo com o entendimento de Pacelli (2017), o ônus da prova judiciária tem um objetivo: reconstruir os fatos investigados no processo buscando a maior equiparação possível com a realidade histórica. Em outros termos, buscar desvelar o ocorrido com efetividade no espaço e no tempo. Sendo assim, esse é um ato de difícil abrangência, quando não impossível, pois trata-se da reconstrução da verdade.
Com efeito, acerca da noção inabalável que gira em torno da verdade no processo e que a mesma está ao alcance do Estado, a verdade real, tinha a função de legitimar possíveis desvios das autoridades públicas, além de justificar a ampla iniciativa probatória reservada em excesso ao juiz de direito. Nesse mesmo sentido, vale mencionar que “o sistema processual penal brasileiro é, na sua essência, inquisitório, porque regido pelo princípio inquisitivo já que a gestão da prova está, primordialmente, nas mãos do juiz” (COUTINHO, 2001, p. 29).
Em virtude do supradito, fica aparente que a real intenção do legislador é a iniciativa probatória do juiz basicamente fundamentada na busca da verdade real, baseando-se meramente nos fatos. Entretanto, observa-se, na intencionalidade mencionada, resquícios nítidos do sistema inquisitivo, uma vez que o magistrado vai em busca de uma verdade supostamente correta, mesmo que, no caso, não seja manifestada pelas partes.
4.1 A iniciativa instrutória do juiz perante o sistema constitucional acusatório
No sistema acusatório, o juiz tem a função de garantir que as regras do jogo estão sendo respeitadas, assegurar os direitos e garantias constitucionais. Dessa forma, a produção de provas concerne, particularmente, às partes. Portanto, ao juiz compete tão somente decidir diante do caso concreto. De mesmo modo, Goldsmith (1935) confirma o exposto ao afirmar que no sistema acusatório, a produção da prova, em outros termos, a apresentação de requerimentos e o recolhimento do material probatório são funções inerentes às partes, cabendo ao juiz somente decidir.
Conforme bem aponta Nucci (2011), o ônus da prova deve permanecer, exclusivamente, com a parte da acusação no intuito de não comprometer a imparcialidade do magistrado diante do caso. No que se refere à acusação, cabe-lhe provar o ônus da prova. Então, deve-se demonstrar, por meio de provas lícitas, que o acusado é autor de fato típico, antijurídico e culpável. Em casos de dúvidas, deve-se imperar a absolvição do acusado.
Outrossim, o magistrado, ao tomar para si o ônus da prova no processo julga e atribui sentido válido, apenas às manifestações que corroborem seu entendimento preexistente, desprezando provas e evidências em sentido contrário ao seu. Conforme esclarece Lopes Jr (2014), se existir alguma dúvida no julgamento, o único desfecho admissível seria a absolvição do acusado, com base no in dubio pro reo.
Por outro lado, no campo probatório, onde desenvolvem-se disputas entre partes, deve-se prevalecer condições de igualdade. Nessa perspectiva, à dúvida do magistrado compete apenas as provas produzidas pela parte e não a insuficiência ou a ausência da atividade persecutória. O juiz a agir em nome próprio, na produção de provas, deixa a condição de juiz imparcial no processo e passa a ocupar e desempenhar o papel que seria das partes.
Nesse sentido, Khaled Jr. (2013) aponta que na configuração acusatória, o juiz encarregado da jurisdição penal deve-se limitar às solicitações interpostas e ao material produzido pelas partes. Assim, por meio da disputa entre as partes, considera-se que o melhor meio para averiguar a verdade e a justiça é deixar à invocação do juiz e no que compete ao material processual das partes do processo mantendo sua imparcialidade.
Desse modo, ao juiz deve ser estabelecido limites à atividade instrutória, no âmbito do processo penal, respeitando o disposto na Constituição Federal, onde visa a preservação da imparcialidade e a conformidade constitucional. Nesse mesmo sentido, acrescenta Lopes Jr. (2018), que ao atribuir poderes instrutórios ao juiz, em qualquer fase, opera a prevalência da hipótese sobre o fato, já que o mesmo decide primeiro ir atrás das provas, que justificam sua decisão já tomada. Nessa conjuntura, parece incoerente o juiz tomar sua decisão sobre provas que ele mesmo anexou no processo.
Decerto, a parcialidade do magistrado é de suma importância para a primazia da justiça no processo. Nessa seara, com o ônus da prova nas mãos do juiz, como aquele que deve ser o terceiro imparcial resta, sem dúvidas, prejuízo a constitucionalidade do art. 156 do Código de Processo Penal (1941). Sendo assim, dificilmente irá ter imparcialidade na condução das provas. Além de que, o juiz carrega consigo uma grande carga de subjetividade que vincula-o sempre ao processo.
Consoante o disposto na Constituição Federal (1988) o juiz não pode atuar como parte, ou seja, não pode produzir provas, visto que seu papel no processo é decisório e não acusatório. Partindo do pressuposto, o juiz, agindo de oficio na produção de provas compromete toda sua imparcialidade no processo. Nesse mesmo sentido, é entendimento de Nucci (2011) que deve-se compreender o ônus da prova como a responsabilidade da parte e somente dela. Como também, buscar preservar a sua imparcialidade e necessária equidistância, prevendo distintamente as figuras do investigador, acusador e julgador.
Evidentemente, a imparcialidade é virtude exigida de todo e qualquer magistrado, o mesmo deve-se manter afastado da atividade probatória. Nesse viés, coletando provas, não resta dúvidas, que o juiz será influenciado pelas suas próprias convicções, e por conta disso, não haja com a imparcialidade necessária ao caso. Portanto, deve tomar sua decisão de acordo com as provas produzidas pela parte. Nessa concepção, o juiz estará sujeito ao comprometimento psicológico com a tese acusatória, tão comum às partes, colidindo frontalmente com diversas normas constitucionais.
No mesmo sentido, Lopes Jr (2020, p. 90) afirma:
“A iniciativa probatória nas mãos do juiz conduz à figura do juiz-ator (e não espectador), núcleo do sistema inquisitório. Logo, destrói-se a estrutura dialética do processo penal, o contraditório, a igualdade de tratamento e oportunidades e, por derradeiro, a imparcialidade – o princípio supremo do processo”.
Dificilmente, a subjetividade do juiz não transparecerá nas suas decisões proferidas a partir de provas colhidas de ofício. Sendo assim, não pode a garantia do contraditório ser utilizada como forma de controle da iniciativa probatória do juiz. Em outras palavras, o juiz deve atuar com base em seus princípios, mas não de forma que interfira na sua neutralidade. Nessa lógica, pontua Lopes Jr. (2020) que a parcialidade no processo gera incerteza e insegurança na comunidade e em suas instituições. Não basta estar teoricamente protegido; é importante que se encontre em uma situação jurídica objetivamente imparcial.
Portanto, entende-se que nem mesmo a motivação das decisões judiciais se prestaria efetivamente a esse fim. Isso porque, o juiz, ao expor as razões pelas quais está determinando a produção de uma prova de ofício, acabará mostrando o seu envolvimento com uma das versões, mesmo que de forma implícita. Logo, isso afeta, negativamente, a confiabilidade atribuída aos tribunais de uma sociedade democrática.
No entanto, fica manifesto que a parcialidade do magistrado traz um grande perigo para a democracia, permitindo que o juiz primeiro decida para depois ir atrás da prova (primazia da hipótese sobre o fato), onde o mesmo deixa a condição de juiz imparcial passa a desempenhar o papel das partes, ou seja, não cabe as partes julgar, a tarefa de decidir o caso penal deve ser realizada respeitando às regras do jogo, e de modo imparcial pelo juiz.
Como bem esclarece Lopes Jr. (2013) se houver dúvida no julgamento do caso, o único desfecho aceitável seria a absolvição do réu, e não ativismo judicial, desse modo pode gerar provas desfavoráveis ao réu, que deveria ter sido produzida pela parte da acusação, o réu no caso não tem chance processual, dessa forma, gera um “quadro mental paranoico”, onde não há espaço para contraditório e ampla defesa.
Ante o exposto, cumpre ressaltar a importância deste trabalho que é dar uma contribuição ao estudo do tema proposto, cujo objetivo maior é analisar art. 156 do código de processo penal de 1941 enquanto violador do texto constitucional por ser princípio unificador do sistema inquisitorial, buscando consolidar nossa cultura sobre a legitimação das leis e dos seus atos normativos, de maneira a fortalecer ainda mais o comprometimento social feito em torno da Constituição Federal de 1988 e dos princípios que a norteiam.
Para se conseguir expor o acima citado, buscou-se definir e classificar os sistemas acusatório, inquisitório e a inexistência de um sistema misto, trazendo as características dos mesmos e a seu avanço no tempo, como também a instrumentalidade constitucional do processo penal.
Quanto ao sistema acusatório uma de suas características se dá pela separação das funções de acusar e julgar, ou seja, atribuindo a órgãos distintos o desempenho de tais funções. Já o sistema inquisitório, traz como principal característica a possibilidade de o juiz investigar e acusar ao mesmo tempo, já que a gestão das provas está nas suas mãos. Ademais, desse sistema consistem na não publicação dos atos processuais não existindo o direito ao contraditório e à ampla defesa, uma vez que o acusado é mero objeto de investigação. Sendo assim, não há compatibilidade com as garantias constitucionais como visto no sistema acusatório.
Então, vemos que com essa atitude estará o juiz a usurpar a função de acusador outorgada constitucionalmente as partes, pois, estes como titulares da ação penal, deve buscar os elementos de prova no transcurso do processo. Assim, entendemos está sendo violados muitos princípios garantidos constitucionalmente pela Carta Magna.
Entretanto, sobre a imparcialidade do juiz, sabe-se que todo julgamento é composto de uma carga muito grande de subjetidade, tanto na sentença, quanto na verificação das provas, principalmente quando o órgão que acusa é o mesmo que julga e que fará a análise valorativa do conjunto probatório trazido ao processo. À vista disso, um processo instruído com provas escolhida pelo juiz, será um processo, duvidoso, pois o juiz, dificilmente, não estará vinculado, ao menos subjetivamente, às provas que, por si só, produzir.
O processo é um direito do cidadão, uma conquista, uma garantia prevista na Constituição Federal de 1988, assegurado pelo Estado de Direito. Portanto, se faz necessário que o controle de constitucionalidade possa avaliar os efeitos normativos contraditórios dentro do sistema constitucional, atacando severamente, normas que contém elementos de institutos estranhos a Lei Maior, e ao mesmo tempo, expelir do sistema tais normas.
De outro modo, estar-se-ia e instaurar-se um processo de natureza eminentemente inquisitiva com resquícios claros de autoritarismo, transformando o juiz em um inquisidor, de modo a tornar o processo uma via suscetível a arbitrariedades e insegura para se exercer a cidadania com todas as garantias a ela inerentes.
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[1]Acadêmico do curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA. E-mail: [email protected].
[2] Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília. E-mail: [email protected].
[3]A expressão, segundo STRECK, é de WARAT. STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri: símbolos & rituais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
[4]SILVA, Virgílio Afonso. A constitucionalização do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. 1ª ed. 3ª tiragem. Malheiros: São Paulo, 2011, p. 17.
[5] COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda apud LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.
[6]LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 41.
[7]De acordo com FERRAJOLI, “Segundo o senso comum a democracia vem frequentemente concebida, de acordo com o significado etimológico da palavra, como o poder do povo de assumir, diretamente ou por intermédio de representantes, as decisões públicas. Esta noção de democracia pode ser chamada de formal ou procedimental, pois identifica a democracia unicamente com fundamento nas formas ou nos procedimentos idôneos a legitimar as decisões como expressão, direta ou indireta, da vontade popular: porque a identifica, em outras palavras, com fundamento no quem (o povo ou os seus representantes) e no como (o sufrágio universal e a regra da maioria) das decisões, independentemente de seus conteúdos, isto é, daquilo que venha a ser decidido. É esta, assim, a tese compartilhada pela maior parte dos teóricos da democracia”. No entanto, no presente artigo trabalhar-se-á a chamada dimensão substancial da democracia, pois segundo o referido autor a dimensão formal “não é suficiente para explicar as democracias constitucionais atuais, as quais não entrariam, com fundamento em tal definição, no conceito de democracia, considerando que neste a legitimação popular não é mais suficiente para legitimar qualquer tipo de decisão. Tal definição, portanto, carece de valor empíricoe de capacidade explicativa. De fato, por força da mutação de paradigma gerada pelo constitucionalismo rígido na estrutura das democracias, inclusive o poder legislativo e o poder de governar são juridicamente limitados e vinculados não somente às formas, mas também à substância do seu exercício. Estes limites e vínculos são impostos a tais poderes pelos direitos constitucionalmente estabelecidos, os quais identificam aquela que podemos chamar de esfera do indecidível: a esfera daquilo que não é decidível, ou que não pode ser objeto de deliberação, desenhada pelos direitos de liberdade, os quais têm o poder de tornar inválidas as decisões com eles contrastantes (...)”.FERRAJOLI, Luigi. Poderes Selvagens. Trad. Alexander Araújo de Sousa. São Paulo: Editora Saraiva, 2014, p. 17-19.
[8]NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra, 2006, p. 34.
[9] Em relação ao Estado, o “trunfo” é de que o indivíduo tem uma posição juridicamente garantida contra o poder político. No que diz respeito aos particulares, é ter um direito que o Estado está obrigado a proteger contra ameaças ou lesões de terceiros.
[10]GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal. Bahia: Editora Juspodivm, 2013, p. 134.
[11]RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. São Paulo: Editora Atlas, 2012, p. 46.
[12]LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.
[13] Segundo GLOECKNER: “Em síntese, percebe-se que a nominação de um sistema como acusatório ou inquisitório somente ganha sentido (e este encadeamento de significantes como prenuncia Jakobson) na existência de outro modelo a lhe dar aparência. (...) reconhece-se plenamente que o sistema acusatório e o inquisitório podem ser encontrados em determinado momento histórico. Todavia, deve-se reconhecer que os sistemas não são “fatos naturais” e que são produtos culturais”. GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal. Bahia: Editora Juspodivm, 2013, p. 140.
[14]GOLDSCHMIDT, James. Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal. Barcelona: Bosch, 1935, p. 67.
[15]ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Origem y Evolucióndel Discurso Crítico enel Derecho Penal. Buenos Aires: Ediar, 2004, p. 27-28.
[16] Até o fechamento da presente edição, por decisão do Min. Fux, encontra-se com a eficácia suspensa sine die por força da medida cautelar na ADI n. 6.299/DF.
[17]CARNELUTTI, Francesco. Verità, Dubbio e Certezza. Rivista di Diritto Processuale, v. XX, (II série), p. 4-9, 1965.
[18]ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas memórias e sistema penal: a prova testemunhal em xeque. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 35.
[19] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 568.
[20] KHALED JR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo, Editora Atlas, 2013.
[21] Para KHALED JR, “a partir dessa perspectiva, a passeidade é um aspecto a destacar e não a desconsiderar, uma vez que nela reside um elemento fundamental para sustentar uma concepção de processo que deve ter como elemento central as regras do jogo: a verdade correspondente – mesmo aproximativa ou relativa – está para além das forças dos homens, motivo pelo qual a possibilidade de produção de danos é imensa, já que as eventuais condenações jamais poderão ser tidas como a expressão de uma verdade correspondente ao que foi. Reconhecemos que essa argumentação parece ousada, pois aparentemente parece conduzir ao raciocínio contrário, ou seja, de que não há relação alguma entre a sentença narrativamente elaborada pelo juiz e a verdade. Não é o que propomos. Nossa posição está para além da dicotomia entre uma verdade absoluta (a chamada verdade real, material, substancial etc.) e a desconsideração completa da verdade (relativismo radical), sem tampouco alinhar-se com o falso compromisso entre ambas que é a verdade aproximativa ou relativa, que permanece presa ao ideal de correspondência e, logo, fundamenta poderes de ordem inquisitória”.ROSA, A. M.; KHALED JR, S. H. In dubio pro hell: profanando o sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2014, p. 334.
[22] KHALED JR, Salah H.A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo, Editora Atlas, 2013, p. 335.
[23]LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 118-119.
[24] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.
[25] “Apontada pela doutrina como fator crucial na distinção dos sistemas, a divisão entre as funções de investigar-acusar-julgar é uma importante característica do sistema acusatório, mas não é a única e tampouco pode, por si só, ser um critério determinante, quando não vier aliada a outras (como iniciativa probatória, publicidade, contraditório, oralidade, igualdade de oportunidades etc.)”LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 131. Em sentido contrário, Badaró leciona que “A essência do modelo acusatório é a nítida separação entre as funções de acusar, julgar e defender. Para ele, “Em suma, o sistema acusatório, quanto à atividade probatória, deve reconhecer o direito à prova da acusação e da defesa, podendo ainda o juiz ter poderes para, em caráter subsidiário ou suplementar, determinar exofficioa produção de provas que se mostrem necessárias para o acertamento do fato imputado”. BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. Rio de Janeiro: Campus Jurídico, 2014, p. 48-49.
[26]GOLDSCHMIDT, James. Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal. Barcelona: Bosch, 1935.
[27] Para CAPEZ, ainda hoje, o processo penal tem por finalidade a busca da verdade real, sustentando que “É dever do magistrado superar a desidiosa iniciativa das partes na colheita do material probatório, esgotando todas as possibilidades para alcançar a verdade real dos fatos, como fundamento da sentença”. CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2011, p. 66-67.
[28]BUENO DE CARVALHO, Amilton. Direito Penal a Marteladas (Algo sobre Nietzsche e o Direito). Rio de Janeiro: Lumen juris, 2013, p. 145.
[29]CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 135-136.
[30]COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O Papel do Novo Juiz no Processo Penal. In COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.) Crítica à Teoria Geral do Direito Processual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 29.
[31]COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O Papel do Novo Juiz no Processo Penal. In COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.) Crítica à Teoria Geral do Direito Processual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 28.
[32]Nesse sentido, NUCCI afirma que o sistema processual penal brasileiro é misto, pois possui uma fase inquisitiva (inquérito policial” e outra fase acusatória (processo). NUCCI, Guilherme de Sousa. Manual de Processo Penal e Execução Penal. São Paulo: RT, 2007.
[33]LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.
[34]COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O Papel do Novo Juiz no Processo Penal. In COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.) Crítica à Teoria Geral do Direito Processual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
[35] KHALED JR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo, Editora Atlas, 2013, p. 142.
[36] COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda. Temas de direito penal e processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 16-17.
[37] GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a CF e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2015, p. 12.
[38]BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011.
[39]LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.
[40]CALAMANDREI, Pietro. Direito Processual Civil. Campinas: Bookseller, 1999, v. 3, p. 224.
Acadêmica do curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, Milla Nadi Ribeiro. Art. 156 do Código de Processo Penal enquanto violador do texto constitucional por ser princípio unificador do sistema inquisitorial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 maio 2020, 04:18. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54586/art-156-do-cdigo-de-processo-penal-enquanto-violador-do-texto-constitucional-por-ser-princpio-unificador-do-sistema-inquisitorial. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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